Não se pode esquecer o gigantesco elefante branco

Atenção: terreno movediço!!!

Área sujeita a mudanças e vulnerável a erros. 

É possível acontecer escorregões e tropeços.

Ainda assim, avanço com passos cuidadosos, carregando comigo bagagens pesadas de uma experiência específica, e que por meses têm ocupado meus pensamentos. 

Vamos aos começos. 

Em 1934, no interior dos Jardins do Palácio de Cristal (Porto), aconteceu a Primeira Exposição Colonial Portuguesa. Essa exposição funcionara como propaganda nacional e internacional do Império Colonial Português em sentidos políticos, coloniais e comerciais. Entre diversas atividades que compunham o evento, a principal foi o que hoje reconhecemos como um zoológico humano: a recriação, de forma teatralizada, de aldeias das diversas colônias portuguesas. Isto marcou o deslocamento para Portugal de pessoas dos territórios colonizados, que permaneceram nos jardins do Palácio de Cristal durante os quatro meses de evento. 

Esses zoológicos humanos fazem parte do que Bennet (1995) chama de “exhibitionary complex”: a construção de uma tecnologia da visão, de um modo de percepção, de um olhar e de sujeitos. Neste caso, de determinadas pessoas passíveis de subalternização e processos de colonização, a partir do qual o olhar eurocêntrico se consolida enquanto ‘o’ centro e, também, através do público, das pessoas que visitam, que entram em uma lógica de autorregulação e interiorizam esse olhar colonial. 

A exposição testemunhava a superioridade da raça branca a partir do ‘grau de civilização’, identidade construída com base no contraste com o ‘selvagem’, o ‘exótico’. O zoológico humano no centro desta exposição procurava exatamente isso: a presentificação de uma evidente superioridade moral baseada no “contraste entre as pessoas expostas e o público e tornaram-se instrumentos poderosos da propaganda colonial, que unia todas as pessoas brancas independentemente do seu estrato social pelo facto de serem superiores aos povos racializados” (Ceuppens, 2023, p.14).

Como símbolo do evento, foi construído um gigantesco elefante branco. Com a tromba erguida, transmitindo uma impressão de grandiosidade, ele foi colocado sobre a estrutura temporária que revestiu o Palácio de Cristal, na época renomeado como Palácio das Colónias. O elefante branco também foi usado em materiais visuais e como souvenir, permitindo que as pessoas visitantes pudessem levar uma miniatura para casa, provavelmente com o intuito de manter uma lembrança de um evento considerado triunfante para o Império Colonial Português. Talvez seja assim que algumas pessoas o lembrem – ou talvez ele só esteja abandonado e empoeirado em antiquários ou casas portuguesas. Grada Kilomba diz que “o passado colonial foi ‘memorizado’ no sentido em que ‘não foi esquecido’. Às vezes, preferimos não lembrar, mas, na verdade, não se pode esquecer” (2020, p.213). Não se pode esquecer o gigantesco elefante branco.

É então, nos dias atuais, que o Programa de Incursão à Galeria (ping!), da Galeria Municipal do Porto, assume a importante tarefa de revisitar o evento de 1934 e trazer as subjetividades silenciadas, investigando e trabalhando em torno dos seus rastros históricos na contemporaneidade. Enquanto um programa educativo destinado ao público escolar e não escolar, o ping! alude ao elefante da exposição estreando, no ano de 2021, a programação “Um Elefante no Palácio de Cristal”, seguida, em 2022, da programação “Memória de Elefante”. 

Inserida na programação “Memória de Elefante”, foram realizadas as oficinas “#GIFmeback”. Elas aconteceram no contexto escolar a partir do convite do ping! à artista portuguesa Catarina Simão e ao investigador moçambicano Marílio Wane. O título da oficina traz um jogo de sentidos com o uso do GIF (Formato de Intercâmbio de Gráficos), um formato que permite a junção de imagens dando a impressão de movimento e repetição, e a ideia de give me back (devolva-me), sugerindo a ideia de reparação histórica e convidando à reflexão sobre a história colonial portuguesa e seus legados na sociedade atual.

GIF: É um tempo que volta a si. Uma ação que retoma. Como o retornar histórico/rever a história pode ser um modo reparador? Esse questionamento é fundamental para minha concepção de educação, enquanto um processo emancipatório que busca estimular o pensamento crítico e pode se tornar uma ferramenta fundamental para a justiça social.

Um elefante branco no #GIFmeback 

Neste texto quero refletir sobre uma ocorrência problemática – qual ‘elefante branco’ – no contexto do #GIFmeback. Essa escrita parte dessa experiência vivida, inscrita no meu corpo, tentando  perceber o que naquela situação me incomoda, me abala, me toca, o que eu ignoro, do que eu fujo.

