Louca verdade e outros (in)verosímeis desatinos, paradoxos e incongruências do quotidiano

(Prosopoema iniciado por Alma Dofer Catarino, mas depois mental e mortalmente contaminado de modo atroz por incursões discursivas de Dionísio de Deus y Fonteana, Erasmo Cabral de Almada e Tuna Furtado Lopes, envergando ambos os pseudo-heterónimos poéticos e ambos os pseudónimos literários de José Luís Hopffer C. Almada as vestes esquizofrénicas - incluindo as póstumas - do louco predilecto da cidade)*

“A arte fica, o comentário petrifica” - Ruy Belo

À memória de e em homenagem a Caló de Dona Tina, malogrado e estimado amigo e camarada da brincadeireira infância assomadense e das expectantes juventude e maturidade praienses

 

Primeira parte 

Dos inauditos e translúcidos sentires do corpo e da primeira aparição em tom ríspido e feições comicieiras da voz cabralista do louco predilecto da cidade

Às vezes, convencemo-nos que o destino nos persegue. Ou que, prosseguindo os obscuros caminhos da noite, trilhando os aturdidos e fenecidos atalhos da insónia, perseguimos o destino.
Medito nisso agora, num turvo momento de lucidez, em que nem sequer sinto o meu corpo. Aliás, em que me sinto irremediável e visceralmente guilhotinado: o corte total entre a cabeça e o corpo, entre o cérebro e os andrajos da noite, entre o torso e o resto que se lhe segue como crepusculares invólucro e espectro da mente, entre a lucidez e a comiseração, entre a comiseração e o pudor, entre o pudor e a vergonha…
A comiseração e a vergonha de ter ontem escutado e escrutinado o louco predilecto da cidade num grande comício perante os transeuntes indiferentes. É verdade que o louco predilecto da cidade falou e explanou sobre realidades por demais visíveis, como:
i. O desemprego galopante que assola o ressequido meio rural caboverdiano e as hostes exasperadas das populações suburbanas das cidades, com especial incidência nas mulheres, de há muito insatisfeitas com o seu estatuto de mães-de-filho reduzidas à extenuante domesticidade dos lares periclitantes, da irresponsável ausência dos seus pais-de-filho absolutamente ignorantes dos seus deveres paternais e das suas eventuais, ainda que muito intermitentes, obrigações de assistência, de apoio e de prestação de alimentos em face da rude má-criação dos seus comuns rebentos,  bem como nos adolescentes e nos jovens, desde há muito assaz carecidos da devida preparação para os desafios da vida adulta e bastas vezes defraudados nas suas expectativas de acesso aos ensinos liceal, profissional e técnico e de frequência dos ensinos universitário e politécnico.

 

ii. A pequena corrupção omnipresente e omnisciente, insinuando-se imparável e indeclinável por todos os poros da sociedade em esperta reciclagem das muito sedimentadas e herdadas - outrora muito produtivas e moralmente sustentáveis - solidariedades familiares, clânicas, comunitárias e insulares.

iii. As Frentes de Alta Intensidade de Mão-de-Obra, oficial, solene e adequadamente baptizadas como FAIMO (e nesta instância do discurso, digo da predicação, ou, melhor dito, da peça oratória, nesse imaginado teatro de rua, comoveu-se (pro) fundamente o louco predilecto da cidade, assomando-se-lhe ao rosto lívido nítidos laivos de uma contida revolta) e tragicamente conjugadas com a baixa intensidade da esperança dos seus mal-remunerados, míseros e sub-empregados trabalhadores braçais, (in)distintamente homens e mulheres, (in)diferenciadamente jovens e idosos, (des) igualitariamente deficientes e plenamente sãos de corpo e mente, todos fiscalizados no seu áspero e extenuante labor sob o sol incendiando-se  inclemente e brilhando nos céus esvaziados de nuvens e de outros eventuais sinais nutrientes da esperança de chuvas pelo atento olhar dos capatazes, amiúde arbitrário, férreo e omnipotente, e, não raras vezes, pela sua benevolência, umas vezes solidária e humanista, outras vezes compreensiva e condescendente. Todos eles eram igual e invariavelmente denominados pela palavra demagógica dos comissários políticos de serviço como heróis anónimos do povo das ilhas, destacando-se de entre eles os que se distinguiam  especialmente pela sua abnegada e honrada entrega a uma ética do trabalho humilde e honesto, muito característica do homem rural das ilhas, e, assim, se inscrevendo como os melhores filhos do povo simples e humilde, tantas vezes indigente destas ilhas martirizadas, amiúde imerso no trabalho braçal que lhe foi destinado e voluntariosamente por ele abraçado em face das prementes necessidades dos filhos pequenos vulneráveis, dos pais idosos e, tal como os próprios, criaturas humanas nascidas para a desgraça, prestes a claudicar em face das muitas fraquezas do seu corpo, do seu espírito e da sua alma. Trabalho braçal esse considerado gloriosamente produtivo mas quase gratuito porque dotado de remuneração suficiente somente para assegurar a sobrevivência física no limiar da miséria, deste modo militante e patriótico concitando esses mesmos distintos e distinguidos émulos dos seus colegas laboriosos nos trilhos insepultos do rosto crã do desespero o respeito, a compaixão, a confiança e a camarada fraternidade desses outros verdadeiros e autênticos melhores filhos do nosso povo,  muito cientes de si próprios e ciosos desse (a)tributo estatutário alegadamente meritocrático. 

(Chegado a este ponto, não mais conteve o louco predilecto da cidade a comoção e a irritação das palavras de há muito em estado de meditação, por isso não poupando nem na ironia e no humor cáustico, nem tão pouco na explanação e na ostentação do saber marxista revolucionário dos seus antigos tempos de jovem oficial das FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo), cursado e formado nas academias militares de Cuba e de outros países socialistas, e de leitor curioso, atento e assíduo das obras de Marx, Engels, Lenine, Estaline, Trotsky, Mao Tsé Tung, Ho Chi Mih, Nguyen Van Giap, Franz Fanon, Albert Memmi, Clemente Zamora, Kwame Nkrumah, Ernesto Che Guevara, Fidel Castro, Samora Machel, Nelson Mandela e o nosso sempre presente Amílcar Cabral)

Relembre-se neste contexto que o conceito/expressão  melhores filhos do nosso povo foi possivelmente criado ou, pelo menos, reinventado e muito utilizado por Amílcar Cabral para se referir àqueles filhos dos povos da Guiné e de Cabo Verde que se evidenciavam pela sua entrega total às crescentes exigências da luta de libertação nacional e social e à cada vez mais indefectível defesa dos interesses das populações, sempre com elevado espírito de patriotismo e sentido de missão fundados numa ética imbuída de solidariedade humanista e de respeito pela dignidade do outro, velho, adulto, jovem ou criança, homem ou mulher, alto dirigente, responsável político, comandante militar ou simples lavrador, médico, enfermeiro, professor, engenheiro, estudante ou miliciano, consubstanciando-se tal qualificativo nas circunstâncias históricas concretas das suas criação, reinvenção e utilização originais como expressando e significando a activa participação dos respectivos protagonistas nas mais diversas formas e modalidades de defesa dos interesses das gentes das nossas terras, diversamente posicionadas a nível  cultural e  económico-social e assaz diferenciadas do ponto de vista político, da luta pela emancipação social, cívica e cultural bem como pela libertação política bi-nacional dos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. 

Ademais, quis significar Amílcar Cabral com a mesma expressão aqueles filhos dos povos da Guiné e de Cabo Verde que através da natural selecção possibilitada e mediada pelas exigências da luta nos mais diversos campos, frentes e áreas de actividade se (de)monstrassem à altura de poderem ser considerados não só como guineenses e caboverdianos, isto é, como filhos  da Guiné e/ou de Cabo Verde no sentido  cultural-identitário, mas também como nacionalistas e patriotas  comprometidos com a libertação política das nossas terras africanas, por isso, passíveis e susceptíveis de legitimamente integrarem tanto a  população das nossas terras africanas enquanto categoria meramente demográfica e antropológica, mas também de integrarem o povo, enquanto categoria historicamente definida como constituída do conjunto daqueles elementos de uma dada população atuantes a favor do progresso social, cultural, económico, político ou outro dessa mesma população integrada  numa dada sociedade num contexto histórico determinado pelos seus respectivos ventos predominantes. É nessa dialética que ele considerava que com o desenvolvimento da luta e da sua culminação na obtenção das independências políticas dos nossos países, chegar-se-ia a um novo patamar de  contradições em que nem todos os militantes da causa da emancipação e da soberania política (por isso, num determinado contexto histórico considerados membros legítimos do partido-movimento de libertação nacional enquanto organização política que reúne nas suas fileiras  o mais amplo e maior número possível de militantes nacionalistas e patriotas) poderiam ser considerados como verdadeiramente identificados com o ideário do partido enquanto organização política de vanguarda visando a construção gradual nas  nossas terras africanas de uma sociedade democrática e progressista por  mor da sua natureza anti-colonialista, anti-neocolonialista e anti-imperialista, visando a longo prazo a extirpação do seu seio da exploração do homem pelo homem e de qualquer tipo de sujeição das criaturas humanas (em especial, dos filhos da Guiné e de Cabo Verde) a interesses egoístas  e degradantes de indivíduos, de grupos ou de categorias sociais, conforme tempestivamente lavrado no Programa Maior do Partido. 

