Sobre Sonhu Sonhado, Sonho Sonhado, Dreamt Dream, de Carlota de Barros

1. O bi(multi)linguismo literário caboverdiano 


É sabido que o bilinguismo é uma das características fundamentais das comunidades caboverdianas residentes nas ilhas e nas diásporas, consideradas em conjunto ou de forma isolada. Se no solo pátrio das nossas ilhas, a língua materna caboverdiana convive com o português, desde há muito, desde a hora inicial do seu parto a partir também do ventre co-matricial dessa língua europeia que era o português arcaico desses recuados tempos quinhentistas, persistindo esse convivo até à actualidade dos nossos dias, no quadro da diglossia ainda predominante no nosso país, nas diásporas a língua caboverdiana e as suas diferentes variantes dialectais insulares e regionais andam de mãos dadas com as línguas dominantes nas respectivas comunidades dos países de acolhimento dos expatriados caboverdianos, também eles muitas vezes, se quiserem, pátrias natais de acolhimento dos descendentes dos imigrantes das nossas ilhas afro-crioulas. Neste contexto, diferenciado e linguisticamente multifacetado, o crioulo ou, melhor, a língua caboverdiana, foi e continua a ser o principal signo identitário e, por isso mesmo, ainda que em alguns casos somente em potência, o principal elo de ligação, de identificação e de comunicação entre os caboverdianos de todos os tempos e lugares, situados nas ilhas e nas diásporas, localizados nos lugares do passado, do presente e do futuro do nosso povo disperso pelo mapa-mundo da sua alma migratória e dos pés andarilhos do globo dos seus filhos emigrantes e da sua demanda de sempre de uma vida cada vez melhor.

Língua plenamente oficial da nossa república independente e soberana, língua de escolarização e de formação das nossas crianças, dos nossos jovens e dos nossos adultos no ensino formal ministrado nas nossas ilhas, língua propiciadora do mais imediato acesso das populações do nosso arquipélago aos repositórios das ciências e aos cativantes mundos da técnica moderna, o português tem sido igualmente língua depositária de grande parte (talvez da esmagadora parte) da nossa literatura e da nossa cultura erudita bem como dos arquivos escritos da nossa memória histórica, política, jurídica, social, económica, cultural, técnica, científica, jornalística, etc., acrescendo ainda e ademais em seu favor a sua condição de língua seladora da nossa pertença à Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP) bem como a sua função de mais importante instrumento linguístico de comunicação oficial e internacional do nosso povo soberano e dos representantes do nosso estado independente com a comunidade internacional das nações soberanas e independentes e com as suas inúmeras organizações intergovernamentais e supranacionais.

Adite-se ainda a favor do português a circunstância de ele se ter tornado língua materna ou primeira de muitos descendentes de caboverdianos nascidos nas diásporas caboverdianas radicadas em países lusófonos, com destaque para aqueles nascidos e crescidos em Angola, no Brasil e em Portugal, sendo de se destacar que, neste último país, é cada vez mais crescente a tendência para os pais caboverdianos comunicarem directamente em português com os seus filhos nascidos ou em processo de crescimento nesse país. Tal circunstancialismo, novo em vários aspectos, deve-se a vários factores, devendo-se sublinhar de entre eles:

1) O facto de as novas vagas de emigrantes caboverdianos integrarem pessoas escolarizadas em português no país natal e, deste modo, serem detentoras de capacidades reais, ademais susceptíveis de rápido aperfeiçoamento, para um domínio suficiente dos códigos oral e escrito da língua portuguesa (sublinhe-se que ao contrário das primeiras vagas de “lisboetas” (termo dantes utilizado nas ilhas para designar os emigrantes caboverdianos radicados em Portugal) constituídas maioritariamente por monolingues, nativos em idioma crioulo).

2) Uma assumida vontade de integração na sociedade de acolhimento, favorecida por uma cada vez maior e mais plena consciência dos seus direitos humanos de moradores do mundo e acelerada pelo progressivo desaparecimento dos bairros degradados de segregação social, habitacional e linguística, e por uma nítida melhoria das condições de acesso aos instrumentos jurídico-legais, sociais, económicos e políticos da cidadania, incluindo a residência legal e a nacionalidade portuguesa.

3) Uma maior exposição das crianças de origem caboverdiana à cultura e à língua portuguesas dominantes no país de acolhimento, com destaque para as creches, os jardins-de-infância, as escolas de diferentes níveis, os espaços públicos de trabalho, de lazer e de diversão, as novas tecnologias e os meios audiovisuais de comunicação de massas, com concomitante diminuição da influência e do prestígio da cultura e da língua materna dos pais imigrantes. Sendo visível a exacerbação desses processos no seio das franjas de caboverdianos regressados do antigo Ultramar Português e daquelas detentoras de um mais elevado estatuto social e económico, as quais quase sempre incutiram nos seus descendentes residentes em Portugal o valor da língua portuguesa como língua primeira, ela é igualmente potenciada com o surgimento das segundas e sequentes gerações de caboverdiano-descendentes de diversificadas pertenças e categorias sociais. Nestes casos, a maior ameaça ao bilinguismo característico (mesmo se somente em potência) das comunidades caboverdianas passa a residir no risco adveniente da cada vez mais escassa utilização da língua caboverdiana pelos caboverdiano-descendentes, tendendo a língua das nossas identidade e unidade (trans)nacionais para a rarefacção e o progressivo desaparecimento no tráfego linguístico das diásporas, caso se não tomem as medidas adequadas a essa situação de verdadeira emergência cultural. Sendo a situação acima descrita detectável nos demais países das diásporas, com destaque naqueles onde se vem processando uma melhor integração cidadã das comunidades caboverdianas, pode-se concluir que existe um real risco de a língua caboverdiana deixar de desempenhar cabalmente o seu papel de principal símbolo e testemunho da nossa identidade nacional crioula e de essencial elo linguístico entre as diferentes comunidades caboverdianas das diásporas e entre elas e as nossas ilhas afro-crioulas.

Também nesta óptica, parece-me ser de grande relevância a circunstância de constar do livro ora em apresentação a versão (ou, se quiserem, a tradução,) em inglês de Sonho Sonhado. Língua segunda (ou, quiçá, terceira) da grande maioria daqueles integrantes das nossas comunidades nos Estados Unidos originários das ilhas e língua primeira (por vezes segunda) dos seus descendentes nascidos e/ou crescidos na América, o inglês é, além do mais, a principal língua de negócios, do entretenimento mediático, de labor em vários ramos das ciências contemporâneas, da diplomacia e da comunicação internacional. Deste modo, a versão em inglês dos poemas de Sonho Sonhado permite, não só satisfazer a eventual curiosidade de caboverdianos-americanos e de outros integrantes das nossas diásporas que não dominem de forma suficiente a língua portuguesa, e, em menor medida, a língua caboverdiana, mas também contribuir para o seu conhecimento pelo vasto mundo não falante do português ou do crioulo caboverdiano. Também nesse desiderato, o livro trilingue agora dado à estampa sob o triplo título Sonhu Sonhadu, Sonho Sonhado, Dreamt Dream afigura-se-me como portador de elevado valor simbólico no que respeita às muitas pugnas actuais dos caboverdianos das diásporas na busca da sedimentação da sua dupla pertença identitária, da sua bipatridia político-estadual e da sua cidadania do mundo.