Aqui deparo-me com o desafio de como escrever uma experiência social e emocional. Como trazer o nó que ficara travado na minha garganta por essa ocasião para o domínio da escrita? Como eu posso falar/escrever de um conflito em torno da objetificação sem diminuir na minha escrita essas tensões? Como a minha escrita pode ser solidária com outras pessoas que também tentam criar espaços/práticas mais justas e menos violentas? 

Como forma de ser mais honesta com minhas próprias dificuldades e como um primeiro passo que preciso dar para desenvolver minha investigação em educação artística comprometida com a não violência e anti-discriminação, escrevo a partir do que vivi. A partir da experiência visceral do meu corpo enquanto uma pessoa branca (Trowell, 2020) em determinado contexto. Enfrento o que se arrasta no meu corpo, o que me acompanha desde então. Eventos vagos, sensoriais, metidos neste contentor corpóreo ambulante.

Ao mesmo tempo, escrevo para entender como filtro os eventos vividos. Como os penso, e a partir deles me repenso; repenso as posições que este corpo ocupa, corpo de uma brasileira branca, onde a branquitude também se projeta. Começo por citar parte das minhas notas do Diário de Campo sobre as oficinas #GIFmebackPorto.

Diário #GIFmeback

5 de Maio de 2022 

Estamos na sala de aula, em volta de uma mesa comprida adaptada pela junção de diversas mesas. Nessa mesa estão expostos materiais, fotografias, livros e mapas relativos ao evento [a Primeira Exposição Colonial Portuguesa, de 1934]. A estudante, que acabou de nos contar que vem de São Tomé e Príncipe, está ao meu lado direito. Enquanto as demais estudantes conversam observando os materiais disponíveis, sua voz, que antes se dirigia somente a mim e mais algumas pessoas que estão próximas, vai ficando mais alta e assume o espaço da sala falando para todo mundo ouvir sua opinião. 

Ela direciona a fala para a artista responsável por realizar a oficina, que está do lado oposto da mesa. A aluna diz que percebeu a artista hesitar em falar a verdade por detrás do processo de colonização, a verdade sobre toda a violência e maldade que Portugal cometeu com seu povo. Repetidas vezes diz que a artista escondeu essa verdade e que está cansada de sempre tentarem falar sobre/por ela. Minha atenção é desviada. Do meu lado esquerdo escuto risos e cochichos enquanto faço um esforço para continuar prestando atenção na fala da aluna. Os risos não se dirigem à sua fala propriamente, são brincadeiras paralelas, mas acabam disputando as atenções no espaço, como se tivessem algo mais interessante para prestar atenção. Estou incomodada. A professora chama atenção para que façam silêncio. 

Os risos desaparecem e agora outra aluna, portuguesa e que está ao lado da artista,  responde sobre o assunto que está sendo discutido. Ela diz que esta perspectiva de que a artista deveria ter falado a verdade sobre violência e sofrimento é apenas um ponto de vista, afirma que existem outros pontos de vista e que existem pessoas - dando a entender que se refere a ela mesma e outras colegas portuguesas ao seu lado - que são sensíveis e não gostariam que a artista tivesse falado de maneira diferente. Ainda enfatiza que a oficina é uma forma de aprenderem sobre história e sobre o que aconteceu no passado”.

Hesitar em dizer a verdade.

Essa denúncia acabou repetidas vezes ocupando meus pensamentos, que acabaram por me levar para as ideias de ‘restituição’ e ‘reparação histórica’ de Achille Mbembe: “para que novos laços sejam forjados, a Europa deve honrar a verdade, pois ela é a mestre da responsabilidade. […]. Honrá-la passa pelo compromisso de reparar o tecido e a face do mundo” (Mbembe, 2021, p.241).

honrar a verdade?

honrar a verdade!

h-o-n-r-a-r-a-v-e-r-d-a-d-e. 

como honrar a verdade? 

como, de forma inconsciente (ou não), a Europa tenta se eximir da verdade?

como, de forma inconsciente (ou não), nós, pessoas brancas, tentamos nos eximir da verdade?

