Reflexões sobre “A Utopia no romance 'Biografia do Língua', de Mário Lúcio Sousa”, de João Paulo Tavares de Oliveira - parte I
I Considerações gerais sobre o tradicional olhar policlínico dos letrados caboverdianos segundo Baltasar Lopes da Silva
Referindo-se às diferentes vertentes da intervenção escrita dos claridosos, nomeadamente na poesia, na prosa de ficção, na crónica, na crítica literária, em entrevista, na reportagem e na prosa cientifica (em especial na linguística do idioma crioulo e na antropologia da mestiçagem cultural e biológica ocorrida nas ilhas), dizia Baltasar Lopes da Silva que, nas condições de Cabo Verde, os mesmos escritores claridosos eram, de algum modo, obrigados a ser policlínicos no exercício do seu ofício de letrados.
Com efeito, se se atentar bem, verifica-se o seguinte:
a) Jorge Barbosa (Jorge Vera-Cruz Barbosa de seu nome completo), funcionário alfandegário, deambulante por várias ilhas de Cabo Verde, quiçá o menos policlínico (no sentido de intelectualmente polivalente) dos escritores claridosos-fundadores, inicia o modernismo poético caboverdiano imprimindo-lhe um forte cariz telúrico com a publicação, em 1935, do seu caderno de poemas intitulado Arquipélago, na senda da sua reviravolta estética e da ruptura com a sua poesia anterior publicada de forma avulsa em vários periódicos portugueses e caboverdianos. Como se sabe, essa reviravolta estético-formal e estético-ideológica verifica-se de forma paulatina e irreversível na sequência da publicação, na cidade da Praia, no ano de 1929, com capa de Jaime de Figueiredo e edição de João Lopes, do inusitado e explosivo livro de poemas intitulado Diário, de António Pedro Costa, o qual constitui inegavelmente o marco inaugural do modernismo poético caboverdiano e da concomitante primeira invenção de um surrealismo caboverdiano de feição assaz iconoclasta no que respeita à abordagem da paisagem das ilhas, da racialmente variegada criatura humana nela radicada e de algumas das suas manifestações culturais mais antigas e típicas, como o batuco, algumas delas consideradas até sacrossantas, como no caso da morna.
A publicação do livro Arquipélago, de Jorge Barbosa, precede a publicação, a 22 de Março de 1936, do primeiro número da revista Claridade, tendo todavia o primeiro livro do futuro grande vate santiaguense sido sintomaticamente editado com a chancela das Edições Claridade, cujo grupo fundador estava já constituído por essa altura. O mesmo livro inaugural do modernismo poético telúrico caboverdiano traz na sua badana um texto de Jaime de Figueiredo, indiciador das opções deste mesmo autor pela denominação de uma futura revista do grupo modernista iniciado na cidade da Praia e, depois, transferido e sediado na cidade do Mindelo, e que seria Atlanta (do nome do grupo constituído a partir do magistério modernista de Jaime de Figueiredo, então residente na cidade da Praia, e integrado por Jorge Barbosa, Manuel Lopes e João Lopes).
Para além de ser autor de um romance intitulado Bia Graça (estranhamente ainda mantido inédito, decorridos mais de cinquenta anos sobre o falecimento, em 1971, na Cova da Piedade, do concelho de Almada, da região da grande Lisboa, do sacrossanto poeta-mor claridoso nascido em 1901, na cidade da Praia e passados já alguns anos sobre o passamento do depositário do seu espólio escrito e seu testamenteiro literário, o seu filho Jorge Pedro Barbosa, até então residente nos Estados Unidos da América), Jorge Barbosa foi também autor de inúmeras crónicas e entrevistas sobre as mais variadas questões relativas a Cabo Verde (quase todas, ou, pelo menos, a maior delas, compilada, segundo creio, na tese de doutoramento de Hilarino da Luz).
Considerado o mais completo e complexo dos poetas claridosos, e ostentando, segundo a malograda Professora Elsa Rodrigues dos Santos, várias máscaras identificadoras e (des)veladoras da sua escrita poética, a poesia de Jorge Barbosa foi postumamente reunida na sua Obra Poética, organizada por Arnaldo França, prefaciada por Elsa Rodrigues dos Santos, editada pela Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, de Portugal, e reunindo os seus três livros editados em vida, designadamente Arquipélago (1935), Ambiente (1941) e Caderno de Um Ilhéu (1956), acrescidos de outros três livros inéditos, designadamente Expectativa, Romanceiro dos Pescadores e Outros Poemas, sendo que desse conjunto póstumo constam alguns poemas em crioulo do grande vate claridoso, subscritos pelo seu até então desconhecido pseudónimo Iago da Nóbrega, tendo alguns desses poemas sido musicados (por exemplo, Minina di Bila).