Partida, de Kiki LimaPartida, de Kiki Lima

Tal diferenciação selectiva seria, segundo Amílcar Cabral, de grande relevância como critério, sempre mutável consoante as circunstâncias, as exigências e os desafios históricos, para se distinguir aqueles militantes da causa da libertação nacional que podem ser considerados como sendo dignos de fazerem parte do partido enquanto organização política de vanguarda dos melhores filhos dos povos das nossas terras africanas da Guiné e de Cabo Verde daqueles indivíduos que na nova fase pós-colonial da luta  em nada se destacam enquanto militantes do partido-movimento de libertação nacional, mesmo sendo detentores e titulares de altos cargos políticos, militares, judiciais, burocrático-administrativos ou outros. Neste sentido, o conceito/expressão melhores filhos dos povos das nossas terras africanas da Guiné e de Cabo Verde tem em Amílcar Cabral um alto sentido ético e uma elevada conotação moral, roçando quase uma presumida superioridade moral (também ela presunçosa? Podemos perguntar-nos com toda a legitimidade, mas essa adjectivação seria dificilmente aceitável no âmbito da interpretação da obra de Amílcar Cabral, na qual as questões morais, não somente as mais corriqueiras, mas também as atinentes às condutas, aos comportamentos, às atitudes e às posturas, detêm uma especial significação, por exemplo, para o chamado “suicídio da “classe pequeno-burguesa de serviços” burocrático-administrativos, técnicos, científicos e, em geral, intelectuais.
No caso vertente - relembre-se que expressamente remetido para as circunstâncias específicas e muito concretas de um Cabo Verde recentemente erigido em país soberano e independente e confrontado com um generalizado e quase unânime juízo da comunidade internacional de conformação e/ou de resignação com a condição da sua patente e congénita inviabilidade económica em razão da sua gritante carência de recursos económicos e naturais conhecidos, do abandono e da negligência coloniais em relação à colónia/província ultramarina duradouramente denominada arquipélago da fome província mártir e, concomitantemente, as crónicas ausência e falta por parte das diferentes autoridades coloniais da adopção atempada de medidas adequadas para garantir a sustentabilidade da economia caboverdiana, a sobrevivência e a existência em condições dignas do povo caboverdiano contra a sua resignação e o seu fatalismo face às mortandades provocadas pelas estiagens cíclicas e a outras periódicas calamidades climatéricas e a outras sucessivas tragédias históricas, como a sua multissecular submissão à escravatura e a sua duradoura sujeição ao trabalho serviçal semi-escravo nas plantações e nas roças do Sul-Abaixo; as relativas insuficiência e indisponibilidade de quadros técnicos e científicos média e altamente qualificados, ademais num país fustigado por um longo ciclo de secas severas quase-permanentes (o que no caso caboverdiano implica necessariamente a traumática rememoração das consequências mortíferas das estiagens periódicas passadas), outrossim, florescendo, sobrevivendo e/ou padecendo sob o autoritarismo revolucionário de um regime socializante de partido único, se bem que em regra tido por assaz mitigado -  e, por ora, abstraindo da falsidade e da infâmia que os impenitentes detractores do muito respeitado teórico e pedagogo político Amílcar Cabral passaram a colar a esse controverso conceito (tal como, aliás, igualmente, aos conceitos de povocamarada e população e às expressões homem novopátria africananação africana forjada na luta e outros constructos teóricos culturalmente erigidos e historicamente situados), quiçá fazendo jus à imagem, assaz recorrente e visível nestes tempos pós-coloniais, a expressão melhores filhos do no nosso povo vem sendo aberta e jocosamente utilizada pela vox populi como sinónima de uma eventual pertença da classe política governante e dirigente nas ilhas e na antiga república-irmã continental-africana a uma casta exclusiva e privilegiada integrada por uma certa e identificada nomenclatura burocrática e político-partidária. 

Por isso e pretendendo dissecar melhor a questão para a compreensão geral de todos, apraz fazer (con)verter a expressão os melhores filhos do nosso  povo referindo-a para em concreto designar os integrantes e os sucessivos aspirantes e postulantes em diversos graus de apossamento do poder político do Estado e nos diferentes degraus de ascensão aos lugares cativos da nomenclatura do Partido, o qual e por mor da sua incontestável legitimidade histórica adveniente dos incontáveis sacrifícios consentidos na luta político-militar e na mobilização política para a libertação bi-nacional no chão das duas Guinés e nas diásporas guineenses e caboverdianas assim como na pugna diplomática junto dos países aliados, das organizações da sociedade civil, das personalidades e dos partidos amigos bem como das instituições internacionais de referência, agora acrescidos das muitas agruras ainda hoje suportadas e felizmente superadas pela sua admirada e frutificada sagacidade na não menos difícil e complexa, mas igualmente exaltante e gratificante saga heróica da reconstrução nacional,  foi instituído como força política dirigente do estado e da sociedade, bem assim e enquanto partido das classes trabalhadoras muni(cia)do de uma ideologia revolucionária cientificamente fundamentada, como vanguarda das organizações de massas e das demais organizações sociais representativas dos interesses das mais diversas e diferentes forças vivas do povo das ilhas e diásporas. Desta forma e nestes modos, pôde o Partido Africano da Independência ser um actor político central e agir  como um amplo movimento de libertação nacional no poder no quadro do regime da democracia nacional revolucionária. Relembre-se que a democracia nacional revolucionária foi a denominação oficial adoptada pelo III Congresso do PAIGC de 1977 para designar o regime socializante bi-nacional de partido único, tendo a mesma democracia nacional revolucionária sido instituída como a forma mais adequada de organização de um sistema político de assembleia dotado de um órgão legislativo e deliberativo de âmbito nacional, denominada  ANP (Assembleia Nacional Popular), constituída no mais importante órgão do poder do Estado e eleita por voto universal, directo e secreto de todos os cidadãos eleitores (sendo que, segundo a Lei da Organização Política do Estado, mais conhecida pela sigla LOPE, e, a partir de 1980/1981, da Constituição da República, o Presidente da República é eleito pela Assembleia Nacional Popular, o mesmo ocorrendo com o Primeiro-Ministro proposto pelo Presidente da República), de órgãos executivos (os Delegados do Governo) e deliberativos (os Conselhos Deliberativos) designados pelo Governo para exercer o poder político-administrativo a nível do local. Parece ademais  cristalino que  todos os acima referidos órgãos do poder político  são constituídos no quadro e adentro de uma lógica política que tem por inamovível fundamento a indivisibilidade da soberania popular baseada na unicidade do poder político unitário do Estado, bem como de um poder judicial sempre politicamente comprometido com o progresso social, se bem que formalmente independente porque orgânica e funcionalmente dotado de juízes e procuradores do Ministério Público nomeados pelo poder político para administrarem a justiça e decidirem, dirimindo os conflitos de interesses segundo a lei e a sua consciência, sendo que o conjunto do sistema acima delineado deve ser assente primacialmente na unidade nacional do povo caboverdiano nas ilhas e diásporas e numa ampla e inquebrantável aliança de todas as classes e categorias sociais nacionais. 

Assinale-se neste contexto que os fundamentos, os princípios e os objectivos anteriormente trabalhados, elaborados e consignados no Programa Maior do Partido -  assim tornado fonte inspiradora da mobilização para a luta e da saga da tomada do nosso destino nas nossas próprias mãos - e procurados escrutados e encetados desde a hora zero da República em julho nosso orgulho para a (re) construção paulatina e segura no chão das nossas ilhas dos alicerces de um país novo rumo à sociedade futura alavancada por um homem novo e fundada na dignidade da pessoa humana, na defesa dos interesses do povo laborioso e na satisfação das necessidades mais prementes do país, em especial das suas camadas mais carenciadas e vulneráveis, e definitivamente isenta da exploração do homem do homem, da fome, da miséria, da ignorância e do medo, como, aliás, magistralmente propugnado e fundamentado por Amílcar Cabral. 