Nação crioula soberana em resultado de um longo processo histórico de emancipação social, cultural, cívica e política, Cabo Verde viu desde cedo grande parte das suas elites letradas reconhecerem o valor do nosso idioma materno nas suas inalienáveis e intransmissíveis funções identitária e estabilizadora da secular singularidade cultural do nosso povo (sublinhe-se que ao contrário do ocorrido e observado em outras latitudes tal como nós igualmente submergidas pelas tentativas de etnocídio e de genocídio culturais e pelas políticas de assimilação às culturas metropolitanas opressoras). Simultaneamente e no mesmo tempo histórico, os integrantes das mesmas elites empenharam-se, por vezes com o rigor do gramático (como diz Dulce Almada Duarte no seu festejado livro Bilinguismo ou Diglossia?) e a desenvoltura do estilista abalizado, acrescentamos nós, no estudo aprofundado com vista ao domínio seguro de todas as nuances, de todas as maravilhas e de todas as armadilhas da língua da pátria imperial de então, que era o português, e dos seus maiores cultores, com destaque para Luís Vaz de Camões, desta língua portuguesa tida, então como agora, como meio imprescindível para a promoção das nossas gentes e para a chamada aristocratização social e cultural do negro, do mulato e do branco caboverdianos, na antiga terminologia de Baltasar Lopes da Silva e dos demais claridosos.

Deste modo, laborando no seio de um povo antes de mais (auto) identificado como nativo da terra e da língua crioulas caboverdianas, convivendo com uma população maioritariamente monolingue numa terra de elites culturais, sociais, económicas e administrativas assumida e orgulhosamente bilingues e dilaceradas pela cissiparidade pátrida (na feliz expressão de Manuel Ferreira), testemunha quotidiana e espectadora privilegiada das muitas e, por vezes, hilariantes incongruências da diglossia, alguns desses letrados das fases nativista, claridosa e nova-largadista (todas, aliás, situadas na época colonial do tempo da nossa multissecular história), para além de terem lançado os caboucos para a edificação do nosso sistema literário nacional, logrando posteriormente inventar o chamado português literário caboverdiano de feição claridosa e de contínua e sempre criativa reinvenção na literatura caboverdiana que se lhe seguiu, puderam cultivar o seu entranhado bilinguismo com engenho e arte, com esforços mil e muito espírito de missão. Não só, por um lado, no quadro da oralidade lusófona dos hábitos elitistas dos intelectuais de outrora, aliás tradicionais e conformes com os seus tempos de vida e de história, e da escrita lusógrafa do seu ofício e do seu labor de letrados, e, por outro lado, no quadro da oralidade em língua caboverdiana na domesticidade do lar e no tráfego quotidiano com os patrícios de diferentes estratos sociais, mas também num outro patamar, mais elevado, designadamente o da criativa conjugação da lusografia com a crioulografia. Deste modo, puderam esses nossos escritores contribuir de forma relevante para que, no domínio da escrita, a língua portuguesa e a língua caboverdiana pudessem exercer funções complementares, se bem que no restrito, desequilibrado e instável quadro propiciado pela diglossia, então como agora, ainda dominante. Tais funções complementares têm vindo a ser exercidas em espaços vizinhos, se bem que claramente delimitados e assaz circunscritos e compartimentados, como atestam as temáticas, as linguagens e as estilísticas diferenciadas dos poemas em português e em crioulo de Eugénio Tavares, Pedro Cardoso ou Francisco Xavier da Cruz (o B. Lèza das belíssimas mornas, destacando-se neste momento e neste contexto específicos, a morna “Ondas sagradu di Teju/Ondas sagradas do Tejo”).

Deste modo, esses nossos Letrados Antigos tornaram-se notáveis e memoráveis pioneiros na saga da criação de um verdadeiro bilinguismo em Cabo Verde, não só naquele que vive e sobrevive na oralidade, como também naquele que rebrilha na solenidade da palavra erudita lavrada na escrita.literária e não só.

Felizmente, o exemplo desses nossos Grandes Antigos frutificou em todas as gerações de escritores caboverdianos que se lhes seguiram, atingindo actualmente momentos muito produtivos na sua diversidade temática e deveras férteis e resplandecentes e, até, de inegável excelência, no conseguimento estético dos resultados obtidos pelos melhores dos nossos actuais literatos bilingues, tal como, aliás, também ocorrera nas horas iniciais da escrita erudita da poesia lírica em crioulo de Eugénio Tavares.

É assim que um não negligenciável número dos actuais escritores (poetas, ficcionistas, dramaturgos e, até, ensaístas) caboverdianos podem ser considerados escritores bilingues, como são os casos de Corsino Fortes, Carlos Alberto Barbosa, Manuel Veiga, Tomé Varela da Silva, Eutrópio Lima da Cruz, José Luís Hopffer C. Almada, Danny Spínola, José Luiz Tavares, entre alguns outros, sendo certo que importantes poetas caboverdianos (lusógrafos e não só) dos tempos mais recentes foram protagonistas de diferenciadas incursões literárias na língua cabo-verdiana: :i) Umas de pequena dimensão e à semelhança de Jorge Barbosa e Manuel Lopes, como nos casos de Oswaldo Osório e Mário Fonseca (cada um com um poema conhecido em crioulo) e Arménio Vieira (autor de alguns poemas em crioulo, de entre os quais cabe destacar “Canta cu alma sem ser magoado”, tornado célebre por ter sido musicado por Pedro Rodrigues e interpretado por Bana com arranjos musicais de Paulino Vieira). ii) Outras de maior amplitude, como no conhecido caso do Ovídio Martins de relevantes segmentos do livro Gritarei, Berrarei, Matarei, Não Vou para Pasárgada - Cem Poemas.. Note-se que alguns poetas caboverdianos pós-claridosos utilizaram e/ou continuam a utilizar o crioulo como importante língua de labor literário, quer de forma exclusiva, como nos casos de Kaoberdiano Dambará, Emanuel Braga Tavares e Kaliostro Fidalgo (pseudónimo literário do malogrado Pedro Freire), quer de forma predominante, como no caso de Kaká Barboza que também tem experimentado auspiciosos caminhos na prosa literária dos seus contos em português e em crioulos constantes da colectânea da sua autoria intitulada Cântico às Tradições

Como anteriormente aventado, o bilinguismo é igualmente característico das comunidades caboverdianas da diáspora.

Se, nos países lusófonos, esse bilinguismo é marcado pelo convívio entre o português e o crioulo, em outros países não lusófonos o bilinguismo integra-se do crioulo e das línguas dominantes nos respectivos paises de acolhimento. Também nessas comunidades elevaram-se alguns habitantes da nossa crioulidade, (quase) todos originários das nossas ilhas, para fazerem as línguas internacionais dominantes nos países do seu acolhimento e no mais vasto mundo línguas de expressão da nossa cosmogonia, das nossas interrogações metafísicas, das nossas reivindicações sociais, da nossa indagação de cidadania e de nacionalidade políticas e das nossas relações igualitárias com o mundo largo e alado. São disso ilustrativos os Exemple Restreint e Exemple Irreversible, de João Vário, acrescendo deste autor os anunciados e ainda inéditos European Example e American Example, bem como a vasta obra poética em língua francesa de Mário Fonseca integrada pelos livros Mon Pays est une Musique, La Mer à tous les Coups e L´Odifirerante Evidence de Soleil qu´est une Orange. Convém, nesta circunstância, relembrar que José Lopes, por alguns considerado um dos poetas caboverdianos lusógrafos mais eruditos na compreensão e no manejamento dos meandros da cultura e da versificação clássicas greco-latinas, fora autor de alguns e grandiloquentes poemas em francês, em inglês e, até, em latim e que lhe fizeram merecer diversas e altas condecorações, por exemplo, da França, para além, obviamente, de Portugal, a mãe-pátria de outrora. Outros poetas caboverdianos nossos contemporâneos, e não só, têm publicado poemas em francês, em inglês e em espanhol, de forma esparsa (como nos casos de Arménio Vieira, José Luís Hopffer Almada e Filinto Elísio Correia e Silva) ou de modo mais sistemático (como nos casos de Misá Kwasi e António Lima).

Como anteriormente aventado, o bilinguismo é igualmente característico das comunidades caboverdianas da diáspora.

