A inadmissível violência política de gênero contra Marina Silva (e todas as mulheres brasileiras)
Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, é uma agente política brasileira que pode não ser unânime em seus ideais – afinal de contas, absolutamente ninguém é –, porém é daquelas raríssimas figuras que nunca respondeu a processos criminais nem foi formalmente denunciada por corrupção ou irregularidades no exercício de suas funções públicas. Sua trajetória política é marcada por uma reputação ilibada e sua carreira é sinônimo de integridade.
Sua atuação pública iniciou na Amazônia – nomeadamente no Acre, seu estado natal – profundamente influenciada por sua vivência na floresta e pelo convívio com o líder seringueiro Chico Mendes, um dos mais emblemáticos defensores da região. Filha de uma família pobre de seringueiros, ela trabalhou desde muito cedo no seringal e só alfabetizou-se aos 16 anos. Ainda na juventude, envolveu-se com movimentos sociais e eclesiais de base ligados à Teologia da Libertação, o que fortaleceu seu engajamento político e ambiental.
Na década de 1980, ao lado de Chico Mendes, atuou nas lutas sindicais e ecológicas em defesa dos direitos dos povos da floresta. Juntos, combateram o desmatamento predatório, denunciaram a grilagem de terras e articularam a criação das reservas extrativistas como forma de garantir o uso sustentável da floresta pelos seus habitantes tradicionais.
Depois do assassinato de Chico Mendes, em 1988, Marina tornou-se uma das principais vozes da causa ambiental em todo o Brasil. Foi eleita vereadora de Rio Branco, capital do Acre, no mesmo ano, depois foi deputada estadual do Acre em 1990 e senadora pelo seu estado em 1994, sempre pautando sua atuação pela justiça socioambiental. Seu percurso político desde então firmou sua imagem como uma das mais respeitadas lideranças ambientais do Brasil e do mundo.
Ocupou o cargo de ministra do Meio Ambiente de 2003 a 2008 durante o primeiro e parte do segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, porém deixou o governo em 2008 em razão de divergências internas sobre a política ambiental e de desenvolvimento do governo. Ela enfrentava forte resistência de outros ministérios e setores ligados ao agronegócio, à infraestrutura e ao desenvolvimento econômico, especialmente no que dizia respeito à proteção da Amazônia e à agenda ambiental sustentável.
Na carta de demissão, Marina afirmou que sua saída tinha como objetivo permitir que o presidente Lula “tenha mais liberdade para conduzir o governo de acordo com suas convicções” e que ela seguiria contribuindo com a causa ambiental de outras formas.
Após deixar o governo, ela se filiou ao Partido Verde e concorreu à presidência da República em 2010 com uma forte pauta ambiental e ética na política, sempre mantendo uma postura firme em defesa do meio ambiente e da sustentabilidade, mesmo diante de pressões políticas e econômicas contrárias.
Marina retornou ao cargo de ministra do Meio Ambiente em 1º de janeiro de 2023, no terceiro mandato do presidente Lula. Sua nomeação foi anunciada oficialmente em dezembro de 2022, como parte da composição do novo governo, que buscava fortalecer a agenda ambiental e reposicionar o Brasil como protagonista no combate à crise climática global.
Marina Silva
Sua volta foi simbólica e estratégica, principalmente levando em consideração os anos de retrocessos na área ambiental que representou o governo Bolsonaro, e foi considerada como um compromisso do governo Lula com a proteção da Amazônia, o combate ao desmatamento e o cumprimento das metas ambientais internacionais. Sua escolha também sinalizou um esforço para reconstruir pontes com setores progressistas e ambientalistas, tanto no Brasil quanto no exterior.
Pois bem, na última terça-feira, dia 27 de maio de 2025, a ministra foi alvo de ataques misóginos e incompatíveis com o decoro parlamentar por parte dos senadores Plínio Valério (PSDB-AM) e Marcos Rogério (PL-RO) durante audiência realizada pela Comissão de Infraestrutura do Senado, para a qual foi convocada para prestar esclarecimentos sobre a criação de áreas de conservação na região Norte do Brasil.
Durante a audiência da Comissão de Infraestrutura, os senadores dirigiram-se a Marina Silva com tom agressivo e com total desprezo pela autoridade da ministra e por sua atuação no Executivo. Os senadores deliberadamente utilizaram como escudo a imunidade parlamentar que garante liberdade de expressão no exercício do mandato para ofender e tentar intimidar Marina.