b) Baltasar Lopes da Silva, licenciado em Direito e em Filologia Românica, advogado, professor liceal e reitor do Liceu Gil Eanes, foi autor de Chiquinho o primeiro romance modernista caboverdiano, editado pela primeira vez em 1947 com a chancela das Edições Claridade e assinado, como, aliás, toda a sua narrativa ficcional, com o nome Baltasar Lopes, sendo certo que excertos do romance ainda em elaboração final e em versão ligeiramente diferente foram publicados, em 1935, no lisboeta Diário de Lisboa e em números correspondentes à primeira fase da existência da revista Claridade. Foi também autor da monumental obra O Dialecto Crioulo de Cabo Verde, editada em 1957 pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda, de Portugal, e de vários ensaios (que assinava sempre com o seu nome completo), de contos e de poemas (sendo estes assinados pelo seu pseudónimo Osvaldo Alcântara) publicados na revista Claridade, de que foi o principal mentor e um dos mais assíduos e completos colaboradores, enquanto poeta, ensaísta, ficcionista e único colaborador/fundador residente, no período que cobre a segunda fase (1947-1949) e a terceira fase (1958-1960) da icónica e intermitente revista, na cidade do Mindelo da ilha de São Vicente, cidade onde a primeira revista literária e cultural do modernismo caboverdiano era impressa na tipografia de Manuel (Leça) Ribeiro de Almeida, de cujo jornal Notícias de Cabo Verde Baltasar Lopes da Silva foi também colaborador assíduo. Organizou a Antologia da Ficção Cabo-Verdiana, editada por ocasião das comemorações do Meio-Milénio do Achamento de Cabo Verde.
Segundo atesta Leão Lopes na sua tese de doutoramento, Baltasar Lopes da Silva foi identificado como tendo sido um activo antifascista e suspeito de ter sido chefe clandestino da resistência anti-colonial em Cabo Verde, por isso mesmo com direito a ter um dossier de centenas de páginas elaborado pela famigerada polícia política portuguesa, a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), depois renomeada PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), dos tempos do ditador fascista de Santa Comba Dão, e rebaptizada DGS (Direcção-Geral de Segurança), durante o subsequente consulado fascista de Marcelo Caetano.
Avesso ao princípio da unidade Guiné-Cabo Verde, Baltasar Lopes da Silva fundou, com Henrique Teixeira de Sousa e outros intelectuais caboverdianos residentes na cidade do Mindelo, a Associação Democrática de Barlavento, antecessora imediata da UDC (União Democrática de Cabo Verde, de que parece ter sido mentor intelectual), no período pós-25 de Abril de 1974 imediatamente anterior à instalação do governo de transição política para a independência, constituído de forma paritária pelo Estado português e pelo PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde), na sequência da celebração do Acordo de Lisboa, de 19 de Dezembro de 1974, entre as duas entidades políticas acima referidas. Relembre-se que a instalação do governo de transição selou a instauração de facto do regime de partido único em Cabo Verde com o encarceramento pelo MFA (Movimento das Forças Armadas) no presídio político do Tarrafal de proeminentes militantes dos partidos adversários do PAIGC, designadamente da UDC e da UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde), ambos retirados de facto de forma coerciva do cenário político caboverdiano nesses conturbados tempos históricos de abrupta rotura política.
No período pós-colonial e na vigência de jure do regime de partido único, institucionalizada pela LOPE (Lei da Organização Política do Estado) que consagrou o PAIGC como a força política dirigente da sociedade, o jurista Baltasar Lopes da Silva foi juiz (depois demissionário) do Conselho Nacional da Justiça (denominação do Supremo Tribunal de Justiça instituída pela LOPE), por essa altura constituído ademais pelos juristas Raul Querido Varela, Manuel Duarte e António Caldeira Marques (e, mais tarde, também pelo jurista António Mascarenhas Monteiro, entretanto regressado da Bélgica, onde se encontrava exilado desde o tempo colonial e depois de primeiramente ter exercido o cargo de Secretário-Geral da ANP (Assembleia Nacional Popular). Nesse mesmo período de vigência de jure do regime de partido único, Baltasar Lopes da Silva foi Presidente honorário da clandestina UCID (União Cabo-Verdiana Independente e Democrática) fundada em Roterdão, a 13 de Maio de 1978, na sequência dos eventos repressivos ocorridos em 1977 na ilha de São Vicente, tendo colaborado na revista Raízes e sido colunista da revista Ponto & Vírgula (1984-1987) com a rubrica “Varia Quaedam”.
Falecido em Lisboa em 1989 e sepultado na cidade do Mindelo, a sua obra poética foi recolhida e organizada por ele próprio no início dos anos oitenta no volume Cântico da Manhã Futura (com edição do Banco de Cabo Verde), e os seus contos no livro Os Trabalhos e os Dias (inesperada e inusitada- mente com prefácio de Arménio Vieira, um antigo aluno de Baltasar Lopes da Silva, curiosamente também considerado durante algum tempo pela polícia política colonial-fascista como o responsável máximo da organização clandestina do PAIGC em Cabo Verde - na verdade dirigida por Jorge Querido, depois de ter exercido função similar em Portugal, tendo sido substituído na Metrópole colonial por Amaro da Luz - e um poeta bilingue em português e em crioulo, para além de ficcionista, notória e assumidamente anti-(ou, se se quiser, pós-)claridoso revelado no Boletim Cabo Verde e co-fundador de Seló, o suplemento literário do jornal Notícias de Cabo Verde publicado por duas vezes em 1962 (seja realçado a título de curiosidade, revelou a terceira autora caboverdiana de prosa narrativa ficcional, designadamente Maria Margarida Mascarenhas - MMM-, depois de Maria Helena Spencer e Haideia Avelino Pires, as ficcionistas reveladas pelo Boletim Cabo Verde) e no qual o poeta do platô praiense constituiu um excelente trio de poetas com o mindelense Oswaldo Osório (também contista, romancista, ensaísta, editor e tradicionalista) e o também praiense Mário Fonseca (poeta bilingue em francês e em português, cronista e crítico literário).