Quando Mbembe (2021) fala sobre o dever de honrar a verdade, ele se direciona para a Europa. Assim como a fala da estudante são-tomense não foi direcionada para as duas pessoas que ministraram a oficina, foi dirigida à artista portuguesa branca. Em que ‘lado’ da história cada uma delas se projeta? Essa atitude parece-me ecoar nas reações de outras alunas, elas também portuguesas e brancas. Com um rápido reflexo colocaram-se em posição de defesa da artista, cujos argumentos tão rápidos e orquestrados - “mas a proposta da oficina é aprendermos sobre história”; “nem todas as pessoas querem ouvir esse lado, tem pessoas que são sensíveis a esse tipo de assunto” - pareciam ser uma espécie de jogo de pingue-pongue onde as ações acontecem com uma rapidez e exigem uma resposta rápida de forma a tentar  deixar a pessoa adversária sem tempo para uma boa reação. 

Do meu lado direito, estava a estudante de São Tomé e Príncipe e do outro lado, do meu lado esquerdo, as demais alunas. 

Pingue…

Pongue…

Pingue…

Meu corpo tenso, rígido, um nó na garganta, uma vontade de falar sem saber ao certo o que e sabendo que não era o meu momento de fala. Minha atenção ficou se dividindo entre a discussão que se iniciava ali, como um jogo de pingue-pingue, com tamanha velocidade em tão pouco espaço de tempo. “SHHH, silêncio” - eu cuspi de forma rápida e baixinha; já não sei se eu falei em voz alta para as pessoas ao redor ou se foi para a própria discussão que acontecia em minha cabeça. 

Trick…

Pára pára repara

Track…

Por favor, uma pausa!

Trick…

Escuta!!

Track…

Rede!

Numa lógica de pertencimento e não pertencimento regulada por normas hegemômicas que autorizam o que pode ser ouvido e compreendido (Dhawan, 2012; Kilomba, 2020), a fala e a realidade da estudante são-tomense foi rapidamente desconsiderada pelas demais colegas, golpeada para fora do ‘jogo’. E eu – talvez ali rede –, como aquilo que eu ouço me diz ao que pertenço?

A branquitude é uma mentalidade colonial (Fanon, 2022). Uma forma de pensar, ver, escutar narcísica. Consequentemente, de não deixar ver, de não escutar e de não considerar alteridades que não a confirmem. Um dos eixos de eficácia da branquitude é a ‘negação’. Grada Kilomba aprofunda a reflexão de Paul Gilroy sobre os cinco mecanismos de defesa do ego do sujeito branco, sendo eles a negação, a culpa, a vergonha, o reconhecimento e a reparação. Nesse sentido, a ‘negação’ vai de encontro com a reação das estudantes portuguesas brancas: “é um mecanismo de defesa do ego que opera inconscientemente na resolução de conflitos emocionais, recusando-se a admitir as dimensões mais desagradáveis da realidade externa e os pensamentos internos ou sentimentos. É a recusa de admitir a verdade” (Kilomba, 2020, p.41). Como nós, pessoas brancas, podemos quebrar as barreiras inconscientes que bloqueiam que a verdade da violência colonial seja admitida?

Hesitar em dizer a verdade. 

Porque esta situação se cola a mim, pegajosamente? Que reverberações essa experiência produziu em mim, colocando-me ao mesmo tempo dentro e fora da branquitude? 

A crítica da estudante são-tomense não estava a ser direcionada a mim naquela situação, mas despertou minha atenção para a posição que ocupo enquanto brasileira que está a investigar no contexto português. O incômodo seguido de uma agonia pela falta de escuta das demais estudantes e também da própria ausência de ação em mediar a situação ripostam em mim, trazem-me da lateral da mesa no centro da sala de aula para o centro do jogo. Não me lembro se teria desejado então ser rede, neutra, divisa, entre campos… simultaneamente  uma ‘outra’, brasileira em Portugal, e uma ‘mesma’, pessoa branca. 

O lugar que eu ocupava naquela situação é um lugar de contradição. 

Como brasileira, venho de um território atravessado por violências herdadas de um passado colonial com Portugal. No entanto, reconheço que não sofro as mesmas formas de inferiorização racial geradas por essa relação colonial e vivenciadas por pessoas negras e racializadas. É aqui que as palavras escritas por Marinho de Pina sempre visitam meus pensamentos: “Amigo brasileiro branco […]. Controla a indignação!” (Pina, 2021). Controla a indignação ao falar do processo de colonização do Brasil por portugueses brancos quando somos pessoas implicadas e  beneficiárias dessa mesma branquitude.  

Sobre esse assunto, sou levada a pensar nas ideias de bell hooks, quando ela discute sobre o desejo pelo Outro como uma nova roupagem para o racismo que, “sem vontade aparente de dominar, alivia a culpa do passado, e até toma a forma de um gesto desviante onde se nega a responsabilidade e a conexão histórica” (hooks, 2017, p.195). Essa reflexão me leva a compreender a indignação que as pessoas brancas brasileiras devem controlar, como menciona Marinho de Pina, como sendo a expressão da branquitude se organizando em torno de sua cegueira narcisista, correndo o risco de negligenciar as intersecções que permeiam as múltiplas dimensões da violência e do legado da colonização. Essa postura pode acabar reafirmando a branquitude e ofuscando momentos em que é necessário assumir a responsabilidade como uma pessoa branca.