Anote-se ademais, como também fez questão de sublinhar o louco predilecto da cidade, que tudo isso que vem sendo constantemente proclamado urbe et orbe nas ilhas e diásporas se deve desenrolar e desenvolver-se (nos tempos que certamente hão-de vir e irromper de forma previsivelmente disruptiva e, até, explosiva, se não se precaver e se prevenir com a tempestiva adopção das medidas políticas e económico-sociais devidas e pertinentes, como, aliás, alertado no poema/canção “Conjuntura”, do grande poeta e assertivo músico-compositor Kaká Barboza) não nos termos depois cogitados, proclamados, defendidos e impostos pelos vindouros mandatários políticos dos futuros oligarcas, hierarcas e de outros cortesãos, de entre os quais obviamente pontificarão os inevitáveis cleptocratas (certamente enquanto fautores necessários, se não imprescindíveis, da generalização e da quase-normalização da grande corrupção, sobretudo nos domínios das privatizações das empresas públicas para benefício directo maioritário das multinacionais, em especial daquelas oriundas da ex-metrópole colonial, da especulação imobiliária e dos tráficos e negócios dos terrenos e dos solos públicos urbanos, da criminalidade organizada atinente ao tráfico de estupefacientes e da compra de votos e de consciências e de outros ilícitos eleitorais). Adivinha-se assim que todos esses supra-referenciados futuros oligarcas,  hierarcas e cleptocrtas serão partes integrantes da nova classe economicamente dominante e politicamente hegemónica e governante, emergente das ruínas do autoritarismo revolucionário do regime de partido único. Sendo certo que a nível africano a modalidade mais cruel e maligna do autoritarismo revolucionário é o estalinismo tropical, mais ou menos ortodoxo, mais ou menos virulento e repressivo, mais ou menos genocida e liberticida, o autoritarismo revolucionário caboverdiano assume certamente um perfil sumamente mitigado, tendo adoptado vestes assaz moderadas e suavizadas, aliás, e segundo vêm defendendo alguns estudiosos e teóricos nacionais e estrangeiros da experiência caboverdiana do regime político socializante de partido único, como seria próprio e característico do nosso caso arquipelágico saheliano. 

 

Segunda parte

Da ditadura mitigada do regime de partido único caboverdiano e das muito pouco consensualizadas pulsões totalitárias do seu controverso  autoritarismo revolucionário 
E aproveita-se, aqui e agora, o muito controverso ensejo para abrir um relativamente longo parêntese discursivo em forma de reflexão e miscelânia ensaística com o fito de expor de forma explícita essa suposta singularidade islenha que alegadamente estaria devidamente sustentada e condimentada em ingredientes assaz característicos, tais a morabeza, a natural propensão democratizante e os brandos costumes devidamente embebidos do interconhecimento social e comunitário característico das nossas pequenas urbes e do ruralismo tropical típicos do povo de todas as ilhas, supostamente potenciado e propulsado pelas múltiplas matrizes da sua cultura e identidade crioulas. Na verdade,  desde muito cedo, diria mesmo desde sempre, dos tempos precoces da sua meio-milenar experiência colonial, mas com maior incidência a partir da sua definitiva consolidação, dos fins do século XVIII ao último quartel do século XIX, como nação crioula afro-atlântica com o prematuro esboroamento  da sociedade colonial-escravocrata, estendendo-se pela primeira metade do século XX, que a sociedade caboverdiana se vem erigindo, se representando e se disponibilizando para o outro - tanto o colonizador português como o  estrangeiro de feições europeias, exótico, estranho e exterior à relação colonial -  como cultura e identidade intrínseca, original, necessária e vocacionalmente abertas às novidades do mundo. Ademais, as elites letradas caboverdianas vêm representando a  sociedade caboverdiana como sendo uma sociedade desde há muito emergente e consolidada como um todo identitário homogéneo afro-latino enquanto continente e arquipélago culturais crioulos (no expressivo dizer de Gabriel Mariano), e resultado tangível e sempre re-actualizado da confluência, da fusão e da síntese no nosso arquipélago saheliano das culturas e das línguas originais de dezenas de grupos étnicos negro-africanos, europeus e, em muito menor medida, orientais, todos transplantados para a virgem exiguidade espacial e antropológica da sociedade colonial-escravocrata das nossas ilhas tropicais secas, peri-africanas e peri-ocidentais. Por isso mesmo, considera-se que o  continente e o arquipélago e crioulos caboverdiaos tenham definitivamente superado  nos tempos pós-escravocratas e tardo-coloniaisfracturas étnicas, religiosas ou culturais de monta, sendo, em razão disso, desconhecedor na actualidade de assinaláveis, inconciliáveis e irremediáveis convulsões político-sociais fundadas nessas mesmas fracturas essencialistas de teor étnico-racial e feição cultural-identitária, salvo no passado mais remoto no caso de algumas revoltas anti-escravocratas, como a dos Valentes de Julangue, em Santa Catarina, e a do Monte-Agaro, na Vila da Praia, e, mais recentemente, no caso dos eventos relacionados com o processo da reforma agrária na ilha de Santo Antão. 

Assim,  e por isso, somos da opinião que se pode e se deve legitimamente considerar e perfeitamente qualificar como assaz esporádicos, atípicos e excepcionais esses mais recentes eventos político-sociais - relembre-se que ocorridos no dealbar dos anos oitenta do século XX em pleno apogeu do processo revolucionário caboverdiano simultaneamente com a paroxista crise do projecto pan-africanista da unidade Guiné-Cabo Verde de construção de uma comum pátria africana entre as Repúblicas-irmãs da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, já  constituídas como estados soberanos e independentes, se bem que governados por um mesmo partido único bi-nacionalista e democrático-revolucionário. Estamos em crer que a explicação da ocorrência dos mesmos poderá residir em grande medida na tentativa de aproveitamento de uma conjuntura político-social assaz concreta, designadamente de uma eventual fraqueza transitória do regime democrático-revolucionário, agora e surpreendentemente, apossado de um férreo nacionalismo  caboverdiano, doravante  entrincheirado contra a continuidade do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde e a projecção e a transplantação para as ilhas caboverdianas dos temidos e famigerados resultados do (in)esperado golpe de Estado  de 14 de Novembro de 1980 na Guiné-Bissau e protagonizado pelo Primeiro-Ministro João Bernardo (Nino) Vieira contra o Presidente da República Luís Cabral. 

Como já referido, explanado e dissecado, esse mesmo partido bi-nacionalista e democrático-revolucionário foi instituído no país pela LOPE (Lei da Organização Política do Estado) como força política dirigente da sociedade e, depois, com a aprovação da Constituição de Setembro de 1980, como força política dirigente da sociedade e do Estado,  e, posteriormente e em resultado das devidas e tempestivas adaptações empreendidas nas ilhas  na decorrência da efectiva falência pós-colonial do projecto de unidade Guiné-Cabo Verde e da correlativa proclamação do ramo caboverdiano do PAIGC como partido autónomo e próprio do povo caboverdiano e doravante denominado PAICV, institucionalizando-se, na revisão constitucional de Fevereiro de 1981, esse mesmo partido como sucessor para o território caboverdiano e para o conjunto do povo das ilhas e diásporas do antigo partido único bi-nacional e da sua herança político-ideológica consubstanciada no denominado Pensamento de Amílcar Cabral. 

Tornou-se ademais notória e evidente a conjugação dos supra-mencionados acontecimentos de Bissau e do mais que se lhes seguiu como crísicas consequências e repercussões político-ideológicas, jurídico-constitucionais e cultural-identitárias em Cabo Verde para as necessárias recomposição e reformulação do regime de partido único com a eficaz intoxicação dos assalariados agrícolas, dos camponeses pobres, secularmente explorados como rendeiros e parceiros, e dos camponeses médios, muito ciosos da sua condição de proprietários-gestores das suas diminutas parcelas de terra, por uma pequena franja de grandes proprietários fundiários, chamados morgados nas também agrícolas e mais antigas ilhas de Santiago e do fogo, que, aliados à UCID (União Cabo-Verdiana Independente e Democrática), o então único partido activo da oposição política caboverdiana, fundado em Roterdão, a 13 de Maio de 1978, no rescaldo dos traumáticos acontecimentos repressivos de 1977 na ilha de S. Vicente, souberam (con)sabidamente aproveitar-se dos laços  de patronagem e  dos liames de compadrio reinantes na muito montanhosa ilha localizada mais a norte do arquipélago caboverdiano-, por isso obrigando o mesmo regime de partido único a uma resposta política e militar e policial pronta e contundente. Resposta essa que, por seu lado, foi imediatamente denunciada e desqualificada pela chamada reacção interna liderada pela acima referida oposição político-partidária, pelos seus mentores, mandantes e activistas atuantes a partir de Portugal, da Holanda e dos EUA e reforçados por algumas organizações afectas à defesa dos direitos humanos nas ilhas e nas diásporas, designadamente o IPAJ (Instituto do Patrocínio e da Assistência Judiciários) e a Liga da Defesa dos Direitos Humanos, sediada em Lisboa, como  comprovativos do verdadeiro rosto repressivo, ditatorial e totalitário do regime caboverdiano de partido único, alegadamente não se coibindo o mesmo da prática de torturas, tratamentos cruéis e degradantes e de outras graves, flagrantes e despudoradas violações dos direitos humanos. Práticas essas, aliás, sublinhava-se, expressamente proibidas pela letra e pelo espírito da própria Constituição Política que o regime despótico de partido único fez adoptar pelo seu parlamento, aliás, ilegítimo porque meramente de fachada enquanto inócua correia de transmissão e amorfa caixa de ressonância do famigerado partido único, deste modo transformando-os, entenda-se que ao espírito e à letra da Constituição da República, em letra morta, até mortíssima (diriam, sarcásticos,), de uma lei fundamental que, moribunda no seu todo sistemático e sistémico, salvo na autoritária omnipotência supra-constitucional do seu célebre artigo quarto, se vem comprovando como mera e retintamente semântica, desde a sua recente e óbvia aprovação, por formal unanimidade e, logo a seguir, por explícita e ruidosa aclamação dos deputados arregimentados pelo partido único. 