Os ensaios e as crónicas de Baltasar Lopes foram postumamente organizados em livro pelo Professor Alberto Carvalho (cuja tese de doutoramento incidiu sobre o romance Chiquinho) e editado pelo Instituto da Biblioteca Nacional de Cabo Verde.
c) Manuel Lopes (Manuel dos Santos Lopes de seu nome completo) funcionário da Italcable e, depois, da sua congénere inglesa Western Telegraph na ilha de São Vicente, na ilha do Faial (nos Açores) e em Lisboa, pintor nas horas vagas, foi o mais produtivo, premiado e traduzido dos poetas, contistas, romancistas, ensaístas e cronistas claridosos-fundadores, tendo sido autor dos romances Flagelados do Vento Leste (1956) e Chuva Braba (1959), do livro de contos O Galo Que Cantou na Baía e Outros Contos Cabo-Verdianos (1959), dos livros de poesia Horas Vagas (1934), Poemas de Quem Ficou (1949), Folha Caída (1960), Crioulo e Outros Poemas (1964) e Falucho Ancorado (1997, compilação da sua poesia mais relevante, com um Estudo-Prefácio de Alberto Carvalho) bem como dos ensaios Monografia Descritiva Regional (1932), Paul (1932), Temas Cabo - Verdianos (1950), Os Meios Pequenos e a Cultura (1951), Reflexões Sobre a Literatura Cabo -Verdiana (1959) e As Personagens de Ficção e Seus Modelos (1973).
Manuel Lopes foi ademais o mais longevo dos claridosos-fundadores, tendo vivido tempo suficiente para, tal como Baltasar Lopes da Silva, assistir à realização, em 1986, na cidade do Mindelo, do Simpósio sobre a Literatura e a Cultura Cabo-Verdianas (mais conhecido por Simpósio Claridade) e à concomitante reconciliação pública entre os proclamadores da independência literária de Cabo Verde que foram os claridosos e os cabouqueiros e os fautores e proclamadores da independência política do Sahel insular que foram os integrantes da Geração da Nova Largada (com destaque para Manuel Duarte - Manuel de Jesus Monteiro Duarte de seu nome completo-, definitivamente desvelado no livro de entrevistas intitulado Onésimo Silveira - Um Mar de Histórias, de José Vicente Lopes, como o real e verdadeiro autor de Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana, o mais célebre e contundente ensaio anti-claridoso da História literária caboverdiana, por isso mesmo denominado livrinho maldito por Gabriel Mariano, o qual foi apropriado, publicamente assumido e feito editar em 1963 com a chancela da Casa dos Estudantes do Império (CEI) por Onésimo Silveira deste modo inusitado tornando-se um excêntrico e realmente existente pseudónimo de Manuel Duarte) e os demais camaradas e companheiros nacionalistas africanos de Amílcar Cabral.
d) João Lopes. O único não literato e não escritor dos claridosos-fundadores, foi todavia autor de dois paradigmáticos ensaios de teor marxista e feição assumidamente luso-tropicalista publicados nos números 1 e 2 da revista Claridade sobre a antropologia cultural do povo caboverdiano e que vêm marcando (quase) todas as reflexões posteriores sobre a identidade cultural do povo caboverdiano, incluindo as empreendidas pelo afro-crioulista e pan-africanista Amílcar Cabral.
e) Jaime de Figueiredo, um verdadeiro escritor de ideias, artista plástico introdutor em Cabo Verde do modernismo na área das artes plásticas que primacialmente cultivava e irreverente agitador modernista das então assaz pantanosas águas culturais caboverdianas, integrou o grupo modernista inicialmente chamado Atlanta, depois denominado claridoso (do nome da revista Claridade, assim denominada muito provavelmente por iniciativa de Baltasar Lopes da Silva), diga-se que contra a sua vontade, daí resultando a sua desvinculação do mesmo grupo e o não envio da colaboração gráfica que lhe cabia e para a qual se tinha comprometido e foi substituída à última da hora pela crónica intitulada “Tomada de Vista”, assinada por Manuel Lopes, sendo disso prova o facto de a revista Claridade continuar a ser caracterizada no seu cabeçalho e durante toda a sua intermitente existência como Revista de Arte e Letras. Ensaísta de mérito, bibliotecário e autor de inúmeros artigos sobre as mais variadas questões relativas a Cabo Verde, com destaque para a economia, organizou a muita meritória e influente antologia intitulada Modernos Poetas Cabo-Verdianos, com um instrutivo, suculento e no demais marcante prefácio seu, por ocasião das celebrações do Meio-Milénio do Achamento de Cabo Verde.