Perceber-se enquanto pessoa branca passa pelo privilégio de poder ignorar isso. O privilégio de menosprezar que o racismo não diz respeito somente a  outra pessoa estar em desvantagem, mas sim sobre a branquitude se colocar/estar como superior e como modelo único e ideal. O privilégio de escolher não ouvir verdades e realidades que não sejam as nossas; o privilégio de escolher não digerir e não repensar do que se trata a crítica de uma pessoa negra e racializada; o privilégio de não buscar mudanças e transformações para relações mais justas e menos violentas. 

Eu não sou a Europa naquele pingue-pongue, mas sou parte da rede da branquitude.

Terreno movediço

‘Ping’ é também onomatopeia para a queda de um líquido que goteja, que vai movendo de estado e lugar. Volto na ideia de terreno movediço que esse texto se inscreve, enquanto um caminho incerto e imprevisível, cuja intenção inicial pode afundar a qualquer momento em suas escolhas ou deslizar em diferentes direções. O terreno movediço pode também ser pensado em relação à própria ação da oficina e das pessoas envolvidas na sua organização que, com boas intenções, buscam trabalhar com a história colonial portuguesa de forma não celebrativa. 

Penso na reflexão de Brenda Cocotle sobre as intenções de descolonização dos museus como um diálogo importante para prestarmos atenção na importância de examinar com atenção os pressupostos e premissas subjacentes às boas intenções, a fim de identificar pontos cegos e conflitos e evitar a repetição das relações de poder que se procura desarticular. Cocotle sugere que “mais do que anunciar a fórmula de sua descolonização, teria de partir das contradições do presente, situar-se nos limites, pensá-lo em crise consigo mesmo” (Cocotle, 2019, p.10). 

No terreno movediço, as coisas podem mudar rapidamente, tornando difícil manter um equilíbrio. É preciso se adaptar às mudanças, ao imprevisível e ao não visível. Nesse sentido, o trabalho de Nora Landkammer e Karin Schneider (2021) dá uma pista de como contextos de aprendizagem podem lidar com temas e questões complexas e controversas, aceitando espaços que possam gerar conflitos e discussões e negociando-os. Isso significa sacudir as bases dos trabalhos de mediação e educação que buscam apenas acalmar e excluir conflitos.

É nesse ponto que a boa intenção se depara com suas zonas de tensão, e a carência de ferramentas para engajar e lidar com a contradição se torna evidente. Como é o caso da oficina #GIFmeback, que propõe abordar um conflito existente na sociedade portuguesa em uma escola que também não é um espaço neutro. A situação é ainda mais complexa devido ao conflito existente entre as próprias estudantes. Quem se responsabiliza por criar e fornecer as ferramentas necessárias para lidar com essa situação? Quando não há continuidade do trabalho em torno da zona de conflito com o coletivo, a situação acaba por dar voz às pressões já existentes no contexto. E quando o trabalho é interrompido e suspenso, pode reforçar o status quo e ser conveniente ao esquecimento.

Hesitar em dizer a verdade.

Por onde então pode começar uma mudança de mentalidade?

Existem algumas possibilidades para honrar a verdade por meio da educação e mediação artística. Uma delas é voltar-se para o passado, para fatos históricos, buscando recuperar histórias e subjetividades que foram silenciadas, rompendo com a ideia de uma história única (Adichie, 2009). 

Lembro-me que durante a oficina, houve um momento em que uma das participantes expressou: “acho que o que aconteceu no passado não deveria ter acontecido”, referindo-se à Primeira Exposição Colonial Portuguesa. Olhar para o passado e admitir a verdade de suas crueldades é um passo importante, entretanto, é uma zona que não pode ceder a um comodismo. É uma verdade que, de certa forma, parece ser  menos complicada de falar sobre. É aquela que nós, pessoas brancas, podemos facilmente esquecer e deixar sua responsabilidade para outro tempo e lugar; uma verdade que corre o risco de deixar suas consequências no passado, sendo aquela que afeta apenas aquelas pessoas que estiveram diretamente envolvidas no evento/tempo em questão. 