Se, nos países lusófonos, esse bilinguismo é marcado pelo convívio entre o português e o crioulo, em outros países não lusófonos o bilinguismo integra-se do crioulo e das línguas dominantes nos respectivo paises de acolhimento. Também nessas comunidades elevaram-se alguns habitantes da nossa crioulidade, (quase) todos originários das nossas ilhas, para fazerem as línguas internacionais dominantes nos países do seu acolhimento e no mais vasto mundo línguas de expressão da nossa cosmogonia, das nossas interrogações metafísicas, das nossas reivindicações sociais, da nossa indagação de cidadania e de nacionalidade políticas e das nossas relações igualitárias com o mundo largo e alado. São disso ilustrativos a vasta obra poética em língua francesa de Mário Fonseca integrada pelos livros Mon Pays est une Musique, La Mer à tous les Coups e L´Odifirerante Evidence de Soleil qu´est une Orange e os Exemple Restreint e Exemple Irreversible, de João Vário, acrescendo deste último autor os anunciados e ainda inéditos European Example e American Example. Convém, nesta circunstância, relembrar que José Lopes, por alguns considerado um dos poetas caboverdianos lusógrafos mais eruditos na compreensão e no manejamento dos meandros da cultura e da versificação clássicas greco-latinas, fora autor de alguns poemas em francês, em inglês e, até, em latim e que lhe fizeram merecer diversas e altas condecorações, por exemplo, da França, para além, obviamente, de Portugal, a mãe-pátria de outrora. Outros poetas caboverdianos nossos contemporâneos, e não só, têm publicado poemas em francês, em inglês e em espanhol, de forma esparsa (como nos casos de Arménio Vieira, José Luís Hopffer Almada e Filinto Elísio Correia e Silva) ou de modo mais sistemático (como nos casos de Misá Kwasi e António Lima).

Ultimamente, tem-se evidenciado uma outra faceta da conjugação entre a língua portuguesa e a língua caboverdiana na escrita poética dos nossos criadores, moradores das nossas ilhas e diásporas. Não esperando por tradutores que, aliás, se têm mostrado demasiado renitentes ou reticentes, senão avessos, quanto à sua vontade prática de traduzir para outras línguas as obras literárias cabo-verdianas escritas em crioulo ou em português ou em verter para a nossa língua materna as obras escritas em outras línguas, alguns poetas e escritores caboverdianos (alguns deles detentores já de grande renome literário) têm optado não só pela utilização das duas línguas como línguas de labor literário em obras distintas, mas também em verter nas duas línguas as obras originalmente criadas e escritas numa delas, isto é, em crioulo ou em português. Aconteceu recentemente com Paraíso Apagado por um Trovão, de José Luiz Tavares (curiosamente sem título próprio em crioulo), doravante obra bilingue (português-caboverdiano), aconteceu igualmente com algumas peças de teatro constantes de três livros de Armindo Tavares, aconteceu também com o Danny Spínola de alguns dos contos da sua autoria publicados na revista Fragmentos e no livro (colectânea de contos) Lagoa Gémia. Acontecera já na década de sessenta do século passado com a obra bilingue Negrume/Lzimparin, de Luís Romano (sublinhe-se esses facto com o devido respeito e a merecida homenagem pela memória imprescritível do escritor que se assim se tornou pioneiro nestas andanças do bilinguismo de obras literárias de lavra própria).

Ademais, muitos novos poetas, escritores e criadores da palavra escrita têm seguido o exemplo do Eugénio Tavares tradutor da “Endechas para a Bárbara Escrava”, de Luís de Camões, do Cónego Manuel da Costa Teixeira tradutor e recriador de algumas passagens de Os Lusíadas para a variante de Santo Antão da língua caboverdiana e, mais recentemente, do Arnaldo França tradutor para o português (ou, melhor dito, autor das versões em português) de alguns poemas em crioulo de Corsino Fortes, como, por exemplo, “Recóde de Humberona”/”Recado de Humbertona”, e recriador, sob o pseudónimo de Guedes Brandão, de algumas versões em crioulo de poemas de David Mourão-Ferreira ou Fernando Pessoa, destacando-se deste último a tradução da Ode Marítima, de Álvaro de Campos. Anote-se, pela sua relevância que algumas das traduções de Arnaldo França, designadamente de poemas de David Mourão Ferreira, foram publicadas na folha Xatiadu SI, dirigida por António (Tony) Pires e a única publicação periódica caboverdiana vazada inteiramente em língua caboverdiana, quer se trate de ensaios ou de textos estritamente literários.

É nessa senda que : i) Horácio Santos traduziu A Espingarda da Senhora Kahrar, de Bertolt Brecht (Die Gewehre der Frau Kahrar, no original em alemão) a partir da sua versão em português; ii) Danny Spínola traduziu o longo poema “A Invenção do Amor”, do poeta luso-caboverdiano Daniel Filipe e o inesquecível e icónico “Capitão Ambrósio”, de Gabriel Mariano; iii) José Eduardo Cunha fez a tradução para português do livro ainda inédito Na Boka Portu, de poemas em crioulo (alguns deles publicados em 1998 nos nºs 10/15 da revista Fragmentos) da autoria de Xan (nominho e pseudónimo de Alexandre Herculano Conceição); iv) José Luís Tavares traduziu os Sonetos, de Camões, e a Ode Marítima de Fernando Pessoa e, mais recentemente, organizou uma antologia de textos de Dez Poetas Cabo-Verdianos Vivos Mais Um, traduzindo os originais em português para o idioma caboverdiano. Infelizmente, todas as traduções acima referidas permanecem inéditas (pelo menos em livro), com excepção daquelas da autoria de Danny Spínola.

Ouso introduzir, aqui e agora, um pequeno parêntesis para confessar que foi particularmente feliz o ter - me deparado, no blogue Aulil, com os meus Mikro-puemas kriolu (do caderno Ta Madura na Spiga do segundo volume da obra À Sombra do Sol) traduzidos para a língua portuguesa por Rui Guilherme Gabriel.

Assinale-se ainda o fecundo trabalho que tem sido o labor de tradução (presumivelmente a partir da sua versão em português) para a língua caboverdiana de peças de grandes dramaturgos de impacto universal, como Shakespeare, Garcia Lorca, etc., bem como de adaptação de obras de ficção de vários autores caboverdianos, como Manuel Lopes e Germano Almeida, à linguagem do teatro encenada no idioma nativo das ilhas Levado a cabo no âmbito do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo e no quadro das actividades do Mindelact, e sob a responsabilidade do dramaturgo, encenador e ensaísta João Branco, esse labor tem tido relevantes e indesmentíveis resultados para a dignificação, a nobilitação e o alargamento da área de jurisdição da vertente literária da língua caboverdiana, lamentando-se todavia que as mesmas traduções, versões e adaptações, vazadas em regra na variante sanvicentina da língua caboverdiana, não estejam ainda acessíveis em letra de forma do livro impresso.

Deste modo, tem-se prosseguido no caminho também encetado por alguns escritores da Reforma e do Renascimento europeus no sentido de verter nas respectivas línguas nacionais algumas grandes obras universais, agora e entre nós não necessariamente com o intuito de tornar essas obras mais acessíveis ao público falante do crioulo ou a permitir a comunicação do povo com a palavra divina do seu Deus, sem necessidade da intermediação de padres e de outros sacerdotes do saber e das coisas divinas e terrenas, mas com o declarado objectivo de promover o prestígio da língua caboverdiana, de aperfeiçoar a sua ductilidade literária, de fazê-la marchar ombro a ombro com as chamadas grandes línguas de cultura (línguas de cultura aqui assim entendidas somente no sentido de serem portadoras de cimentadas e longas tradições de escrita literária). Sublinhe-se neste contexto o excelente trabalho que vem sendo feito pelos integrantes da Equipa para a Tradução da Bíblia para a Língua Cabo-Verdiana que, eles sim, visando tornar acessível ao povo caboverdiano a palavra de Deus, e na sua própria língua materna (do povo caboverdiano, não de Deus!), puderam apresentar à nossa curiosidade e à nossa voracidade dois livros de grande qualidade, entre os quais Nobidade Sábi di Jesus (tradução do Evangelho de São Lucas), deste modo prosseguindo de forma profícua o labor pioneiro de Sérgio Frusoni com o seu Vangêle Contóde de Nós Moda (tradução para o crioulo (variante da ilha de São Vicente) da recriação em dialecto romano do Novo Testamento). Sérgio Frusoni que também foi pioneiro a outros também inolvidáveis títulos, designadamente quando nos legou em livro bilingue crioulo-português os poemas da sua lavra própria depois publicados pelo malogrado Professor Mesquitela Lima no livro A Poética de Sérgio Frusoni - Uma Análise Antropológica. 