f) Francisco Xavier da Cruz (popularizado como B. Lèza - ou também Frank B. Lèza, expressamente utilizado no romance Chiquinho-, o seu nominho e pseudónimo artístico que usou para assinalar a sua colaboração com o poema “Vénus” do rosto do segundo número da revista Claridade e sob o qual assinou (quase) toda a sua obra de músico-compositor, aliás, considerado o mais importante autor de mornas da história caboverdiana depois do seu predecessor Eugénio Tavares, incluindo por Baltasar Lopes da Silva, seu amigo chegado e companheiro de tertúlias musicais, sendo outrossim unanimemente considerado o responsável pela introdução do chamado meio-tom brasileiro nesse género musical caboverdiano e, por isso, muito aclamado e venerado pela historiografia musical caboverdiana.
Para além da sua obra literário-musical em crioulo e assinada com o pseudónimo e nome de casa B. Lèza, é igualmente autor e com o nome próprio Francisco Xavier da Cruz de uma importante obra cultural em duas vertentes fundamentais:
i. Uma válida obra poética em português, numa vertente de teor lírico e paixão e desilusão amorosas, assaz aparentada à poesia de Januário Leite, e noutra vertente de feição hesperitana, muito próxima da poesia em português de Pedro Cardoso. Anote-se que a poesia em português de Francisco Xavier da Cruz é sempre elaborada segundo as regras e os cânones da métrica tradicional da poesia lusógrafa.
ii. Uma importante obra ensaística sobre a cultura caboverdiana, de que é ilustrativo o livro A Razão da Amizade do Povo Cabo-Verdiano pela Inglaterra, no qual, para além de questões relacionadas com a história do Porto Grande do Mindelo, - consabidamente tornado indispensável para a economia das ilhas e imprescindível para a cultura caboverdiana como o seu pulmão económico e janela de Cabo Verde aberta ao mundo por mor da obra dos ingleses-, faz muito pertinentes incursões à variante de São Vicente do crioulo caboverdiano na tentativa, assaz conseguida, de comprovar a origem no inglês do léxico dessa mesma variante.
g) Pedro Corsino de Azevedo, empregado comercial, poeta telúrico-existencialista, prematuramente falecido por doença num sanatório em Lisboa, em 1941, com apenas trinta e sete anos de idade, deixou uma obra assaz escassa (pelo menos, do que até agora se conhece), mas de grande qualidade, publicada na revista Claridade.
h) António Aurélio Gonçalves (popularizado pelo seu nominho Nho Roque), universitário com frequência do Curso de Medicina e de Belas Artes e licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde viveu por um longo período de tempo (de 1917 a 1939), colaborou em publicações periódicas pan-africanistas e publicou o opúsculo Aspectos da Ironia em Eça de Queirós. Depois do seu regresso a Cabo Verde no ano de 1939, foi professor liceal de História e Filosofia e colaborador da revista Claridade a partir da sua segunda fase, a qual se prolongou de 1947 a 1949, mas não integrando o já consolidado grupo dos claridosos/fundadores constituído, como já referido e geralmente aceite, por Jorge Vera-Cruz Barbosa, Baltasar Lopes da Silva, Manuel dos Santos Lopes e João Lopes. Evidenciou-se pela sua escrita de textos de narrativa ficcional por ele designados noveletas e muito viradas para as vivências das gentes da cidade do Mindelo, cidade onde era verdadeiramente venerado, e, em especial, dos seus rostos femininos, mas também - quiçá em razão da sua formação académica - pelas suas muito pertinentes considerações opinativas sobre a literatura caboverdiana (por exemplo, no seu prefácio à Antologia de Ficção Cabo-Verdiana Contemporânea, organizada por Baltasar Lopes da Silva), a literatura universal, com destaque para as obras de Eça de Queirós e Érico Veríssimo, e a cultura caboverdiana, depois reunidos num livro de ensaios póstumo intitulado Ensaios e Outros Escritos, organizado, tal como a sua obra ficcional póstuma, por Arnaldo França.