Honrar a verdade é também uma convocação para questionar os danos e as heranças do passado colonial que ainda ecoam nos dias de hoje. Quando a estudante fez aquela crítica durante a oficina #GIFmeback, eu percebi como um chacoalhão que desafia as barreiras que protegem o trabalho educativo e artístico em torno do evento de 1934, chamando a atenção para a realidade presente. Naquele momento, entendi que não se tratava de uma fala direcionada somente àquela oficina, mas sim uma denúncia de todo um contexto em que aquela estudante estava envolvida, incluindo o cotidiano da escola e de Portugal. 

A verdade que a Europa e a branquitude são convocadas a honrar é também a do presente, reconhecendo a persistência da mentalidade e das lógicas coloniais que ainda persistem guiando nossos relacionamentos, perpetuando relações hierárquicas, excludentes e violentas; e que acabou por ser revelada naquela sala de aula. Como afirmou Mbmebe: “para a Europa, restituir os nossos objectos significa deixar de vir ter connosco com a postura de quem, a seus olhos, só a sua própria realidade conta e se impõe” (Mbmebe, 2020, p.241). 

De fato, o passado não pode ser corrigido. No entanto, reconhecê-lo como inadmissível é uma tarefa crucial para o repensar histórico. Esse reconhecimento não se encerra sozinho, carrega a importância de questionar formas de restituição e reparação que levem para outros caminhos, que levem para outras mentalidades e posturas. Ao aprofundarmos a reflexão sobre as lógicas coloniais ainda presentes em nosso cotidiano, revelamos a complexidade da verdade e a urgência de agirmos em consequência disso. Isso implica em abandonar posturas arraigadas e abrir mão dos privilégios associados à branquitude e à Europa. Essa renúncia pode ser o ponto de partida de negociação da realidade. 

Hesitar em dizer a verdade. 

              dizer a verdade. O terreno movediço é um lugar desconfortável, cheio de incertezas, desestabilização e potencialidades. Nesse terreno, um movimento pode desencadear uma série de outros movimentos; pode pedir por pausa e atenção; prender e afrouxar. O terreno movediço ativa uma atenção cuidadosa. É onde tenho/temos que estar. 

Referências:

Adichie, Chimamanda. (2009). O perigo de uma única história. The TED Talks Channel. YouTube.

Bennett, Tony. (1995). The Birth of the Museum. History, theory, politics. Routledge.

Ceuppens, Bambi. (2023). Jardins zoológicos humanos e as suas vidas póstumas. In E.M. Galeria Municipal do Porto/Ágora - Cultura e Desporto do Porto (Ed.), Um Elefante no Palácio de Cristal.

Cocotle, Brenda Caro (2019). Nós prometemos descolonizar o museu: uma revisão crítica da política museal contemporânea. MASP – Afterall: arte e descolonização. Disponível em https://masp.org.br/uploads/temp/temp-X87a1s0ahKuQghS3VJ4D.pdf

Dhawan, Nikita. (2012). Hegemonic Listening and Subversive Silences: Ethical-political Imperatives. In Alice Lagaay & Michael Lorber (Eds.), Destruction in the Performative (Vol. 36, pp. 47-60): Brill. Retrieved from https://brill.com/display/book/edcoll/9789401207416/B9789401207416-s004..... doi:https://doi.org/10.1163/9789401207416_004

Fanon, Frantz (2022 [1952]). Pele negra, máscaras brancas (Alexandre Pomar trad.). Lisboa: Letra Livre

hooks, bell. (2017). Eating the other: Desire and resistance. GÊNERO, 17(2), 189-212.

Kilomba, Grada (2020). Memórias da Plantação. Episódios de racismo quotidiano. Lisboa: Orfeu Negro

Landkammer, Nora, & Schneider, Karin. (2021). Confict learning. Concepts for understanding interactions around contentious heritages. In Marion Hamm & Klaus Schönberger (Eds.), Contentious Cultural Heritages and Arts: A Critical Companion (pp. 215-238): Wieser Verlag.

Mbembe, Achille (2021). Brutalismo. Lisboa: Antígona (tradução Marta Lança)

Pina, Marinho de. (2021). Caros amigos brasileiros. Buala. https://www.buala.org/pt/mukanda/caros-amigos-brasileiros

Trowell, Jane (2020). Close to the skin: Whiteness and coloniality in ‘white’ art educators. In Nicholas Addison & Lesley Burgess (Eds.) Debates in Art and Design Education (pp. 123-140). London: Routledge

 

Artigo originalmente publicado na revista Martins, Cat & Assis, Tiago (Eds.), Derivas #7 - Investigação em Educação Artística (pp. 32-49). i2ADS edições. ISSN 2183-3524

por Marcela Pedersen
Corpo | 24 Outubro 2023 | Exposição Colonial do Porto, Palácio de Cristal, Ping!