Marina Silva
O presidente da comissão, senador Marcos Rogério, interrompeu repetidamente a fala da ministra e cortou seu microfone. Em meio ao embate, reagiu às críticas afirmando que a ministra deveria “se pôr no seu lugar”. Ela não deixou a declaração passar em branco e rebateu: “Eu tenho educação, sim. O que o senhor gostaria é que eu fosse uma mulher submissa. Eu não sou. Eu vou falar”. Diante da repercussão imediata, Rogério tentou minimizar a fala, alegando que se referia ao papel institucional da ministra como integrante do Executivo, e não a uma questão de gênero.
Já Plínio Valério, ao saudá-la, afirmou que pretendia “separar a mulher da ministra”, alegando que “a mulher merecia respeito, a ministra, não”.
“Ministra Marina, que bom reencontrá-la. E ao olhar para a senhora, eu estou vendo uma ministra. Não estou falando com uma mulher. Porque a mulher merece respeito, ministra não. Por isso que eu quero separar”, declarou o senador, que é líder do PSDB no Senado.
A ministra reagiu prontamente, exigindo um pedido de desculpas. “Como eu fui convidada como ministra, ou ele me pede desculpas ou eu vou me retirar. Se, como ministra, ele não me respeita, vou me retirar”, afirmou Marina. Diante da recusa do parlamentar em se retratar, ela se levantou e deixou a sessão.
Casos de violência política de gênero têm se tornado cada vez mais frequentes nos espaços legislativos brasileiros. Parlamentares e autoridades públicas mulheres são alvos de insultos, silenciamentos, interrupções sistemáticas e atitudes desrespeitosas. A ministra Marina Silva já foi alvo de diversos ataques ao longo de sua trajetória, inclusive recentemente, por Plínio Valério, que no último mês de março declarou publicamente “imagina o que é tolerar a Marina (Silva) por 6 horas e 10 minutos sem enforcá-la.”
O episódio é um exemplo escancarado de machismo e racismo institucional no Brasil e carrega séculos de opressão dirigidos especialmente às mulheres negras, como se houvesse um espaço social predeterminado ao qual elas devessem se submeter. No caso de Marina Silva, mulher negra e de origem humilde, a frase expõe a brutalidade da violência política de gênero e raça, perpetuada inclusive dentro do Senado Federal. O desrespeito durante o exercício da função é símbolo escancarado de um padrão estrutural que exclui e silencia vozes femininas nos espaços de poder.
Dados do Monitor de Violência Política e Eleitoral da Unesp mostram que, entre 2018 e 2022, os casos de violência política contra mulheres cresceram 400%. A sociedade brasileira carrega fortes marcas de machismo e racismo, e quando e onde mulheres, principalmente negras e indígenas, rompem barreiras para ocupar cargos de liderança, tornam-se alvos frequentes de deslegitimação. A tentativa de separar “a mulher” da “ministra” é nitidamente uma forma disfarçada de negar autoridade à figura feminina quando esta exerce poder de decisão e protagonismo político.
Ao recusar-se a aceitar o desrespeito e exigir um pedido de desculpas público, Marina Silva defendeu sua dignidade e representou milhares de mulheres que enfrentam discriminação em seus ambientes de trabalho. Sua postura deixa claro que o respeito não deve ser condicionado ao gênero. “Ninguém vai dizer qual é o meu lugar”, afirmou Marina, ecoando a luta de tantas outras que, como ela, precisam reafirmar diariamente o direito de ocupar espaços de poder com voz ativa e respeitada.
O que está em jogo não é apenas a dignidade pessoal de Marina Silva ou mesmo a de uma ministra de Estado, mas a construção de uma cultura política mais democrática, inclusiva e equitativa. Pesquisa do Movimento Pessoas à Frente mostra que 64,2% das mulheres em cargos no Executivo Federal relatam ter vivenciado sexismo, e 45,7% denunciam desrespeito no trato, incluindo assédio moral. O Brasil ocupa a última posição na América Latina em participação feminina em cargos de liderança e, quando recortado por raça, apenas 8% dessas posições são ocupadas por mulheres negras. Por isso, é urgente fortalecer mecanismos de proteção e representatividade, como a aprovação do Projeto de Lei 1.246/21, que reserva 30% das vagas nos conselhos de empresas públicas para mulheres.
Garantir espaços para lideranças femininas, especialmente negras, é mais do que uma questão de representatividade: é uma medida de justiça histórica e um passo fundamental para um futuro mais democrático. A Comissão de Ética do Senado deve apurar rigorosamente os fatos ocorridos na audiência, avaliar a compatibilidade das condutas dos senadores com os deveres parlamentares e adotar as providências cabíveis. Essa responsabilização é essencial como medida preventiva, para que novas ocorrências de violência não se repitam. Marina merece respeito. Todas as mulheres merecem respeito. Nós não nos calaremos.