Para além dos claridosos-fundadores e dos claridosos literatos (incluindo os colaboradores com textos em crioulo, como no caso de B. Lèza), gostaria de destacar o nome de um letrado que, embora não tendo colaborado em nenhum dos nove números das três fases sucessivas da revista Claridade, teve uma excepcional influência intelectual na sociedade caboverdiana do seu tempo. Trata-se de António Carreira, considerado indubitavelmente como o mais produtivo e célebre historiador caboverdiano de todos os tempos na sequência da notável obra do autor dos quatro tomos da História da Guiné e de Cabo Verde e de inúmeros textos denunciando o flagelo das secas e das catástrofes das fomes nas ilhas, José de Senna Barcelos.. Embora auto-didacta, foi autor de uma obra historiográfica de grande relevância e de inquestionável influência até à actualidade e na qual se destacam o monumental livro Cabo Verde (1460-1878) - Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata, publicada em 1972, bem como o muito instrutivo e informado O Crioulo de Cabo Verde-Surto e Expansão. Contemporâneo e certamente amigo dos claridosos, não colaborou em nenhum dos números da revista Claridade, tendo sido todavia colaborador habitual da revista Cabo Verde (fundada em 1949 na cidade da Praia, onde era impressa na tipografia da Imprensa Nacional, ficando mais conhecida e popularizada como Boletim Cabo Verde), do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa (colónia/província ultramarina portuguesa onde desempenhou altos cargos como funcionário da administração colonial e empregado comercial), de publicações portuguesas nas áreas da história e da antropologia, bem assim de publicações periódicas caboverdianas pós-coloniais, com destaque para as revistas Raízes e Ponto & Vírgula.
II A construção de um campo académico pós-colonial e a radical mudança nos estudos da literatura e da cultura caboverdianas
1. Tendo sido herdada dos chamados escritores nativistas (também impropriamente chamados pré-claridosos), consabida e igualmente multifacetados como articulistas, redactores e colaboradores de jornais e de outras publicações periódicas sobre as mais variadas e candentes questões relativas a Cabo Verde e ao mundo do seu tempo histórico, além de poetas e, alguns deles, dramaturgos e prosadores ficcionais, a natureza policlínica, no sentido de multifacetada, da escrita dos letrados caboverdianos aplica-se igualmente a muitos escritores neo-claridosos de grande relevância, como os certezistas Henrique Teixeira de Sousa (médico, ensaísta,contista, romancista e cronista), Nuno Miranda (poeta, ficcionista, cronista e ensaísta) e Arnaldo França (poeta e ensaísta de mérito, além de professor de literatura), bem como a intelectuais nova-largadistas, com grande destaque para o jurista e ensaísta de mérito Manuel Duarte (devido ao seu papel pioneiro na chamada reafricanização dos espíritos desempenhado pelos ensaios “Cabo- Verdianidade e Africanidade” e “Cabo Verde e a Revolução Africana”, assinado pelo seu pseudónimo A. Punói, sendo que, quarenta anos depois da sua morte, a sua obra poética continua extraviada) e para o jurista Gabriel Mariano (poeta bilingue, contista e ensaísta de grande mérito, com grande influência nos estudos caboverdianos devido à ininterrupta influência até à actualidade dos seus ensaios “Do Funco ao Sobrado ou o Mundo que o Mulato Criou” e “A Mestiçagem: O Seu Papel na Formação da Sociedade Cabo-Verdiana” e do seu poema épico-telúrico “Capitão Ambrósio”).
2. Tal como foi dito para o historiador António Carreira, referido como um verdadeiro claridoso geracional, distinguem-se ainda (e para além dos literatos colaboradores da segunda fase e/ou da terceira fase da revista Claridade) os nomes de dois ensaístas e estudiosos caboverdianos, quer porque, mesmo não sendo escritores no sentido estrito do termo, colaboraram na segunda fase e/ou na terceira fase da revista Claridade, quer porque no terceiro caso abaixo referido se trata de alguém que, tendo sido ficcionista, jornalista e cronista, teve uma importante influência intelectual na sociedade colonial do seu tempo, apesar de não ter tido qualquer colaboração na revista Claridade ou em revistas estritamente literário-culturais cujos colaboradores foram depois por ela absorvidos, como nos casos exemplares das revistas Certeza e Suplemento Cultural..
Trata-se, pois, dos seguintes nomes:
a) Félix Monteiro, alto funcionário das Finanças, tanto no tempo colonial, como no período subsequente à independência nacional de Cabo Verde, colaborou na segunda fase e na terceira fase da revista Claridade, na qual publicou os seus estudos sobre a tabanca da ilha de São Tiago e as festas das bandeiras da ilha do Fogo, tendo sido ademais um regular colaborador da revista Cabo Verde (mais conhecida por Boletim Cabo Verde) e, no período pós-colonial, da revista Raízes (de que foi um dos co-fundadores e responsável da rubrica “Páginas Esquecidas”, na qual foram divulgados muitos poemas inéditos de Guilherme da Cunha Dantas e Eugénio Tavares) e da revista Ponto & Vírgula.