Deste modo claro e inequívoco, enfatizava-se, veio o regime caboverdiano de partido único a contradizer, e de forma cristalina e notória, uma pretensa imagem impoluta e moderada que o mesmo vinha construindo e propalando junto das comunidades emigradas e dos seus imprescindíveis parceiros internacionais, dos quais depende, aliás e em grande medida, a mera sobrevivência física das populações das ilhas, assim logrando o mesmo regime a estranha e risível façanha, o por demais inaudito e ostensivo desígnio de se desnudar de falsos pudores e mentirosos alardes e ardores democráticos e, assim, de se desmascarar em si mesmo e a si próprio nas suas flagrantes e manifestas pulsões e perversões totalitárias, deste modo também se comprovando como um autêntico logro e uma verdadeira falácia a sua auto-representação e a sua auto-projecção na opinião pública nacional e internacional como sendo um regime respeitador dos direitos humanos universalmente reconhecidos e consagrados enquanto emanação necessária e expressão indispensável da democracia, nunca na sua perversão dita democrático-revolucionária, mas sempre enquanto substantivação política da vontade popular livremente expressa nas urnas e corporizada em órgãos representativos periodicamente eleitos enquanto consubstanciação autêntica e verdadeira da tríplice consigna democrática de um poder do povo, para o povo e pelo povo

Obviamente que contra essas acusações retorquiram  imediatamente os nacionalistas e democratas revolucionários caboverdianos que a democracia teve diversas expressões classistas e diferentes modelos procedimentais durante a longa e rica história da Humanidade, não se podendo, pois, limitar os sistemas democráticos ao modelo democrático-liberal sufragado como universal pelos políticos e intelectuais burgueses, sendo que mesmo a democracia burguesa conheceu já na sua mais que bissecular existência muito assinaláveis desenvolvimentos e perversões, avultando nesse aspecto a universalização da liberdade do voto secreto com a definitiva superação dos votos censitário, capacitário, sexista, racista e de outro qualquer modo discriminatório do cidadão e violador da sua intrínseca dignidade de pessoa humana. Na verdade, redarguiam os nacionalistas e democratas revolucionários caboverdianos, houve sistemas mais ou menos democráticos em todos os modos de produção e nas correlativas formações económico-sociais  e sistemas políticos por que tem passado a Humanidade, verificando-se uma louvável aceleração da História no presente século XX, feliz e infelizmente qualificado como sendo de ouro e de horror. 

Mar de Sodade, de Kiki LimaMar de Sodade, de Kiki Lima

Na verdade, a história política caboverdiana pós-colonial constitui uma feliz ilustração que, com base no estudo da nossa própria realidade e na assimilação crítica das experiências dos outros, se pode edificar uma democracia que, negando o formalismo enganador das democracias burguesas enquanto expressão da efectividade do poder das derradeiras classes exploradoras e parasitárias da História da Humanidade, é possível e torna-se exequível edificar uma democracia que, sendo revolucionária porque convictamente colocada ao serviço dos interesses mais profundos e perenes das massas populares e das suas classes trabalhadoras, é também genuinamente democrática porque estruturalmente potenciadora da participação popular no exercício efectivo do poder (político, económico, social e cultural) nos seus diferentes níveis e nas suas diferentes modalidades e vertentes representativas e participativas propriamente dito. É assim que o primeiro parlamento do povo caboverdiano constituído em nação crioula soberana e pátria africana do meio do mar foi livremente escolhido por força e como expressão da vontade popular em eleições legislativas por voto livre, universal, directo e secreto de todos os eleitores caboverdianos residentes nas ilhas, funcionando as mesmas eleições legislativas como autênticas e verdadeiras eleições referendárias, isto é, como consulta popular que escrutinou a livre opção do povo caboverdiano pela independência política no quadro do destino africano do seu novo país saheliano e legitimou os titulares do poder político soberano num quadro de um regime de partido único. Por isso tudo, pretendeu-se o regime de partido único socializante caboverdiano como sendo assaz específico na plena democraticidade da sua instituição como membro por inteiro da comunidade internacional e, por essa forma e desde o acto primeiro e primacial da sua fundação e da sua instituição de jure como original, essencial e benignamente diferente no seu modus operandi dos demais regimes políticos africanos de partido único socializante (com ou sem partidos satélites), tipicamente monolíticos, repressivos e totalitários na sua expressão política e nos modos como vêm lidando com a diferença, a oposição e o dissídio políticos.  

Ressalve-se  todavia que, salvo no que respeita à transição democrática para o multipartidarismo político ocorrida nos fins dos anos oitenta e nos inícios dos anos noventa do século XX,  a diferença, a oposição e o dissídio políticos são quase sempre abruptamente negados pelos regimes de partido único em momentos-chave de detecção de alegadas ameaças de ruptura política ou de real questionamento da própria subsistência do próprio regime de partido único ou da continuação da manutenção do seu partido dominante no próprio sistema.

No caso específico de Cabo Verde, a diferença, a oposição e o dissídio políticos foram somente e muito renitentemente tolerados, sobretudo com a distensão política ocorrida durante os anos oitenta sequentes à irrupção violentamente contra-subversiva do rosto repressivo do Estado do regime de autoritarismo revolucionário de partido único para contrariar os desígnios insurreccionais contra a reforma agrária dos protagonistas dos acontecimentos de Santo Antão de 31 de Agosto de 1981 e dos seus dias de calças roladas imediatamente anteriores e dos seus espessos dias de chumbo e pranto imediatamente posteriores.
Seja-me permitida a parcial extrapolação para os tempos vindouros da mudança política - aliás, somente a muito custo no agora dos tempos presentes concebíveis e imagináveis graças aos imprescindíveis apoio e sustentação nas antenas delirantes e alucinadas da sombra raivosa e enrouquecida do poeta-cronista que costuma envergar as minhas vestes, mesmo que somente póstumas, de louco predilecto da cidade - de factos e acontecimentos que serão presenciados, contemplados e festejados somente por alguns daqueles que acompanham a nossa narração nesta praça na boca ora hilariamente engasgada da República. 