 

 

Algumas considerações sobre as variantes do crioulo utilizadas em Sonhu Sonhado, a versão em caboverdiano dos poemas de Sonho Sonhado 

 

Neste sentido e neste contexto, o livro trilingue de Carlota de Barros (como anteriormente referido, com traduções em crioulo e em inglês da autoria respectivamente de Viriato de Barros e Maria Sedovem Kemp) reflecte de alguma forma a realidade que aqui vem sendo explanada, realidade essa de inquestionável interesse e assaz multifacetada nas suas diferentes dimensões e expressões.


Como já referenciado, o mais recente livro de Carlota de Barros insere-se desde logo na ainda frágil e pouco cultivada tradição da tradução para a língua caboverdiana de textos originalmente escritos em língua portuguesa.

O interessante neste caso é que os poemas em português são traduzidos para diferentes variantes da língua caboverdiana conforme se queira expressar maior intimidade com a variante supõe-se que mais próxima da subjectividade da autora original dos poemas em português ou, em sentido contrário, se queira ressaltar um maior distanciamento desse mesmo mundo subjectivo, pessoalíssimo e intransmissível, se bem que traduzível na sua linguagem poética. É assim que alguns poemas muito expressivos do aconchego íntimo da alma sentimental, do útero da casa

(para utilizar uma muito conseguida expressão poética que se tornou título de um livro de Conceição Lima) da autora do texto original em português (que, neste caso, constitui-se como a sua verdadeira língua materna literária) são traduzidos para a variante sanicolauense da língua caboverdiana, pois que São Nicolau é a ilha que, no poema, representa tanto a casa doméstica da infância ou do regresso à infância e da sua nostálgica rememoração como também a teta amada e nunca esquecida da qual se bebeu quer o leite materno quer a primeira língua dos afectos primevos e do conhecimento do mundo da meninência. São Nicolau, ilha materna, assim tornada, mediante o inventivo labor do tradutor/recriador em língua de expressão das mais íntimas vicissitudes dos sentimentos e dos correlativos estados de alma da autora original dos poemas. Atente-se que seria melhor dizer que a variante sanicolauense do crioulo se tornou em tudo o que acima foi referido, pois que a autora original dos poemas nasceu na ilha do Fogo, onde permaneceu nos primeiros doze meses de vida e passou a primeiríssima infância, deslocando-se (ou, melhor, sendo deslocada) em seguida com o pai, médico funcionário público sujeito às vicissitudes das transferências administrativas características da época, e a restante família para as ilhas da Brava (terra natal dos pais e de alguns irmãos mais velhos) e de S. Nicolau (terra natal de alguns irmãos), saindo desta última ilha com cinco anos de idade para passar a residir em Moçambique, na altura colónia/ província ultramarina portuguesa onde passou o resto da infância e da adolescência, com uma estadia intervalar nas ilhas de S. Nicolau, onde participou na fundação de um Externato de Ensino Secundário no qual foi professora, e S. Vicente, em cujo Liceu Gil Eanes leccionou a disciplina de português, até à frequência e conclusão dos estudos universitários em Lisboa Enfatize-se neste contexto que durante todo o período da sua estadia em Moçambique, a futura autora e poetisa teve o português como primeira e quase única língua de comunicação, de aprendizagem do mundo e de expressão dos afectos e da mais íntima sensibilidade. É com o regresso a Cabo Verde, via ilhas de São Nicolau e S. Vicente, que a autora reaprende a língua caboverdiana, desempenhando, assim, a variante de S. Nicolau da língua caboverdiana o papel de intermediação do regresso à infância, à cultura do país natal e ao sentir das suas gentes.

É o que se constata nos poemas “Regresso ao País/Voltâ pa terra”, “Com uma grande Paixão/K´un grand Paixãu”, “Sem Rumor de Lágrima/Sen Rumor d´Lágrima”, “Alma solitária/Alma Solitar”, “Babuxa/Babuxa”, “À beira do crepúsculo/O k´sol ta kanbâ”, “Telhas/Têdjas”, “Hoje/Aoj”, “Tocam os sinos, esvoaçam os trinados/Sin´ta toka trinod tâ zvuasâ”, “Trago nas mãos o Sol/N ta Trazê Sol na Mon”…

Para os demais poemas, designadamente os da abordagem das questões gerais que afligem e alegram a mulher e o homem comuns caboverdianos opta-se por um crioulo integrante da variante de Sotavento da língua caboverdiana, variante de Sotavento que, nas suas ressonâncias bravense e foguense, foi utilizada por grandes cultores da poesia caboverdiana em crioulo, como Eugénio Tavares e Pedro Cardoso, e privilegiada nas letras/poemas das mornas, por exemplo, pelo grande trovador sanvicentino B. Lèza. Trata-se neste caso concreto da tradução para o crioulo da maioria dos poemas de Sonhu Sunhadu, da variante de Santiago, na sua vertente urbana da Praia (por vezes mesclada com reminiscências da variante da ilha do Fogo, ilha onde o autor das traduções, natural da Brava, passou parte da sua infância, por vezes optando-se por versões mesolectais e, até, acrolectais, muito próximas da língua dos poemas originais em português e, por vezes demasiado submissas em relação à mesma língua. Ainda assim, deve-se ter em consideração duas questões fundamentais:1) a tendência que se nota cada vez mais na poesia escrita em crioulo de Santiago de deixar de conceder um lugar exclusivo às formas basilectais desse crioulo, como ocorria geralmente com a maioria dos poetas cultores do crioulo da ilha maior, optando-se também pela utilização de formas mesolectais, de feição urbana e mesolectal, e, até, acrolectal, como se pode verificar em parte da poesia mais recente de Danny Spínola e Kaká Barboza e em alguns contos de Ely Bakar. 

Na poesia constante da versão em crioulo de Paraíso Apagado por um Trovão privilegia-se, sem prejuízo da natureza erudita e lapidada dos poemas, um léxico mais autêntico, isto é mais próprio dos recursos linguísticos específicos da fonte basilectal santiaguense por forma a solidificar autonomia da língua caboverdiana em relação ao texto original em português (aliás, publicado simultaneamente e no mesmo livro do qual consta a versão em crioulo) e a explorar todas as suas potencialidades vocabulares, rítmicas e imagéticas.

Deste modo, a maior parte dos poemas de Sonhu Sonhadu é vertida no crioulo que é considerado pela generalidade dos especialistas como a matriz dos demais variantes da língua caboverdiana e, que segundo as reiteradas palavras de Baltasar Lopes da Silva, estaria fadada a constituir-se na variante-padrão do idioma literário crioulo, quer por razões históricas, sócio-linguísticas e demográficas, quer por razões estritamente linguísticas, designadamente a sua completude vocálica resultante da sua directa origem no português arcaico. Variante essa que, ademais, tem acolhido a maior parte das obras recentes escritas em língua caboverdiana, tanto nos domínios da poesia e da prosa ficcional, como nas áreas da recolha e da transcrição das tradições orais e da ainda escassa prosa ensaística. Variante essa que vem igualmente concitando a maior atenção investigativa e científica dos estudiosos nacionais e estrangeiros do crioulo caboverdiano e que tem merecido um mais diversificado labor literário, espraiado pela oratura, por uma cada vez mais diversificada poesia e por animadoras experiências de escrita ensaística. Sublinhe-se ainda que é a variante de Sotavento (com destaque para aquela radicada em Santiago) aquela que tem sido mais ensinada nas aulas de crioulo por esse mundo fora. É nesta última circunstância que poderá residir uma das razões fundamentais do lugar privilegiado que o tradutor atribui à variante de Santiago na versão em crioulo dos poemas de Sonho Sonhado, na medida em que o mesmo é um experiente professor de língua caboverdiana, sendo a variante de Santiago aquela que ele tem privilegiado na sua docência do crioulo a alunos estrangeiros interessados num melhor conhecimento da língua das nossas ilhas afro-atlânticas.