Foi o responsável pela recolha e organização para edição pelo ICL (Instituto Cabo-Verdiano do Livro) dos três volumes (poesia em português e em crioulo - com destaque neste último caso para as mornas-, prosa jornalistica e, igualmente, teatro e prosa narrativa ficcional) da obra de Eugénio Tavares anteriormente publicada em livros e em várias publicações periódicas, com destaque para a mindelense Revista de Cabo Verde, onde Eugénio Tavares ombreou com Luís Loff de Vasconcelos e José Lopes, a praiense A Voz de Cabo Verde, de que foi o principal redactor ao lado do seu director Abílio Monteiro Macedo e dos colaboradores/redactores Luís Loff de Vasconcelos, José Lopes da Silva e Pedro Monteiro Cardoso, a estado-unidense A Alvorada, na qual escreveu sobre a autonomia política de Cabo Verde sob a politicamente rebelde e mobilizadora consigna A África aos Africanos!, e, finalmente, a pós-colonial revista Raízes.
b) Pedro de Sousa Lobo, alto funcionário alfandegário em Cabo Verde e em Angola, colaborou no nº 9 (o derradeiro, de 1960) da revista Claridade, tendo-se evidenciado em razão da sua compreensão no meu entender exageradamente eurocêntrica da crioulidade caboverdiana, por isso, considerado como tendo levado até às últimas consequências a controversa tese da diluição de África formulada por Baltasar Lopes da Silva no ensaio Cabo Verde Visto por Gilberto Freyre. Anote-se que a sua tese de licenciatura em Estudos Ultramarinos (ainda inédita em livro) versa sobre a mesma problemática identitária e tem o mesmo escopo ensaístico neo-claridoso.
c) Maria Helena Spencer, redactora e colunista da revista Cabo Verde (popularizada, como já referido, como Boletim Cabo Verde), foi a primeira autora caboverdiana de prosa narrativa ficcional de feição modernista e telúrica, tendo os seus contos e crónicas sido reunidos e publicados por Ondina Ferreira nos inícios dos anos 2000, ainda em vida dessa pioneira da prosa modernista caboverdiana no feminino. Nos seus textos publicados (creio que quase exclusivamente) na revista Cabo Verde abordou as mais variadas questões atinentes às mulheres, à cidade da Praia e a Cabo Verde, destacando-se neste contexto as suas entrevistas a Jorge Barbosa e Henrique Teixeira de Sousa. Contemporânea da segunda vaga dos claridosos (também chamada neo-claridosa), com destaque para o então médico, ensaísta e contista Henrique Teixeira de Sousa, porém nunca colaborou com a revista Claridade, uma revista literária e cultural marcadamente masculina, como é sabido e foi inequivocamente expresso, por exemplo, numa entrevista de Orlanda Amarilis (aliás, a única mulher com artigo sobre a condição feminina - publicado na revista Certeza e tornada companheira da vida e das letras de Manuel Ferreira, quando este viveu na ilha de São Vicente, integrado no corpo expedicionário português deslocado para esta ilha durante a Segunda Guerra Mundial, vindo a consagrar-se, já depois da Revolução do 25 de Abril de 1974, como uma das profícuas e produtivas ficcionistas caboverdianas com inovadoras incursões ao imaginário do fantástico e do maravilhoso radicado no ancestral animismo mágico presente na oratura e na oralitura caboverdiana bem como no racionalismo cristão de feição mindelense.Compreensivelmente, Maria Helena Spencer também não colaborou no Suplemento Cultural ao Boletim Cabo Verde, revista identificada com o grupo-movimento político-cultural da nova largada da literatura caboverdiana, formado no ano de 1953, em Lisboa, segundo explicado por José Leitão da Graça numa série de artigos publicados no Diário de Lisboa, no período posterior à falência pós-colonial do projecto de unidade Guiné-Cabo Verde e imediatamente anterior ao seu regresso do exílio lisboeta, em 1986, e da sua definitiva radicação no solo pátrio. Segundo esse mesmo político nacionalista e da extrema-esquerda maoísta, o grupo da nova largada era assumida e insofismavelmente nacionalista e contestatário do sistema político-social então vigente (tendo por isso o o segundo número do seu Suplemento Cultural sido vítima da censura colonial-fascista que impediu a sua saída do prelo). Foi esse grupo- movimento político-cultural que aglutinou no seu seio os poetas, os contistas e os ensaístas nacionalistas caboverdianos, todos então estudantes universitários em Lisboa e Coimbra, e teve o privilégio de revelar a verve poética de Iolanda Morazzo, a primeira poetisa modernista caboverdiana. Curiosamente foi contudo na revista Claridade da terceira fase (de 1958 a 1960) que se revelaram alguns poetas e contistas já naquela altura integrados no acima referido grupo-movimento político-cultural da nova largada em razão do seu inegável posicionamento político de resistentes ao sistema colonial-fascista vigente. Tal foram os casos dos poetas Ovídio Martins e Onésimo Silveira que, assim, vieram juntar-se a outros poetas desse movimento político-cultural revelados na segunda fase (de 1947 a 1949) da revista Claridade, como nos casos do poeta Aguinaldo Fonseca e de Gabriel Mariano, responsável pela recolha de várias finasons e alguns motivos de batuco comentados nas páginas da revista Claridade da segunda e da terceira fases por Baltasar Lopes da Silva. Sublinhe-se que alguns dos integrantes do grupo-movimento político-cultural da nova largada foram colaboradores habituais do Boletim Cabo Verde, em cujos concursos literários arrecadaram prémios de revelação na narrativa de ficção, como ocorrido com José Leitão de Graça e Gabriel Mariano, vindo este a revelar-se como importante poeta lusógrafo com a publicação, em 1963, dos seus Poemas de Circunstância, impressos na Minerva de Cabo Verde da cidade da Praia, sendo esses mesmos poemas todavia já muito conhecidos nas rodas de amigos e nos meios político-culturais clandestinos, tal como viria a acontecer igualmente com o seu celebrado poema “Capitão Ambrósio” (editado em 1976 e escrito provavelmente em 1966, na ilha de Moçambique, para onde foi compulsivamente transferido, depois de, na presença do governador colonial, ter proferido na então Vila da Asssomada uma palestra em defesa do crioulo caboverdiano) e com outros poemas de gerundiva rebelião da sua lavra fulminante e telúrica, posteriormente reunidos pela editora Vega no livro Ladeira Grande, com um prefácio do Professor Alberto Carvalho.A revista (ou Boletim) Cabo Verde foi igualmente lugar de revelação de futuros grandes poetas caboverdianos, como Arménio Vieira e Mário Fonseca, tendo este feito publicar nesse mesmo periódico oficioso e eclético um dos mais subversivos poemas jamais escritos na época colonial e intitulado “Quando a Vida Nascer”.