Desde já, e tendo em devida conta isso tudo que foi resgatado dos tempos futuros pelo poder antecipatório e profético da palavra e é, por isso,  sumamente miraculoso, e sempre visando uma melhor contextualização prévia dos factos e dos acontecimentos vindouros supra-referenciados, assinale-se que nos tempos imediatamente sequentes à sua fundação e à sua paulatina implantação nas ilhas, com destaque para as ilhas de Santo Antão e de S. Vicente, assim como nas diásporas, com relevo para a Holanda - onde contou com a preciosa adesão de antigos militantes e simpatizantes do PAIGC, todavia tornados paulatinamente avessos, se não abertamente contrários, ao princípio e ao projecto da unidade Guiné - Cabo Verde -, para Portugal e para os Estados Unidos da América, a UCID teve como primeiro Presidente o antigo Governador spinolista pós-25 de Abril de 1974, o engenheiro Sérgio Duarte Fonseca, denotando o seu programa um forte teor anti-africanista e uma compreensão sumamente luso-tropicalista e neo-claridosa da crioulidade caboverdiana, além de se demonstrar frontal e denodadamente oposta a várias outras matrizes programáticas do partido único então governante de Cabo Verde, com destaque para os seus posicionamentos contrários a qualquer forma de reconhecimento e assunção da co-matriz e da dimensão africanas da cultura caboverdiana e, assim, da identidade política africana de Cabo Verde, à opção socializante e não alinhada de Cabo Verde e, obviamente, ao regime de partido único. Tais posicionamentos, pareciam estar, aliás, na senda, da UDC, da qual parecia de todo em todo a reciclagem actualizada e adaptada às novas condições pós-coloniais das irreversíveis e consumadas soberania  e independência política de Cabo Verde, morto e enterrado que fora para sempre o sonho adjacentista dos remotos tempos coloniais de outrora e desvanecida que fora na voragem dos acelerados acontecimentos do pós-25 de Abril de 1974, a pretensão spinolista de um federalismo neo-colonial no quadro de uma Comunidade Lusíada (ou Luso-Africana) de países e povos diferentes e desiguais. A saída de Sérgio Duarte Fonseca da liderança da UCID, depois assumida pelo economista emigrante Lídio Silva acarretaria mudanças profundas no perfil do partido oposicionista que, mantendo a sigla da sua denominação, alterou todavia por uns tempos o seu significado por extensão, passando a chamar-se União Cabo-Verdiana para a Independência e a Democracia, encetando ao mesmo tempo negociações e contactos secretos com o PAICV, o sucessor nas ilhas do PAIGC-CV, com vista a uma eventual e sempre periclitante transição gradual e pacífica do regime político monopartidário caboverdiano para uma democracia pluripartidária. Os esforços no  sentido da abertura do regime a outras vozes, mesmo se dissonantes e divergentes, reforçaram-se com a crescente eclosão de sinais no sentido do multipartidarismo, da liberalização política e da democratização plena nos países do Leste da Europa, em especial na União Soviética de Mikhail Gorbatchov. Vicissitudes várias (infelizmente não elencadas na revista Nação Cabo-Verdiana, o órgão de informação da UCID, durante muito tempo dirigido por Virgílio Pires), entre as quais as insanáveis dissensões entre os seus principais dirigentes e facções internas, a surpresa ante a abertura política de 19 de Fevereiro de 1990; o afastamento por muito tempo do país e das suas realidades político-culturais imediatas e  a longa radicação no estrangeiro, com destaque para os países ocidentais desenvolvidos, onde os seus principais dirigentes e os seus militantes mais proeminentes tinham organizadas as suas vidas pessoais e profissionais;  o tardio regresso ou, simplesmente, o não regresso ao país de grande parte dos seus dirigente e responsáveis;  a não consagração da UCID, tal como ocorreu com o PAICV, como partido político caboverdiano histórico (na verdade o mais antigo com denominação e radicação exclusivamente caboverdianas nas ilhas e diásporas) ditaram a sua não legalização atempada junto do Supremo Tribunal de Justiça caboverdiano (do ponto de vista jurídico-formal, alegadamente por falta do número e da qualidade das assinaturas requeridas para o conjunto do país) para efeitos de sua participação nas primeiras eleições legislativas multipartidárias caboverdianas, de 13 de Janeiro de 1991, tendo os seus votos sido canalizados para as listas do MpD (Movimento para a Democracia), o que certamente terá também contribuído não só para a esmagadora maioria qualificada conseguida por este último partido mas também para a duradoura bipolarizaçâo do sistema político caboverdiano, que nem a UCID, nem os demais partidos entretanto surgidos no panorama político caboverdiano, designadamente o PCD (Partido da Convergência Democrática), o PRD (Partido da Renovação Democrática), o PTS (Partido do Trabalho e da Solidariedade), o PSD (Partido Social Democrata) e o PP (Partido Popular) conseguiram superar. Anote-se que parte desses mesmos partidos foi já extinta, designadamente o PCD e PRD, vindo grande parte dos seus militantes e quadros a reintegrar as fileiras do MpD, partido do qual se tinham apartado na sequência de dissensões e fracturas intra-partidárias, respectivamente em 1993 e em 1999, limitando-se quase todos os demais, ainda formalmente subsistentes, designadamente o PSD, o PTS e o PP, a marcar presença nas campanhas eleitorais para as eleições legislativas em alguns poucos círculos eleitorais e, por vezes, para algumas eleições autárquicas). 

É, pois, neste contexto de visíveis dificuldades para superar a bipolarização político-partidária vigente como marca do pecado original da democracia representativa caboverdiana que se deve assinalar e louvar a ascensão da UCID ao estatuto de terceira força política parlamentar e segunda força política na importante ilha de S. Vicente, tanto nas eleições legislativos como nas eleições autárquicas, remetendo o PAICV para o terceiro lugar do pódio político-partidário insular. Neste contexto, vem permanecendo o longevo partido de matriz democrata-cristã situado no centro-direita político que é a UCID como um partido essenciamente regional, ademais com um forte cariz regionalista, barlaventista e sanvicentino. Tais característicassociológicas e político-ideológicas vêm constituindo uma sua força, mas também uma sua notória fraqueza, inviabilizadora em considerável medida do seu crescimento sociológico e eleitoral fora e para além do seu nicho partidário sanvicentino. Por outro lado, é assaz curioso que a UCID tenha deixado, desde as primeiras eleições multipartidárias caboverdianas, de ser um partido conotado essencialmente com as diásporas caboverdianas radicadas nos países ocidentais desenvolvidos da Europa e das Américas, como fora o seu caso notório e indesmentível nos primórdios do seu surgimento e da sua disseminação primacialmente diaspórica.
Feita a devida, inusitada e, admite-se, pouca imaginativa extrapolação, certamente porque inundada de veracidade histórica, de alguns factos e acontecimentos para os tempos vindouros da mudança política caboverdiana que coincidentemente acompanhou quase simultaneamente os inícios das mudanças políticas de carácter liberal-democrático a nível global e que ditaram a generalizada e abrupta falência dos regimes políticos de partido único, tanto os de esquerda como os de direita, quase sempre por implosão induzida na plena liberdade das urnas, em especial na Europa do Leste, na África sub-sahariana, na América Latina e nas Caraíbas ainda não-democratizadas e em alguns países asiáticos, e que viria a prolongar-se pelas duas décadas seguintes do século XXI, com as suas primaveras árabes, as suas revoluções democráticas coloridas, as suas insurreições populares e os seus golpes palacianos no interior dos sistemas políticos híbridos pseudo-democráticos.  Com essas mais recentes mudanças democráticas, foram varridas da cena histórica algumas autocracias persistentes com a entrada em cena dos oligarcas e hierarcas e da sua institucionalização da cleptocracia como sistema lícito de célere e desregrada acumulação primitiva do capital e do baptismo do capitalismo selvagem como forma mais recente da economia capitalista de mercado, implantada e disseminada a nível global, mesmo que por vezes  sob as mais variadas máscaras e os mais dissimulados rostos.   

Consumadas a transplantação e a transfiguração onírica dos factos e acontecimentos, ainda que em modo discursivo directo e sem ornamentos metafóricos, ademais repleta de efectiva e factual veracidade histórica, regresse-se aos tempos actuais, nossos e do louco predilecto da cidade, e às ruínas das suas palavras metamorfoseando-se camaleónicas e mantidas provisória e transitoriamente em suspenso. 
Anote-se neste por demais complexo e desafiante circunstancialismo que a natureza semântica da Constituição de 1980/1981 pode ser também aferida, paradoxalmente a contrario e exactamente no seu antónimo sentido substantivo, se bem que também nos seus precisos termos literais. Sentido interpretado, aliás, de modo assaz benigno (e por vezes, confesse-se, igualmente maligno numa visão estritamente liberal-democrática ocidental), na óptica de que a natureza do regime político e da ordem económico-social nela consagrados nunca foram realmente levados até às suas últimas consequências. É o que ocorre com o seu célebre artigo quarto e os artigos dele complementares,  que, consagrando o partido protagonista da luta pela independência e pela libertação nacional como força política dirigente da sociedade e do estado, cria margens suficientes para a existência de um sistema político multipartidário, como, aliás, ocorreu em vários países de opção socialista e socializante, com destaque para alguns países de regimes ditos de democracia popular (como a RDA, a Polónia ou a Hungria), a Nicarágua revolucionária ou o Madagascar de Ratsiraka. Com efeito, nesses mesmos países cabe juridico-constitucionalmente aos partidos políticos não hegemónicos representar os interesses de classes e camadas sociais explicitamente dirigidas no âmbito do processo dito de construção do socialismo com expressa salvaguarda do papel dirigente da classe operária em razão da sua alegada missão histórica enquanto classe de vanguarda na instauração das sociedades socialista e comunista, bem como no processo de construção de sociedades socializantes de transição para uma futura e programada formação económico-social de transição para um modo de produção realmente socialista, não interessa agora se com mais ou menos perversões, desvios e retrocessos burocráticos, totalitários ou revisionistas, como reiteradamente alegado por várias correntes da extrema-esquerda revolucionária, como o rosa-luxemburguismo, o trotskysmo, o maoísmo nas suas muitas variações radicais resgatadoras do estalinismo e/ou adeptas da chamada Grande Revolução Cultural Proletária após as célebres denúncias dos crimes de Estaline no famoso XX Congresso de 1956 do PCUS (Partido Comunistas da União Soviética), para além das habituais  posturas críticas e contestatárias dos sistemas políticos vigentes nos chamados Países do Leste das muitas correntes social-democratas de esquerda e de direita e das tendências euro-comunistas em alguns Partidos Comunistas da Europa Ocidental, com destaque para o PCI (Partido Comunista Italiano) e o PCE (Partido Comunista Espanhol), actualmente extintos.   Na verdade e na prática, o  papel político dos partidos co-existentes com o partido hegemónico e dominante no seio de Frentes Nacionais e de Blocos Democráticos no quadro dos chamados sistemas multipartidários socialistas é reduzido ao de meros partidos satélites, muito idênticos e semelhantes ao papel assaz corporativo/sindical das organizações de massas da juventude, das mulheres ou dos trabalhadores, sendo as suas funções políticas, tal como, aliás, as das organizações de massas, em grande medida fictícias porque limitadas ao direito a quotas  predeterminadas de mandatos parlamentares e cargos governamentais, as mais das vezes sem poder de porem em causa o papel dirigente dos partido hegemónicos e sem o direito de efectivamente exercerem a oposição democrática e a correlativa alternância política. 