A crescente importância da variante de Santiago na actual escrita literária da crioulidade do nosso arquipélago tem caminhado a par e passo com um também crescente interesse pela escrita das variantes de outras ilhas de Cabo Verde, devendo-se sublinhar que essa diversidade na emergência da escrita do crioulo remonta ao passado e às mais antigas tradições de escrita da nossa língua materna, tendo a literatura em língua caboverdiana sido marcada pela ampla diversidade de origens dos autores e das respectivas variantes insulares utilizadas, Tal diversidade vem-se ancorando no nosso panorama cultural e sociolinguístico como uma característica essencial da escrita caboverdiana da memória e da actualidade em crioulo, por isso podendo e devendo cada uma das nossas ilhas orgulhar-se de poder sentir-se representada nesse leque linguístico nacional verdadeiramente arquipelágico, porque pluri-insular. Também nesta óptica, da pluri-insularidade da escrita do crioulo, é Sonhu Sonhadu paradigmático, na medida em que surge vazado em duas variantes representativas do Sotavento e do Barlavento caboverdianos e mais utilizadas ou pelo autor ou/e pelo tradutor, ou deste último mais conhecidas ou das quais demonstra maior domínio.

No que respeita à sua substância, pode-se pois dizer, em jeito conclusivo, que esse maior número de poemas integrantes de Sonhu Sonhadu traduzidos para a variante de Santiago abrange um vasto leque de matérias e temáticas.

Neste leque, destacam-se aqueles de cariz essencialmente telúrico, como se pode constatar nos poemas “Sonhei uma ilha/N sunha un ilha”, “O silêncio dos poetas/Silênsiu di poetas”, “Seca/Seka”, “Morna”, “Se o mar fosse milho/Si mar era midju”, etc.

Característico de alguns desses poemas de cariz telúrico é a utilização de uma linguagem directa ou marcada pela simplicidade dos recursos estéticos ou, até, pela suposta ingenuidade da imaginação criadora, muitas vezes parecendo estar despojada de um arsenal rítmico e de um instrumentário metafórico mais sofisticados bem como de uma imagética que, fazendo pleno uso das potencialidades da alusão poética, criasse uma certa polissemia da linguagem e, assim, potenciando a emotiva diversidade da sua recepção. Sirvam de exemplos desse tipo de versos enraizados na terra, no sonho evasionista/pasagardista e/ou na revolta os poemas “Se o mar fosse milho”, “O rumor da chuva”, “Deixa que sonhe”, “O povo das ilhas” ou “Sonho Sonhado”, ressaltando-se nestes poemas uma linguagem que oscila entre o teluricismo lírico e (in)feliz ou sonhador característico de alguns poemas de Ovídio Martins e o tom protestatário, incidente sobre os tempos contemporâneos dos nossos dias de escassez, carência e abandono de algumas ilhas (no poema exemplificadas poelas ilhas de São Nicolau e da Brava), mas relembrando as palavras contestatárias e anti-coloniais da generalidade da poesia da Nova Largada dos anos cinquenta, sessenta e setenta do século passado.

Opta-se igualmente pela utilização da variante de Santiago nos poemas de indagação político-social do vasto mundo, das suas misérias e dos seus fulgores. É o que ocorre com os poemas de denúncia da opressão social e contra a guerra (incluindo a Guerra do Iraque) –“Um Tempo Injusto”, “Um Vento de Coração Louco”, “Solitário é o Medo”, “A Criança em Nós”, “Dias de Traição”, “Os homens enlouqueceram”, “Solitário é o medo”, “Sem piedade”, “Sombras sem vida”, “A relva é azul”, “Nos labirintos da dor”, “Simplesmente”…

A mesma variante de Santiago é utilizada nos poemas exaltantes de Lisboa (“Lisboa a despertar”), de Paris (“Liberté, j´écris ton nom…”), da mulher humilde das lezírias e da gíria da sua fala optimista (“a vida é bonita”), da “juventude” livre, bronzeada e hedonista (“cavalos azuis a galope/na praia deserta”) e da criançada veraneante (“Children by the sea”), os poemas de convivência e de interpelação dos habitantes da diáspora (incluindo as “mulheres do batuque”, antigas moradoras dos bairros degradados de barracas, e os jovens descendentes de imigrantes caboverdianos, desconhecedores dos íntimos odores da pátria longínqua dos ascendentes porque nascidos e crescidos nas respectivas pátrias natais de acolhimento e do seu perfeito conhecimento, neste caso Portugal (dos poemas “Um dia voltarão” e “Quando fores grande”).

É também o crioulo de Santiago, por vezes contaminado pelas ressonâncias de outras variantes de Sotavento, designadamente da Brava e do Fogo, que é utilizado nos poemas de expressão de uma sensibilidade lírica, de teor mais universalizante, por vezes radicada na paixão e na desilusão amorosas e nas suas alusões ao júbilo e à dor, nas suas ressonâncias nem sempre explicitamente nomeadas, como nos poemas “Um grito uma flor”, “Busco a paz”, “Na solidão da noite”, “Vou com o vento que passar”, “Uma estrela na mão”, “Bom dia meu amor”, “Aos apaixonados”, “Trago nas mãos o sol”, “Dedicatória”), também abrangente das misérias humanas e da ruína dos sentimentos puros primordiais (por exemplo em “Sombras sem vida” ou “Nos labirintos da dor”), também referente aos sentimentos contraditórios que evolam da marginalidade e da entristecida fisionomia de uma mulher e perpassam de cores simbólicas (lilás e azul) a alma da poetisa (como no belíssimo “A relva é azul”), também libertário (como em “Simplesmente” e nos belos na sua concisão poética “Apetece” (ser luz/no amanhecer/assim pura/leal/leve/quase neve//É tudo o que apetece”) e “Naturalmente” (“o luar entrou/pelas largas janelas da sala/e ficou em silêncio nas minhas mãos/naturalmente”), também regenerador do brilho da casa, (por exemplo, em “Apaixonadamente… a minha casa” (“No meu poema/nasce uma casa/é de pedra da terra/e telha francesa/as janelas azuis/do azul profundo/que vejo no mar da Preguiça/ (…) na casa do poema/há uma sala ampla e livre/onde o sonho vive/ (…) e o silêncio é apenas abandono”)…

É igualmente o que se pode constatar nas traduções para a variante de Santiago do poema “No teu aniversário/Na bu aniversáriu” e nos dois belos textos em prosa poética, de compaixão o primeiro texto (“Pensamentos Feridos Para Um Poeta muito Amado/Pensamentus firidu pa un poeta amadu”), elegíaco o outro (“Última carta a Eugénio de Andrade/Últimu karta pa Eugénio de Andrade”). Eugénio de Andrade que é assumido e cantado nos textos acima referidos como o poeta amado e muito reverenciado da autora do texto original em português.

 

  1. Breve parêntesis a propósito do Alfabeto utilizado na escrita da versão em crioulo 


  2. Permita-se-me um breve parêntesis para tecer algumas breves considerações sobre o alfabeto utilizado para a escrita das versões em crioulo, tanto dos poemas em verso (a grande maioria) como dos dois textos de prosa poética, de Sonhu Sonhadu.

Pois bem: o alfabeto utilizado é o célebre, e, para alguns dos seus detractores mais activos e empedernidos, também famigerado ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-verdiano).