O grupo/movimento político-cultural da nova largada viria assim a transformar-se num ainda mais amplo movimento político-cultural, agregando os poetas contestatários e nacionalistas revelados em publicações periódicas (como a folha Seló, o Boletim dos Alunos do Liceu Gil Eanes e a revista (ou Boletim) Cabo Verde, e/ou autores de livros marcantes publicados no período posterior à edição do número único do Suplemento Cultural, com destaque para os livros Caminhada e Gritarei, Berrarei, Não Vou para Pasárgada, de Ovídio Martins, Poemas de Circunstância, de Gabriel Mariano, e Noti, de Kaoberdiano Dambará (pseudónimo de Felisberto Vieira Lopes), tudo vindo a culminar na conquista da independência nacional de Cabo Verde.
3. Atingida a idade pós-colonial, muitos literatos caboverdianos continuaram a disseminar a sua escrita por várias áreas culturais, chegando tais desígnios e desideratos até às gerações literárias reveladas nos anos setenta, oitenta e noventa do século XX e nas primeira e segunda décadas do século XXI, destacando-se de entre os seus integrantes os nomes de Onésimo Silveira (politólogo, autarca e ensaísta, neste caso exclusivamente devido ao seu livro A Democracia em Cabo Verde, de compilação de ensaios de incidência política e cultural da sua autoria), David Hopffer Almada (jurisconsulto, advogado, poeta, ficcionista, ensaísta), Jorge Carlos Fonseca (jurisconsulto, professor universitário, poeta, cronista e ensaísta), Vera Duarte (magistrada, poeta, romancista, contista e ensaísta), Ondina Ferreira (professora liceal e universitária, novelista, contista, ensaísta, crítica literária e antologizadora), Dina Salústio (professora do ensino primário, poeta, romancista, contista, cronista e radialista, tendo sido autora do primeiro romance caboverdiano de criação feminina), Ondina Ferreira (professora liceal e universitária, novelista, contista, ensaísta, crítica literária e antologizadora), Fátima Bettencourt (professora do ensino primário, contista, cronista e radialista), Germano Almeida (segundo Prémio Camões caboverdiano depois de Arménio Vieira, romancista, ensaísta, cronista e editor), Manuel Veiga (linguista, ensaísta e académico bilingue, considerado a maior autoridade actual na área da crioulística caboverdiana, sendo ademais romancista também bilingue e autor do primeiro romance em língua caboverdiana), Tomé Varela da Silva (poeta e ensaísta bilingue, ficcionista em língua caboverdiana e autor/organizador de várias obras de recolha de tradições orais caboverdianas), Leão Lopes (professor universitário, artista plástico e gráfico, ficcionista e editor), Jorge Tolentino (jurista, diplomata, jornalista, contista, poeta e ensaísta), José Vicente Lopes (jornalista, poeta, contista, ensaísta e editor), Mário Lúcio Sousa (advogado, poeta, romancista, dramaturgo, músico, artista plástico e ensaísta que mais recentemente se vem assumindo como pensador da crioulidade caboverdiana), Eutrópio Lima da Cruz (ensaísta, musicólogo, estudioso da música caboverdiana e romancista bilingue, sendo o autor do segundo e do terceiro romances em língua caboverdiana), Vasco Martins (músico erudito, romancista, poeta, ensaísta e estudioso da música caboverdiana), Tchalé Figueira (pintor de referência, romancista, contista, poeta e músico), José Vicente Lopes (jornalista, poeta, contista, ensaísta e editor), José Luís Hopffer C. Almada (jurisconsulto, poeta, ensaísta, editor, comentador radiofónico e antologizador), Jorge Tolentino (jurista, diplomata, jornalista, contista, poeta e ensaísta), Daniel Euricles Rodrigues Spínola (o Danny Spínola jornalista, contista, poeta e jornalista bilingue, cronista, ensaísta e editor, e o Euricles Rodrigues artista plástico), Fernando Monteiro (jornalista, contista e cronista), Valdemar Valentino Velhinho Rodrigues (o cronista Vadinho Velhinho e o poeta Valentinous Velhinho), Filinto Elísio Correia e Silva (bibliotecário, editor, poeta, romancista, cronista, crítico literário), Joaquim Arena (jurista, jornalista, romancista e ensaísta), Mário Lúcio Sousa (advogado, poeta, romancista, dramaturgo, músico, artista plástico e ensaísta que mais recentemente se vem assumindo como pensador da crioulidade caboverdiana), António da Névada (poeta e ensaísta), José Luiz Tavares (poeta bilingue em português e em crioulo, ensaísta e polemista também bilingue, o mais premiado escritor caboverdiano da actualidade), Tchalé Figueira (pintor de referência, romancista, contista, poeta e músico), Joaquim Arena (jurista, jornalista, romancista e ensaísta), Carlota de Barros (professora do ensino secundário, poeta, contista, romancista e cronista), Eurídice Monteiro (professora universitária, ensaísta, cronista e romancista), Mana Guta/Augusta Évora Tavares Teixeira (professora universitária, contista, ensaísta e cronista)…
4. É precisamente sobre uma das facetas da actividade cultural de um dos mais proeminentes e premiados integrantes dessas novas gerações literárias que se debruça o livro A Utopia no Romance Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa.