 No caso de Cabo Verde, são muitas as razões que podem ser carreadas para explicar a inviabilização e a impossibilitação de um sistema multipartidário fundante e congénito ao Cabo Verde pós-colonial, previsivelmente progressista e revolucionário. 

De entre essas possíveis razões destacamos:
1. A neutralização nos dias imediatamente anteriores às negociações entre o Governo português e o PAIGC de todos os demais partidos políticos caboverdianos surgidos na cena política arquipelágica no período pós-25 de Abril de 1974, mediante a prisão de alguns dos seus mais destacados militantes, num estranho conluio e numa insuperável aliança política entre todas as tendências e correntes políticas presentes no ramo caboverdiano do PAIGC e o MFA colocado nas ilhas. Destaque-se que na sequência dos acontecimentos políticos de 28 de Setembro de 1974 que levaram à derrota política e à queda do General António de Spínola como primeiro Presidente da República Portuguesa designado no período pós-25 de Abril de 1974, a UDC (União Democrática Cabo-Verdiana), fervorosa defensora das teses federalistas do antigo Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas Portuguesas na Guiné plasmadas no best-seller Portugal e o Futuro, livro por ele publicado nos meses imediatamente anteriores ao golpe de estado revolucionário acima referido, desapareceu praticamente da cena política caboverdiana, vindo o grosso dos seus militantes e simpatizantes a transitar para as até então muito minguadas hostes da UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde), sempre monologando em comunicados bem elaborados através da célebre Minerva de Cabo Verde pelo seu líder solitariamente carismático José André Leitão da Graça, recém regressado do longo exílio em Dakar, com esporádica passagem inicial no Gana de Kwame Nkrumah, para, ainda que tardiamente, tentar dar a conhecer e implantar nas ilhas o partido caboverdiano ferrenhamente nacionalista contra a denominada união forçada de Cabo Verde com a Guiné-Bissau e simultaneamente situada na esquerda radical revolucionária ou, se se quiser de outro modo, na extrema-esquerda dita maoísta caboverdiana, no seu igual e equivalente combate tanto ao imperialismo americano (de que a UDC seria a fiel representante nas ilhas) como também ao social-imperialismo e ao revisionismo soviéticos (de que o PAIGC seria o instrumento e o mandatário-mor no arquipélago caboverdiano e na Guiné-Bissau). 

A partir de então, a UPICV passaria exclusivamente a pugnar pela realização de um referendo sobre a pregnante questão da unidade Guiné-Cabo Verde, prévio à proclamação da independência total e imediata de Cabo Verde, obviamente completamente separado tanto de Portugal como também da Guiné-Bissau, deixando assim de pugnar pela realização de um referendo de autodeterminação por forma a se aferir nas urnas sobre várias opções disponíveis, quais sejam i. a independência política total e imediata;  ii. uma autonomia política no seio da nação e do estado portugueses, ainda que provisória e visando uma eventual independência política a médio prazo, tal como, aliás, defendido pelo General Spínola e pelos seus sucessivos representantes ao mais alto nível político das ilhas e corporizados designadamente pelo Encarregado de Negócios Loureiro dos Santos e pelos Governadores Silva Horta e Sérgio Duarte Fonseca, por outros políticos portugueses, com destaque para Mário Soares, Ministro dos Negócios Estrangeiros, e António Almeida Santos, Ministro da Coordenação Interterritorial, pela própria UDC e por intelectuais caboverdianos, com destaque para o médico e escritor neo-claridoso foguense Henrique Teixeira de Sousa, cujos posicionamentos registados em Junho de 1974, no livro/brochura “Cabo Verde e o seu Destino Político” parecem-me assaz coincidentes com os posicionamentos de outros intelectuais claridosos-fundadores, como Baltasar Lopes da Silva, muito próximos no imediato pós-25 de Abril de 1974 da Associação Democrática de Barlavento que, com nominal abrangência pan-caboverdiana, viria a resultar na UDC, liderada pelo advogado João Baptista Monteiro. 

2. O reconhecimento do PAIGC, ainda antes do 25 de Abril de 1974,  como único e legítimo  representante do povo de Cabo Verde por parte não só da ONU (Organização das Nações Unidas) e da OUA (Organização da Unidade Africana), mas também por parte de inúmeras e influentes entidades internacionais, como, por exemplo, o Movimento dos Não- Alinhados, a Conferência de Solidariedade Afro-Asiática, tendo ademais esse partido proclamado unilateralmente  a 24 de Setembro de 1974 o Estado independente e soberano da Guiné-Bissau na região de Madina do Boé.
3. A derrota e a queda do General Spínola e dos seus apoiantes e aliados,  não só em Portugal como também em Cabo Verde, e a correlativa ascensão e consolidação vitoriosa da ala mais consequentemente anti-imperialista e anti-colonialista no seio do MFA (Movimento das Forças Armadas), a qual possibilitou o desatamento do dossier Cabo Verde, deliberada e sucessivamente mantido no limbo para, em tempo oportuno, satisfazer os apetites geo-estratégicos da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e dos Estados Unidos da América e dos seus aliados neo-imperiais, neo-colonialistas e federalistas portugueses, africanos e caboverdianos na posição geo-estratégica meso-atlântica privilegiada do arquipélago caboverdiano.
4. O papel activo do MFA de Cabo Verde, o qual tudo fez para neutralizar as forças políticas opositoras ao PAIGC, denunciando-as como partidos políticos fantoches surgidos no imediato pós-25 de Abril de 1974 como no caso da UDC,  ou, para o caso da UPiCV, fundado em 1959 nos Estados Unidos da América e refundado em Dakar durante o seu exílio por José Leitão da Graça, sem actividade política conhecida ou assinalável antes da data histórica acima referida, limitando-se a mesma ao envio de memorandos e declarações à ONU, por isso sendo assaz reduzido o número  dos seus militantes conhecidos e activos, mesmo depois da sua saída da clandestinidade em Cabo Verde. Ilustrativa da postura pró-PAIGC por parte do MFA de Cabo Verde é a proibição da primeira manifestação pública com consequente erecção de barricadas militares em todas as entradas da cidade da Praia, para onde foi programada a realização da mesma com a participação de populações do interior de Santiago e com o apoio político e logístico do Governador Sérgio Duarte Fonseca e de outras forças spinolistas, no dia 1 de Novembro, dia dos Finados. Foi igualmente fundado na mesma argumentação, acrescida da acusação de que alguns dos seus militantes eram antigos informadores e colaboradores da PIDE/DGS, da Legião Portuguesa e de outras forças conotadas com o derrubado regime colonial-fascista português que o mesmo MFA colaborou activamente na prisão e na colocação sob custódia no antigo campo de concentração do Tarrafal de dezenas de militantes e simpatizantes da UPICV e da UDC na primeira quinzena de Dezembro de 1974, a par da ocupação, a 9 de Dezembro do mesmo ano, da Rádio Barlavento, tida por abertamente defensora e veiculadora das teses federalistas e anti-paigcistas da UDC. 

Na prática, esses eventos políticos repressivos  significaram  a total neutralização política de toda e qualquer oposição ao PAIGC no chão interno de Cabo Verde como condição prévia para o início das negociações entre o PAIGC e o Governo português que viriam a  desembocar no Acordo de Lisboa, o qual estabeleceu a data da proclamação solene da independência nacional de Cabo Verde, instituiu um período de transição durante o qual seria instituído um Governo de Transição do Estado de Cabo Verde, enquanto entidade político-administrativa semi-autónoma no quadro da República Portuguesa, devendo esse mesmo Governo de Transição constituído paritariamente pelo Estado português e pelo PAIGC e dirigido  por um Alto-Comissário português, se encarregar de governar no mesmo período de transição e de,  ademais, preparar todas as condições para a realização de eleições para uma Assembleia Legislativa com candidaturas propostas por grupos de cidadãos e á qual caberia a proclamação do Estado soberano e independente de Cabo Verde, a eleição do Chefe  (Presidente da República) e do Chefe do Governo (Primeiro-Ministro) desse mesmo Estado. Nos termos do Acordo de Lisboa e da lei eleitoral posteriormente aprovada pelas autoridades soberanas portuguesas, a mesma Assembleia Legislativa deveria constituir- se como Assembleia Constituinte soberana e, nessas vestes,  proceder à aprovação, no prazo de três meses após a sua eleição, da primeira Constituição Política da República de Cabo Verde. Antecipe-se aqui e agora que, tendo esse prazo inicial (diga-se que estabelecido pela Lei eleitoral acima referida, e não pelo Acordo de Lisboa como vem sendo sistemática e mentirosamente propalado) sido prorrogado para um período de seis meses por deliberação da ANP (Assembleia Nacional Popular, nome que passou a designar a Assembleia Legislativa soberana e constituinte eleita a 30 de Junho de 1975), foi posteriormente criada uma Comissão integrada pelos juristas David Hopffer Almada,  Manuel Duarte, António Mascarenhas Monteiro, Carlos Veiga e Jorge Carlos Fonseca, para a redacção da primeira Constituição da República de Cabo Verde, a qual, com algumas alterações de pormenor (como, por exemplo, a substituição da expressão força política principal em lugar de força política dirigente para instituir o papel político dominante do PAIGC no sistema político caboverdiano),  viria a ser aprovada em Setembro de 1980, isto é, ainda no decorrer da primeira legislatura da ANP, isto é, da Assembleia Legislativa soberana e constituinte eleita a 30 de Junho de 1975. 