Ao optar pelo ALUPEC e ao anuir com essa opção, tanto o autor do texto traduzido (aliás, um experiente professor de língua caboverdiana nesta extraditada do império) como a autora do texto original em português demonstram uma inexcedível coragem cívica, mostrando-se à altura das actuais exigências da dignificação da língua materna caboverdiana, dignificação essa que, precedendo a sua plena oficialização em paridade com o português como estatui a nossa Constituição, também passa pela sua escrita num alfabeto cientificamente fundamentado, alicerçado nos mais sólidos e recentes conhecimentos da linguística e da crioulística e, por isso, propiciador da paulatina unificação da ortografia da língua caboverdiana com o necessário respeito pelas singularidades próprias da nossa língua e pelas especificidades de cada uma das suas variantes insulares ou regionais, todas elas resultantes das suas características fonético-fonológicas, lexicais e morfo-sintácticas. Nesta óptica, as traduções em crioulo constantes de Sonhu Sonhadu vêm desmistificar, sem apelo nem agravo, alguns tabus e preconceitos, provando em letra de forma do livro ora em apresentação, ademais lavrada em atraente linguagem poético-lírica, que o ALUPEC faz e vem fazendo plenamente jus ao seu qualificativo de alfabeto unificado para a escrita do caboverdiano e às suas advenientes pretensões de poder servir para a escrita de qualquer variante da nossa língua, na medida em que se institui como instrumento de grande eficácia, de indesmentível funcionalidade, de requerida economicidade e de visível e audível fidelidade na escrita dos sons e dos fonemas característicos tanto das variantes de Sotavento como das variantes de Barlavento nas quais os poemas e outros textos similares de Sonhu Sonhadu são traduzidos. Anote-se neste contexto que o autor da tradução, o conhecido escritor e professor de língua caboverdiana Viriato de Barros, opta por tomar partido por algumas das propostas mais emblemáticas do Fórum da Praia de Dezembro de 2009, as quais nem sempre mereceram a concordância do Ministro da Cultura da altura, o homem das letras, reputadíssimo académico e perito em crioulística caboverdiana, Doutor Manuel Veiga e, assim, não tiveram acolhimento no Decreto-Lei que actualizou o ALUPEC e marcou a sua transição do estatuto de alfabeto experimental para a escrita da língua caboverdiana de que gozava desde 1998 para o mais estabilizado estatuto de alfabeto oficial para a escrita da língua caboverdiana. Diga-se em breve parêntesis a este propósito que o que ocorreu pois foi a mudança do estatuto do ALUPEC, e não a sua revogação e a sua transmutação em ex-ALUPEC, como pretendem alguns muito acérrimos defensores do alfabeto unificado de base fonético-fonológico e subscritores das propostas do supra-mencionado Fórum da Praia.

No que se refere às opções do Fórum da Praia acima referenciado e acolhidas pelo tradutor, trata-se da utilização do i (como conjunção copulativa) em lugar do y, para além da dispensa do e mudo (previsto para a escrita das variantes do nosso Barlavento, segundo proposta do Grupo para a Padronização do Alfabeto da Língua Cabo-Verdiana, proponente do ALUPEC) bem como de alguns acentos em algumas vogais abertas. Muito inovador parece-me a utilização do M (M maiúsculo) para a primeira pessoa do singular do sujeito em lugar do N único proposto desde o chamado alfabeto do Mindelo e retomado no ALUPEC. Desde modo, fica melhor retratado o princípio fonético-fonológico a cada fonema-um grafema (isto é, a cada som uma letra), basilar do ALUPEC. Tendo em conta os sólidos conhecimentos do autor das traduções e o seu domínio da língua caboverdiana em muitas das suas variantes, parece-me tratar-se de gralhas a utilização do N precedido de travessão e por vezes utilizado na função de complemento directo e complemento indirecto, bem com o m final de certos vocábulos.

Ressalta ainda o banimento do e mudo proposto pelos criadores do ALUPEC para, alegadamente, obviar, na escrita das variantes de Barlavento, a desagradáveis sequências consonânticas. A prática neste campo tem sido bastante diversificada: alguns autores têm feito uso do e mudo, enquanto que outros têm preferido utilizar o apóstrofo depois das consoantes para ressaltar a distinção das sílabas de um só fonema. Outros têm preferido conjugar as duas opções, reservando o uso do e mudo para as sílabas finais. O autor das versões em crioulo de São Nicolau de Sonho Sonhado prefere o uso do apóstrofo.

Diga-se neste contexto que a introdução do e mudo veio criar certas antinomias e incongruências no conceito básico (a necessária e biunívoca correspondência geral um fonema- um grafema no qual se funda o ALUPEC, na medida em que passa a atribuir valores fonéticos diferentes à letra. e.

O autor das traduções em crioulo parece todavia não escapar a algumas incongruências ao reduzir o uso de acentos ao mínimo admissível pelo ALUPEC quando se trata de versões na variante de Santiago (incluindo a sua dispensa nas palavras acentuadas na última sílaba, mas terminadas em s como “pas”, “rapas”, etc, em vez de “pás”, rapás; etc), proliferando os acentos para assinalar as vogais fechadas quando se trata de versões em crioulo de São Nicolau, nas quais é também notório o uso do z (“paz” e “rapaz” em lugar de “pás” e “rapás”, quiçá numa fidelidade absoluta à vertente mais fonética do princípio fonético-fonológico).

O parcimonioso uso de acentos nos poemas traduzidos para a variante de Santiago, concomitante com a sua proliferação nos poemas vertidos para o crioulo de São Nicolau, poderão levar-nos a induzir e a concluir que o crioulo de Santiago tende a funcionar como a variante-base, servindo a acentuação dos verbos e de outras palavras do crioulo de São Nicolau para marcar as suas características próprias, mesmo em relação a outras variantes de Barlavento (acentuação da última sílaba dos verbos, mas seu fechamento vocálico, à semelhança, aliás, de outras palavras).

Aproveitamos o ensejo para chamar a atenção para a necessidade de uma criteriosa e rigorosa revisão dos textos dados à estampa em língua caboverdiana. Encontrando-nos num importante momento de socialização do alfabeto oficial da língua caboverdiana e de experimentação de vários outros modelos de escrita da nossa língua materna, uns baseados no princípio etimológico e na adaptação do alfabeto português às sonoridades específicas da nossa língua, outros intentando aperfeiçoar o ALUPEC, outros ainda navegando nos mares revoltos e incógnitos da escrita sem qualquer princípio norteador que não seja aquele ditado pelo instinto e pelos hábitos de há muito arreigados no espírito, convinha que o leitor pudesse saber e distinguir o que advém da norma do que se sustenta em legítimas pretensões de inovação e de liberdade criativa numa escrita ainda em processo de construção. Neste como noutros domínios, o rigor e a coerência devem constituir traves-mestras e regras de ouro de quem se abalança a dar o seu contributo para a dignificação da língua identitária dos caboverdianos.

 

 

SONHO SONHADO: uma poesia de melancolia e leveza lírica radicada na diáspora e no chão sensível da alma 

 

A finalizar este breve excurso à poesia de Sonho Sonhado, assinale-se que, em traços gerais, a mesma pode ser caracterizada como uma poesia que emana de uma sensibilidade primacialmente radicada na diáspora.

Essa característica denota-se não só nos poemas de estrita temática diaspórica, mas também em duas outras dimensões fundamentais:

Primeiramente, aquela que evola do olhar cosmopolita de quem estando e situando-se no vasto mundo habitado pela sua alma habituou-se a ver esse mesmo mundo como lugar seu legítimo e os seus habitantes como seus semelhantes e próximos na auscultação dos rumores e dos mananciais todos da humanidade.

