EUA e América Latina: Doutrina Monroe 2.0

As intervenções militares e económicas dos EUA ao longo do século XX reforçaram a dependência latino-americana e consolidaram a hegemonia visível e invisível do país na região. Duzentos anos depois da Doutrina Monroe que, subvertida, abriu passo a esta estratégia de dominação, Donald Trump limpou-lhe o pó, demonstrando toda a intenção de reafirmar o poder de Washington no tal “pátio traseiro”. “O velho dominador está a renovar os mecanismos de hegemonia”, advertia há vários meses o Centro de Estudos Internacionais da Universidade Católica do Chile (CEIUC).

Não é uma manobra às cegas. Na últimas semanas, as operações navais norte-americanas no Caribe e no Atlântico Sul multiplicaram-se (nada inédito na estratégia de Trump para a região). Desde setembro, ataques militares a sete pequenas lanchas na Venezuela, supostamente de narcotraficantes (nunca comprovado), mataram pelo menos 32 pessoas. Os actos sem precedentes puseram o Caribe em estado de alerta, com mobilizações militares do regime de Maduro para fazer face a uma eventual invasão terrestre norte-americana, defendida nos EUA por alguns sectores.

A justificação dos actos como parte de uma “guerra contra a droga” em nome da “segurança hemisférica” não convence analistas e académicos, que vêem neste filme uma tentativa óbvia da Casa Branca de derrocar Maduro e de mergulhar nas escuras reservas de petróleo do país. “Os Estados Unidos já não são um parceiro fiável. Se houvesse uma preocupação genuína com o narcotráfico, a política seria outra”, afirma o analista Michael Shifter. 

A Venezuela é agora um grande laboratório da nova-velha política norte-americana na América Latina e os chapiscos do tubo de ensaio em ebulição queimam a região. Com a Colômbia, a tensão cresce de dia para dia. “Não queremos navios de guerra nos nossos mares, nem exércitos estrangeiros a patrulhar as nossas costas, sob o disfarce de cooperação”, disse o presidente Gustavo Petro. Para além da violação do espaço marítimo do seu país pelos EUA, o mandatário também denunciou o assassinato de um pescador colombiano durante um ataque das forças norte-americanas à lancha onde seguia. A embarcação estava avariada e à deriva.

Face às acusações de Petro, Trump logo chamou Bogotá de “negligente” e insensível aos “esforços” gringos de combater o narcotráfico. Ameaçou cortar apoios e taxar a doer os produtos colombianos. O presidente da Colômbia viu revogado o visto para entrar nos EUA. 

Lancha abatida pelo exército dos EUA em águas territoriais da Venezuela (Donald Trump, Truth Social)Lancha abatida pelo exército dos EUA em águas territoriais da Venezuela (Donald Trump, Truth Social)

Navios de guerra norte-americanos vigiam as costas do Caribe Sul (DR)Navios de guerra norte-americanos vigiam as costas do Caribe Sul (DR)

 

De joelhos

Mais do que marines e bases militares, três frentes definem actualmente a estratégia dos EUA na região: dinheiro, informação e medo. Este cocktail doseia cada elemento segundo os objectivos específicos, mas parecem ter um denominador comum: governos a modo, minar o poder crescente da China na América Latina e afastar a possibilidade de uma maior influência russa.

Na frente financeira, o controlo é exercido via crédito condicionado, swaps cambiais e sanções económicas. O fundo de estabilização de 20 mil milhões de dólares que o Tesouro norte-americano acaba de aprovar para a Argentina é um bom exemplo. Em troca, exige-se de forma tácita a Milei o afastamento da China dos sectores estratégicos do país e a vitória inequívoca da sua coligação La Libertad Avanza nas legislativas do próximo domingo, 26 de outubro. Se não ganhar, não há plata, avisou Trump. Sem margem de réplica, o presidente argentino enfiou a coleira e agradeceu as migalhas ao amo. A “ajuda” norte-americana uma vez mais em todo o seu esplendor, como mecanismo de alinhamento e de subserviência pavloviana.