Na verdade, a neutralização política dos partidos políticos adversários e /ou opositores do PAIGC significou a instauração de facto de um regime de autoritarismo revolucionário de partido único, ainda antes de encetado o período de transição para a independência. Muitos dos novos encarcerados no Tarrafal, é certo que em regime livre de recreio, seriam libertados pouco  depois em razão da inexistência de provas consistentes para sustentar as suspeitas e acusações de terem sido agentes ou informadores da PIDE/DGS. Outros seriam libertados antes da independência, tendo outros contra os quais pendiam acusações de terem sido agentes e/ou informadores da PIDE/DGS sido recambiados para Portugal para a prisão de Caxias para a prossecução dos respectivos processos criminais, os quais foram depois arquivados. Alguns destes últimos participariam na fundação e/ou na militância activa na UCID numa óbvia sequenciação da sua anterior militância na UDC e, depois, na UPICV, na altura acrescida da sigla FP (Frente Popular), numa postura tipicamente mimética das célebres Frentes Únicas maoístas e menos das frentes populares anti-fascistas patrocinados pelos partidos comunistas europeus nos períodos imediatamente anteriores e posteriores à Segunda Guerra Mundial. 

A UPICV viria a conhecer um longo estado de coma, para somente acordar de forma frágil e intermitente na sequência da Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990 para definitivamente soçobrar à agonia e à morte inglória, depois de o seu líder e quase solitário dirigente ter regressado voluntariamente a Cabo Verde em 1986 para definitivamente se integrar na sua vida social, cívica e cultural pós-colonial, certamente a instância e mediante os bons ofícios de José Araújo,  alto dirigente do PAIGC e, depois do PAICV, seu amigo e antigo confrade e colega do Grupo Nova Largada de Lisboa, depois de ambos terem provavelmente tirado as respectivas ilações dos seus antagónicos posicionamentos sobre a questão da unidade Guiné-Cabo Verde e dos seus igualmente antagónicos ou, pelo menos, divergentes sentimentos sobre tão controversa e candente questão, doravante, nesses tempos pós-coloniais, definitivamente condenada à falência, quiçá para alívio, (in) satisfacão e (des) contentamento de todos, mesmo se de outros modos e em outros tempos, também de agora, também dilacerante de todos, salvo nos respectivos afectos, amizades e lealdades de infância e de criaturas amadurecidas com os tempos para as imprevisibilidades do Tempo… 

 

Terceira parte

Da suposta comunidade de condição dos chamados melhores e mais indigentes filhos do povo e dos auto-intitulados melhores e mais inteligentes filhos do povo: o discreto mas muito convicto empolgamento do louco predilecto da cidade com as vindouras mudanças na plena legitimação democrática da vontade e da soberania populares para a total reconfiguração do panorama republicano do exercício do poder político-institucional caboverdiano, e a sua muita reticente postura no respeitante às emergentes atmosfera socio-económica e  ambiência político-ideológica e  cultural, assaz propícias à eclosão e à disseminação da corrupção e da cleptocracia e à célere constituição de uma nova classe de melhores e mais ricos filhos do povo… 

Depois de devida e produtivamente aproveitado o controvertido e oportuno ensejo para a indispensável exposição de pontos de vista plurais e necessariamente divergentes sobre a natureza autoritária mitigada ou abertamente totalitária das feições consensualmente tidas por ditatoriais do regime de partido único implantado no Cabo Verde pós-colonial, fecha-se assim o longo parêntese para tempestivamente retomar os fios da respectiva meada discursiva, todos, aliás, da sua pessoalíssima e inteira iniciativa e completa responsabilidade, e antecipando renhidas dissenções sociais e divergências político-ideológicas, reitera empolgado o louco predilecto da cidade que se pode perspectivar que o acima e ao de leve aludido vindouro discurso político-ideológico dos mandatários dos futuros oligarcas, hierarcas, cleptocratas e dos demais denominados vendilhões da terra, do povo e da pátria se comprovará certamente como emanando de representantes de uma classe social dominante de cariz claramente neo-colonial, mas também assumidamente privilegiada, e no sentido mais próprio do termo, não só no que respeita ao acesso às benesses simbólicas inerentes ao exercício do poder político-ideológico, como também ocorre nos tempos de agora no caso da nomenclatura político-partidária e burocrático-administrativa do regime de partido único, mas também quanto ao que concerne aos irrestritos e exclusivos uso, gozo, usufruto, posse e propriedade do poder económico e dos bens materiais característicos dos regimes neo-coloniais implantados desde a eclosão nos anos sessenta do século XX dos chamados sóis das independências africanas mediante a desbragada ou a comedida corrupção de uma importante fracção das elites funcionárias, burocráticas, empresariais (comerciais, industriais e fundiárias), e, posteriormente, no contexto da constatada falência dos modelos socializantes de desenvolvimento e da total desacreditação dos regimes autoritários ditos socialistas e/ou democrático-revolucionários, reforçada por mor de uma suposta acumulação primitiva do capital, assumida ou manhosamente cleptocrata e em modos ostensivamente parasitários e para efeitos arrogantemente ostentatórios. 
Sublinhe-se neste contexto a detecção de um comum traço entre os melhores filhos do povo, tanto dos integrantes das camadas sociais laboriosas, mesmo se maciçamente desempregadas e subempregadas e integrantes do povo simples, humilde, indigente e anónimo, como também daqueles alcandorados à nomenclatura política dirigente do partido, do estado e da sociedade, qual seja o seu propugnado suicídio de classe, nos seguintes termos e com as eventualmente singulares vicissitudes adiante indicadas e dissecadas:  

a. Nos primeiros, isto é, nos trabalhadores integrantes das denominadas camadas sociais laboriosas e, por isso e concomitantemente, do povo simples, humilde e anónimo e das suas diferentes franjas indigentes, pobres e remediadas, por óbvia desistência, falta de ambição ou natural impossibilidade de superar a miséria e a pobreza  relativa e os limiares da sua condição remediada. Neste preciso e concreto contexto, deve-se todavia sublinhar e complementar que a emigração livre para certos países americanos, europeus, africanos e asiáticos bem como a  disseminação, a democratização e a massificação do ensino continuam a constituir-se como (e usando uma terminologia tipicamente claridosa)  os mais importantes factores de ascensão social, económica e cultural e da aristocratização intelectual dos filhos das ilhas no período pós-colonial caboverdiano, tal como já o eram no período colonial pós-escravocrata em Cabo Verde. 

 
bNos segundos, em razão da sua reiterada e declarada pretensão de suicídio de classe, nos termos teorizados, queridos e consignados por Amílcar Cabral na sua por demais célebre obra maior intitulada A Arma da Teoria e consubstanciada na sua proclamada identificação com as classes trabalhadoras, na pele e no espírito das quais, consumado o seu suicídio de classe pequeno-burguesa naturalmente propensa ao emburguesamento, pretendem efectivamente ressuscitar-se. Constituem fortes indícios  disso mesmo, pelo menos aparentemente, a sua denodada e missionária dedicação à causa pública nacional e o modo austero (dir-se-ia quase franciscano em respeito pela pobreza também franciscana do país) de condução da sua vida pública e privada, ainda que, em resultado e em conjugação com o inamovível exercício dos altos cargos nos poderes soberanos do Estado por parte dos mesmos, em pleno e ininterrupto gozo vitalício de mordomias, benesses e bens raros (tais como viaturas, moradias, etc), somente acessíveis mediante a pertença à nomenclatura política e burocrático-administrativa-empresarial dominante, isto é, mediante a ocupação de altas funções no partido único, no governo, na administração pública, no poder judiciário, nos institutos, nas empresas, nas embaixadas e missões diplomáticas e em outras instituições públicas, bem como nas organizações de massas satélites, enquanto funcionários - trabalhadores (supostamente) revolucionários. 
Exceptuem-se contudo desse quadro geral e relativamente estável os casos de inusitada e/ou imprudente queda pública em desgraça política, a mais das vezes em razão de expulsões/auto-exclusões/demissões/exonerações/ ostracizações provocadas por lutas de facções e clãs políticos com correlativas frustrações de expectativas de ascensão político-partidária e enredamentos em facciosismos e fraccionismos político-partidários. No Cabo Verde da vigência do regime autoritário de partido único a queda pública em desgraça política não teve todavia  outras consequências e repercussões tangíveis que não fossem a eliminação e a neutralização políticas das suas vítimas com os correlativos exílio voluntário no estrangeiro, exílio cívico interno e silenciamento político-ideológico das vozes dissidentes e/ou da oposição partidária interna, a vigilância, o controle e o assédio pelas forças da polícia política e da segurança do estado.