A segunda dimensão dessa sensibilidade radicada na diáspora detecta-se no olhar que lança sobre as ilhas. Olhar de quem regressa depois de longa separação da terra-mãe, de iniciais estranheza e choque, de ulterior entranhamento nas coisas da terra, como nos poemas “O silêncio dos poetas” (“acabo de chegar ao lugar/onde tudo é real (…)”, “Regresso à terra” (muito conseguido e especialmente tocante na sua versão em crioulo de São Nicolau: “Estás só/De longe avistas a Vila/aberta ao sol/de Agosto (…) /ninguém te conhece/não conheces ninguém (…) Bô sta bu só/dakel ólt/bô ta odjâ Stanxa/abrid diant d´sol/d´mês d´Ágost (…) ningen ta konxeb/ bô ka ta konxê ningen (…)”, “Seca” (“Não gostaria de ter visto/a seca a crescer/a boa terra a gretar (…) /mas vi”). Olhar sobre o povo das ilhas e as suas agruras e as suas imaginadas ou reais potencialidades lançado a partir de um lugar situado na terra-longe, mesmo quando se trata de um olhar presente e efectivamente regressado à terra-mãe, pois que, também neste caso, é a terra-longe o lugar da distância que tornou possível preservar o tempo anterior à visão da devastação actual e, assim, permitiu conservar as imagens de outrora, do perdido paraíso das águas (na expressão do poeta Nzé de Sant´y Ago) e, assim, possibilita a transfiguração da aridez dos sentimentos e das coisas em nostalgia regeneradora desses mesmos sentimentos e coisas mediante a contraposição entre o passado das coisas vivas e a sua ruína actual, como se pode constatar no poema “Seca”, ou em tempos vindouros mais auspiciosos, neste caso mediante a mobilização dos recursos optimistas da esperança e do onirismo, como no poema “Sem o rumor das lágrimas”, por vezes também mediante a abordagem onírica/escapista do poema “Se o mar fosse milho/”, ou uma aproximação evasionista/pasargadista, como ilustrada no poema “Sonhei uma ilha”, ou finalmente, mediante o reencontro com a fraternidade do abraço amigo e acolhedor como no poema “Regresso à terra” (“estás só/ (…) ninguém te conhece/não conheces ninguém/ (…) mas/alguém toca-te/um abraço familiar/uma gargalhada sonora/a tua alma alegra-se/nada mais te dói/a terra acolhe-te/sorri hospitaleira”) e a recordação do afago carinhoso, como no poema “Alma Solitária” (“A velha Antónia/ensandeceu/vagueia pelas ruas da nossa Vila/entoando em voz melódica cadenciada/cânticos e aleluias ao Senhor e à Virgem Maria (…) comove-me esta mulher/das ilhas/o meu coração magoado/corre a confortá-la/e solta no ar um beijo/de ternos carinhos/pobre Antónia/ que ensandeceu/doce alma solitária/que um dia sorriu-me feliz”).

Concluindo: o livro Sonho Sonhado e as suas outras versões em crioulo e em inglês integram um conjunto de cinquenta e três poemas (textos em verso livre) e dois textos em prosa poética, ambos dedicados ou elaborados em homenagem ao poeta Eugénio de Andrade e à sua obra poética.

 

Ressalta, desde a primeira leitura dos poemas e dos dois textos em prosa poética, o intenso lirismo e a indeclinável suavidade que os perpassam e, aliás, têm caracterizado a maior parte da poesia de Carlota de Barros, incluindo aquela constante dos dois livros anteriores (A Ternura da Água e A Minha Alma Corre em Silêncio). Creio serem essa ternura lírica e essa melancólica suavidade, essa contagiante amabilidade do olhar que concedem à poesia de Carlota de Barros um lugar singular no geral panorama literário caboverdiano contemporâneo.

Como é por demais sabido, o panorama actual das letras caboverdianas tem-se caracterizado por uma grande diversidade de estilos literários e de correntes estéticas, podendo-se até afirmar que, do mesmo modo que “cada criatura humana é uma raça”, no dizer original aproximado de Mia Couto e no sentido de cada um (de nós e dos nossos semelhantes) ser portador singular da sua pessoalíssima e intransmissível humanidade, na hodierna literatura caboverdiana cada poeta é, em si, uma estética e uma corrente estética, o que, a ser verdade, contribui sobremaneira para o aumento da diversidade formal e temática e, assim, da riqueza da nossa já mais que secular literatura, dada a exiguidade do país e das suas populações, mesmo se considerado o nosso índice per capita de poetas e escritores e, sobretudo, de bons poetas e escritores e as suas extensões por todas as nossas diásporas espalhadas pelo mundo. Diásporas essas, aliás, sublinhe-se de novo, literariamente assaz produtivas como comprovam as obras produzidas em longes terras por Guilherme Dantas, Manuel Lopes, António Nunes, Aguinaldo Fonseca, Nuno Miranda, Teobaldo Virgínio, Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Yolanda Morrazzo, Orlanda Amarílis, Maria Margarida Mascarenhas, João Manuel Varela, Mário Fonseca e, entre os muitos e profícuos integrantes das gerações pós-independência, Carlota de Barros.

Na verdade, uma das mais evidentes conquistas da nossa independência política e dos nossos mais recentes tempos de produção cultural, foi a firme ancoragem no nosso solo artístico e nas nossas mentalidades de artífices da palavra ciosos da liberdade de criação cultural e dos seus irrestringíveis mandamentos do pluralismo estético e dos correspondentes reconhecimento e legitimação estético-ideológicos das mais diferentes escolas literárias e das mais diversas estirpes e oficinas poéticas, mesmo se aparente e quantitativamente tendendo à precariedade, porque suportadas por escassíssimos cultores e por um reduzido e ainda menor número de epígonos.

A leveza lírica, a amável doçura, a suave ternura e a onírica melancolia que perpassam e impregnam a grande maioria dos poemas de Carlota de Barros contribuem sobremaneira para a diferenciar da restante poesia caboverdiana mais próxima dos nossos tempos, incluindo de grande parte daquela cultivada por outras mulheres, como Yolanda Morazzo, Vera Duarte, Ana Júlia Macedo ou Dina Salústio, por vezes catalogada como escrita feminina, outras vezes exaltada como escrita feminista, por nós recorrentemente denominada escrita no feminino.

Como é sabido, quiçá motivadas pelas pugnas de emancipação social, política e humana, incluindo por aquelas mais atinentes à condição e ao género femininos, as autoras acima referidas optaram, as mais das vezes e sem prejuízo da relativa diversidade temática e formal do seu estro poético, pela maioritária utilização de uma linguagem contestatária, de teor amiúde virulento, mesmo se por vezes também marcada pelas panfletárias lamentações do choralutismo e pela nostálgica amargura que evola da sofrida humanidade dos seres humanos retratados. A mesma linguagem de irritada postulação da fraternidade, no dizer de Aimé Césaire e retomado por Mário Fonseca, também se detecta na grande maioria dos poemas de pulsão amorosa das poetisas acima referidas, muitas vezes também eles delirantes e desvairados, em suma apaixonados no desferimento da palavra amorosa e tesa (no sentido obviamente de excitada).