Que assim ocorra, deve-se ao encadeamento de uma série de circunstâncias históricas de feição nitidamente pós-colonial e que a seguir se explana:
Por obra de Manuel Ferreira foram inaugurados na Universidade de Lisboa os Estudos das Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa/de Língua Portuguesa, facto pioneiro que, depois, se disseminou para outras universidades portuguesas e brasileiras, até chegar à Escola de Formação de Professores do Ensino Secundário de Cabo Verde e, a partir do início do século XXI, à Universidade Pública de Cabo Verde e a outras universidades caboverdianas. Relembre-se neste preciso contexto que Manuel Ferreira foi e continua, quiçá, a ser o mais conhecido estudioso português e lusófono das literaturas africanas de língua portuguesa, tendo publicado vários (três) volumes relativos à poesia dos vários países afro-lusófonos e intitulados No Reino de Caliban, a que se seguiu a mais a um tempo selecta e eclética antologia Cinquenta Poetas Africanos, bem como os estudos constantes das obras Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa e O Discurso no Percurso Africano. Para além de ter contribuído decisivamente para a configuração neo-realista da revista Certeza e da obra literária dos seus mais importantes colaboradores, de entre os quais ele próprio, Manuel Ferreira foi um reconhecido, emérito, dedicado e incansável promotor da literatura caboverdiana, de que são testemunhos o icónico livro intitulado A Aventura Crioula (com primeira edição de 1967 e prefácio de Baltasar Lopes da Silva), os seus trabalhos de (re)edição de obras assaz relevantes para a história da literatura e da cultura caboverdianas, como o romance O Escravo, de José Evaristo de Almeida, e a edição fac-similada da revista Claridade (todos com a chancela da ALAC - África, Literatura, Arte e Cultura-, a editora por ele fundada e também responsável pela edição da muito influente revista África-Literatura, Arte e Cultura). Manuel Ferreira foi outrossim um detentor por demais legítimo de bi-nacionalidade literária luso-caboverdiana por mor da sua condição de autor das obras neo-realistas portuguesas Grei (colectânea de contos) e A Casa dos Motas (romance) e das temáticas tratadas com raro esmero linguístico-literário nas suas obras ficcionais caboverdianas, designadamente nas colectâneas de contos Morna, Morabeza e Terra Trazida e nos romances Hora di Bai e Voz de Prisão.
Deste modo e em resultado da acção pioneira de Manuel Ferreira, formou-se um campo académico dotado das metodologias e dos instrumentos técnicos necessários para a análise fundamentada e aprofundada das obras literárias produzidas pelos escritores e intelectuais caboverdianos e, em geral, da obra cultural, identitária e linguística produzida pelo povo caboverdiano das ilhas e diásporas.
Assim, e a despeito das propensões multi-funcionais e poli-instrumentistas de vários criadores caboverdianos (incluindo daqueles com elevada formação académica ou autodidacta nas áreas da literatura e da cultura caboverdianas), vai-se tornando cada vez menos indispensável a ainda assaz útil e necessária figura do escritor e dos intelectuais policlínicos caboverdianos.
É, pois, neste contexto de pronunciada especialização académica na área das literaturas de língua portuguesa dos novos intelectuais caboverdianos, e não só, que se enquadra o presente livro, enquanto obra resultante de um trabalho académico produzido no âmbito de um curso para a obtenção de um título académico (o mestrado) na Universidade Nova de Lisboa, depois de o então candidato a Mestre em Estudos Portugueses ter concluído a sua licenciatura exactamente na Faculdade (a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) onde aprouve ao saudoso Manuel Ferreira inaugurar a cadeira dos Estudos das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.
Continua na parte II.