Deste modo, manteve-se o Cabo Verde da democracia nacional-revolucionária (ou, também se se preferir, da ditadura democrático-nacional-revolucionária) longe e distante de outras consequências mais funestas, mortíferas e trágicas, ocorridas em vários períodos da dominação colonial, com destaque para o período colonial-fascista, bem como em regimes político-ideologicamente próximos ou sistemicamente aparentados e/ou afins, como a prisão política de longa duração, as execuções sumárias, o internamento em presídios e/ou hospitais psiquiátricos, a deportação, o degredo e o desterro políticos, mesmo nos conhecidos casos de sedição, necessariamente violenta, contra a ordem político-constitucional vigente (também justificados pelos seus protagonistas como “de desobediência civil e resistência contra a ditadura de um regime revolucionário de partido único”), como ocorrido nos trágicos e lamentáveis eventos de 1977 na ilha de S. Vicente; nos também trágicos e lamentáveis tumultos de 31 de Agosto de 1981 na ilha de Santo Antão e as respectivas consequências no plano da grave e sistemática violação dos direitos dos acusados e arguidos dos processos-crime então instaurados: em outras detenções políticas mais ou menos esporádicas, bastas vezes arbitrárias, ocorridas na cidade da Praia, na ilha Brava e na vila da Assomada, para além de outras múltiplas repressões de manifestações não autorizadas. Em todos esses casos e depois de severamente condenados a pesadas penas de prisão,  todos os protagonistas dos acontecimentos políticos acima referidos foram indultados pelo então Presidente da República de Cabo Verde, Aristides Pereira, salvo no caso de Albino Ferreira, dito Bibino, quiçá em razão da acusação que sobre ele pendia por mor do papel  por ele desempenhado  junto da PIDE-DGS na delação  da Operação Esperança de desembarque nas ilhas de Santiago e de Santo Antão de um contingente de guerrilheiros do PAIGC treinados em Cuba e de que o mesmo Bibino fez parte antes de desertar. 
O curioso é que, apesar de consagrados no Programa Maior do antigo Partido Único da Guiné e de Cabo Verde para valer como referência interpretativa obrigatória da LOPE (Lei da Organização Política do Estado) e das leis ordinárias pós-coloniais, e critério de validade e continuação da vigência das leis ordinárias oriundas do tempo colonial português, bem como na Constituição Política de Setembro de 1980/Fevereiro de 1\981, o direito de associação só veio a ser regulamentado em 1977, sendo que os direitos de reunião, de manifestação, de greve (sendo este último, aliás, expressamente consagrado no Programa Maior do supra-referenciado Partido Único, mas ausente da Constituição Política de 1980) e de associação e oposição democráticas só viriam a ser regulamentados em lei ordinária, já depois da Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990 e no quadro da sequente adopção do pacote legislativo da transição política de 1990, sendo também certo que nenhuma lei pós-colonial caboverdiana procedeu à proibição expressa das associações e dos partidos políticos. 

Tenha-se outrossim em conta e relembre-se neste preciso e concreto contexto que são inúmeros os países ditos revolucionários formalmente constituídos em sistemas pluripartidários, designadamente alguns países do Leste Europeu denominados de socialismo real, e alguns países de orientação socialista em África, na América Latina e no Médio Oriente, mesmo quando as respectivas Constituições políticas consagram os respectivos partidos dominantes e/ou hegemónicos como forças políticas dirigentes do estado e da sociedade (como, aliás, também consta da LOPE e da Constituição caboverdiana de Setembro de 1980/Fevereiro de 1981) e circunscrevem o papel dos demais partidos a meros satélites políticos dos partidos dominantes/hegemónicos.  Não obstante essa factualidade histórica, a existência de um sistema político multipartidário nalguns países integrantes do chamado bloco socialista (também denominados bloco dos países do socialismo real) demonstrou-se como sendo muito propícia para uma transição pacífica para uma democracia moderna plena porque plenamente multipartidária e asseguradora da oposição e da alternância política democrática.  

Retomando a matéria do famigerado suicídio de classe brilhantemente teorizado por Amílcar Cabral, diga-se e sublinhe-se que, nos termos do discurso político dominante nos tempos da democracia nacional revolucionária, a selecção para as hostes da acima referida nomenclatura político-partidária dirigente, amiúde chamada, desacreditada, desqualificada e vituperada como integrante dos melhores filhos do nosso povo, seria perfeitamente compatível com a existência de outros melhores filhos do nosso povo, se bem que de outra estirpe, de mais nítida feição económico-empresarial, designadamente daqueles pequenos-burgueses da classe média industrial, comercial e fundiária que, dando azo ao seu espírito empreendedor, podem  dar livre curso às suas naturais tendências para o emburguesamento, se bem que negando-se, ou, melhor, compelidos/forçados/coagidos/obrigados, por mor do enveredamento do país por uma via socializante de desenvolvimento, a negarem-se em transmutar-se em integrantes das fracções da burguesia nativa burocrática e compradora no quadro cleptocrata da dominação neo-colonial e da sua subordinação ao capital financeiro transnacional, deste modo logrando identificar-se com os genuínos interesses de uma nação caboverdiana em permanente demanda e consolidação da sua independência política e económica, enquanto integrantes de uma burguesia empreendedora genuinamente nacional e não somente identitariamente nativa/autóctone/filha da terra, mesmo se no condicionado quadro de uma forte dependência do país em relação à ajuda pública ao desenvolvimento e ao investimento externo. 

 
E, finalmente, concluiu o louco predilecto da cidade a sua longa explanação teórica, prosseguindo, depois de um breve intervalo para retomar o fôlego, ainda assaz sarcástico: 

iv. A recusa das empregadas domésticas vindas das as-ilhas em falar o latim, isto é, em pronunciar os vocábulos e outros ademanes linguísticos basilectais e outros fulgores humorísticos de Nho Puxim, consabidamente desde há muito auto-proclamado seguidor, discípulo e apóstolo de Nho Naxo, o conhecido e celebrado profeta  badio da grande ilha de Santiago e incansável peregrino e pregador das ruelas, vielas, praças e pracetas da cidade-repartição, agnome por que, depois da irreversível queda da antiga Cidade da Ribeira Grande de Santiago, agora chamada Cidade Velha, tem sido conhecida a cidade-capital da capitania geral-prefeitura-colónia- província ultramarina, invariavelmente possessão portuguesa por mais de meio-milénio de anos, depois igualmente do país africano independente e soberano, na indisfarçável vituperação e nos insuperáveis despeito e menosprezo da imaginação desgraçadamente ingrata e doentiamente bairrista de alguns caboverdianos de outras ilhas, bastas vezes migrantes recém-arribados à grande ilha, por demais (re)conhecida, já duraram tempos, como má mãe e boa madrasta. 

Ainda assim, peremptório e febril, o louco predilecto da cidade persistia em interpelar todas as palavras gastas, mesmo se paradoxalmente germinando nas mentes e nos passos enraivecidos, aparentemente indiferentes, de todos, incluindo nos gestos impostores e convictos dos transeuntes da cidade. É sabido que há muito as palavras estão gastas por demasiado repetidas na nomeação de realidades sobre-evidentes. 
E eis-me agora num momento de lucidez, entre o meu cérebro e o meu corpo, trucidado entre ambos. Neste momento, poderia passar impreterível e indiferentemente por louco como qualquer outro transeunte, habitante radicado da cidade ou em trânsito passageiro pela urbe majestosamente sobranceira ao mar. E por maioria de razão poderia chamar louco a qualquer tribuno de ocasião que, vociferante, se dispusesse a perorar e a fazer ousadas proclamações sobre verdades super-evidentes, ou, de outro modo, excessivamente evidenciadas por demasiadamente, ainda que em modo cauteloso, recolhidas nas tenebras do silêncio temeroso. 
Como, aliás, reza o axioma: a loucura é a razão das minorias ostracizadas, a razão é a loucura das grandes maiorias conformadas em multidões resignadas com o seu destino e com os seus mandarins. 
Eis-me, pois, guilhotinado num momento de lucidez, isto é, situado algures entre a mente e a carne, entre mim e mim. 

Praia, Janeiro de 1989
Queluz, Monte-Abraão, Julho/Setembro/Dezembro de 2022/Janeiro de 2023 

por José Luís Hopffer Almada
A ler | 2 Janeiro 2023 | Amílcar Cabral, Cabo Verde, Guiné Bissau, identidade, Independência, Literatura, luta, nacionalismo, partido, política, povo, representação