Parecendo retornar à simplicidade das coisas simples da nossa terra, às cenas quotidianas, amiúde banais, frequentemente retratadas na poesia de Jorge Barbosa, da qual, aliás, se aproxima pela abordagem chã, por vezes crua, por vezes amorosa, de alguns temas telúricos mediante a utilização de uma linguagem nua (infelizmente, demasiado nua nalguns casos) no seu fraterno e despojado humanismo, a poesia de Carlota de Barros demarca-se todavia nos seus momentos de maior autenticidade humana e de mais apurado conseguimento estético da poesia cultivada pelo grande vate claridoso do evasionismo e das humildes ressonâncias das coisas e dos seres das nossas ilhas outrora resignadas ao seu secular destino de abandono, por nele (no sacrossanto vate claridoso) ser mais evidente a trágica dimensão do modo de abordar e das coisas abordadas, enquanto que na poetisa, não obstante a presença de alguma tragicidade, sobreleva a amorabilidade e o suave lirismo do olhar que, deste modo e como referido anteriormente, logram muitas vezes transmutar a tragédia em funda nostalgia e contagiante melancolia. Em Jorge Barbosa, assiste-se in loco do olhar dilacerado à quotidiana miséria, testemunha-se as sequelas contemporâneas de meio-milénio de desventura, convive-se com a desolação e com a tragédia das devastadoras fomes, indaga-se a morte nos corpos esfaimados e moribundos das vítimas das secas, interpela-se os poderes dominantes na metrópole de então e os mandarins da província/colónia que fomos, por vezes de forma ironicamente reverente e reverencial, conclamando o abandono, a incúria, a desfaçatez dos poderes instituídos, interrogando a história, compenetrando-se dos ditames da misericórdia cristã, narrando e descrevendo por vezes de forma minuciosa, mas quase sempre fomentando a irrupção da comoção mediante a trágica encenação que, afinal, é pura escrita da factual presenciação das tragédias constatadas in loco do inominável e interminável sofrimento. É certo que também em Carlota de Barros se recorre a esses estratagemas de expressão da revolta e de enunciação da denúncia. Para o comprovar está aí o poema “O povo das ilhas”, de crítica social e de virulenta interpelação dos poderes instituídos para a solução dos problemas do povo das ilhas, designadamente da Brava e de São Nicolau (“O povo das ilhas/pede terra para lavrar/e espera que lhe dê milho/para semear/o povo das ilhas veio de longe/e confiou a sua alma/às tuas promessas/não atraiçoes/ com palavras vãs (…)”. Sintomaticamente dedicada à memória de Ovídio Martins, ressalta todavia o nítido parentesco deste poema com “Um poema diferente”, de Onésimo Silveira.

Contudo, em Carlota de Barros, a compaixão que nasce do confronto com as situações de subjugação e de anomia social e com os estados de sofrimento das criaturas humanas sublima-se amiúde em melancolia mediante a convocação quer de um passado mais auspicioso, entranhado na fraternidade e na rememoração das águas paradisíacas que banharam a sua infância e o passado das ilhas (a ternura da água, da linguagem da poetisa), quer das potencialidades primevas e primaveris de um olhar fraterno e amável (mesmo que de forma imaginária ou sublimada) sobre as coisas e os seres humanos que as tecem e refazem ou delas são vítimas quase predestinadas, como no poema “Alma Solitária” e em outros poemas do mesmo quilate compassivo e de idêntica sensibilidade, referidos anteriormente. Essa característica da arte literária de Carlota de Barros é também particularmente evidente nos poemas de expressão do amor, obviamente de cariz mais lírico. Mas é também evidente nos poemas de cariz telúrico, sobretudo quando a linguagem não se prende em demasia às armadilhas do versilibrismo, como se verifica em alguns (felizmente poucos) poemas, e, por isso, se torna refém de uma linguagem demasiado directa, prosaica e coloquial, sem todavia lograr atingir os efeitos de comunhão e comoção estéticas amiúde induzidas, por exemplo, pela aparente simplicidade de meios estéticos e pela narratividade factual da poesia de Jorge Barbosa. A mesma leveza terna e melancólica envolve igualmente os poemas de revolta e de consternação de Carlota de Barros ante a guerra, a miséria e outros males do mundo contemporâneo, se bem que nalguns poemas incidentes sobre estas odiosas problemáticas se detectem os constrangimentos formais acima referidos para alguns poemas de feição telúrica. Tal ocorre quando e na medida em que a abordagem se torna demasiado crua, sobretudo quando a poetisa opta por renunciar à utilização dos meios próprios da linguagem literária específica da arte da poesia, contaminando-se assim essa poesia de um teor mais panfletário, mesmo se politicamente correcto ou exactamente por causa disso. Nesses casos, parece emanar o poema não da autenticidade sensível da alma humana tocada pela dor e pela compaixão, mas de um imediato estado de necessidade, que se quer mais vociferante do que pungente na urgência em expressar a consternação rebelde e a revolta política, à semelhança, aliás, e de modo quase idêntico aos demais circunstantes (incluindo os activistas políticos e os rebeldes profissionais da alterglobalização) da turbulência que assola as periferias das grandes cidades (incluindo de países mais desenvolvidos) e as vastas extensões terceiro-mundistas do nosso planeta e das advenientes injustiças e tragédias contemporâneas, infelizmente assaz banalizadas pela sua excessiva e anestesiante mediatização.

Como já referido, a poetisa assume num poema em verso e em dois textos em prosa poética constantes de Sonho Sonhado a força demiúrgica e inspiradora que a poesia de Eugénio de Andrade exerceu e vem exercendo sobre a sua verve literária e a sua oficina poética, convocando as obras do insigne poeta português, mas sobretudo convocando a sensibilidade e o estilo característico desse grande poeta lusógrafo, como se nota da seguinte citação do texto em prosa poética “Pensamentos feridos para um poeta muito amado:” a ti devo todas as sílabas dos meus versos, toda música, a luz, o oiro, o ardor dos meus simples poemas. A ti devo este amor solar pela poesia, esta ternura de orvalho pelos búzios, pelas pedras, pela respiração do vento, pela música sublime do silêncio das estrelas (…) Chamam por ti os poetas da chuva, da memória dos dias, dos sulcos de sede. Têm pássaros fechados na mão”. No mesmo texto, fazem-se referências a laranjas maduras, fulgor das maçãs, brancura da cal, à beira de ser água e outros signos e imagens característicos da escrita e das obras de Eugénio de Andrade, cujas mãos, no dizer de Carlota de Barros, “soltam música e silêncio no coração do mundo”.

Procede-se do mesmo modo em “No teu aniversário” e “Última Carta para Eugénio de Andrade” remetendo-se expressamente para os títulos de obras do poeta da casa da Foz como as mãos e os frutos e ostinato rigore.

Conclua-se com esta citação de “Última Carta a Eugénio de Andrade”:“Ouço-te no silêncio do orvalho sobre o coração da terra, como o som harmonioso das primeiras chuvas sobre as telhas. Vejo o teu olhar de criança escutando a respiração vagarosa dos montes, imaginando a delicadeza da flor da água que não chegaste a saber como era (…) Como disseste na elegia a Che Guevara, digo-te também: “cada palavra tua é um homem de pé”. E digo-te mais: “ Cada palavra tua é a verdade, é o amor, é um bago de cristal puro na guerra dos mundos”.

Creio residir na força inspiradora desse estilo e da sua escrita enxuta, plasmada na força elementar dos sentimentos, na transparente essência das coisas primordiais, na sua (ir)reflectida palpitação nos seres e nas cores solares do dia o que de mais positivo Carlota de Barros quis tomar emprestado ao seu poeta amado (como, aliás, ocorre de forma quase idêntica, porque em menor medida, com o algo que também toma de Sophia de Melo Breyner Andresen para o transfigurar com a suave força da sua palavra sensível na mais autêntica amorabilidade, certamente bafejada também pela lira de Eugénio Tavares).

Sentimo-nos leves, a mais das vezes, ao lermos a poesia de Carlota de Barros. Sentimo-nos entranhados do lirismo que habita grande parte dos seus poemas. Sentimo-nos comovidos com os poemas, sentimo-nos comovidos com os seres que neles deambulam os seus estados de alma, sentimo-nos comovidos connosco que os acompanhamos nos poemas porque sentimos que também esvoaçamos com as brisas e as asas que fazem pairar a sua alma sobre as coisas simples, sobre as breves vicissitudes, sobre os sentidos perfumes, sobre as comoções e os espantos todos que perfazem o mundo da sensibilidade humana e testemunham a perenidade e a beleza do mundo natural dos seres humanos, mesmo quando conspurcados e despojados da razão, dos seus direitos mais elementares e, assim, das bases de uma existência sustentada na dignidade.

Ainda mais quando bebemos essa poesia nas nossas duas línguas de labor literário, o crioulo caboverdiano e o português, ainda quando nos sabemos acompanhados pelos nossos semelhantes leitores da versão dos poemas em inglês.

 

por José Luís Hopffer Almada
A ler | 7 Julho 2014 | Cabo Verde, crioulo, ensaio, Literatura, poesia