A linha de financiamento de 20 mil milhões de dólares dos EUA à Argentina depende dos resultados do partido de Milei nas eleições de 26 de outubro (DR)A linha de financiamento de 20 mil milhões de dólares dos EUA à Argentina depende dos resultados do partido de Milei nas eleições de 26 de outubro (DR)

Os exemplos de conluio de governos latino-americanos de direita e de braços-de-ferro inconsequentes abundam. No início do ano, por exemplo, o Panamá sofreu pressões sobre o canal, terminando por aceitar o envio de tropas dos EUA para a região, depois de um bate-boca sobre a influência chinesa na região, e do despertar de fantasmas dolorosos.

Já este fim-de-semana, uma Bolívia virada à direita, depois de 20 anos de poder do Movimento ao Socialismo, de Evo Morales, escancarou por fim as portas de La Paz a Washington. Marco Rubio, Secretário de Estado de Trump, exultou pelo “momento histórico”. “Depois de duas décadas de má gestão, a eleição do presidente eleito [Rodrigo] Paz é uma oportunidade de transformação para ambas nações”, escreveu no X. Debaixo do tapete fica a  mão norte-americana e da “sua” Organização de Estados Americanos nos golpes de estado efectivos ou tentativos que desestabilizaram a Bolívia nos últimos anos.

E claro, temos El Salvador. Sob a liderança do conservador Nayib Bukele, o país converteu a prisão de CECOT num “Guantámano centroamericano”, como lhe chamam. Um campo de detenção para os deportados de Trump, a troco de 20 mil dólares anuais por cabeça e de uns quantos milhões mais. Somam-se ainda os favores pessoais. Uma investigação publicada há dias pelo The Washington Post revela que Bukele pôs como condição para receber os deportados, o regresso ao país de nove líderes criminosos salvadorenhos detidos nos EUA. Segundo as fontes do jornal, esses pandilheiros sabiam demasiado e poderiam expor os acordos do governo de Bukele com grupos criminosos, que permitiram ao presidente baixar a criminalidade no seu país.

O apoio de Trump a Bolsonaro durante o processo judicial por tentativa de golpe de Estado contra Lula, criou uma tensão inédita entre os EUA e o Brasil (DR)O apoio de Trump a Bolsonaro durante o processo judicial por tentativa de golpe de Estado contra Lula, criou uma tensão inédita entre os EUA e o Brasil (DR)

Se uns se ajoelham, outros, como a Colômbia, México, Venezuela ou Brasil fazem frente. A tensão entre Trump e Lula foi épica. A meados do ano, o apoio do presidente norte-americano a Bolsonaro durante o julgamento por tentativa de golpe de Estado, abriu uma linha de batalha inédita entre os governos do EUA e do Brasil. A Casa Branca ameaçou com taxas comerciais de 50% sobre alguns produtos brasileiros, e acusou o governo de Lula de ser “uma ameaça inusual e extraordinária” para os EUA. O Brasil respondeu na mesma moeda e manteve-se firme. Agora, já efectivada a condenação histórica de Bolsonaro nos tribunais brasileiros, representantes de alto nível dos dois países dão-se abraços em reuniões bilaterais para acalmar a confusão. Um encontro entre Trump e Lula está em perspectiva.

O Império Simbólico 

Neste jogo perigoso, a CIA voltou a ser um personagem tenebroso em território latino-americano, mas agora às claras. Recentemente, Trump autorizou a agência de inteligência a operar contra o governo venezuelano. O anúncio surpreendeu por ser público, não pela novidade. “A CIA nunca saiu da América Latina; apenas mudou de métodos. O que há de novo é a falta de pudor”, baliza o investigador Carlos Pérez Ricart. 

Apesar de alguns investigadores defenderem que a CIA é limitada pelas crises institucionais, pelos elos regionais inconsistentes e por forças locais que não se comportam como meros tabuleiros de xadrez, todos sabem que a agência de inteligência norte-americana continua a ter poder e é o instrumento-chave dos EUA nas outras duas frentes de actuação na região: a informação e o medo.

Nos últimos meses, membros da administração Trump referiram-se de novo à América Latina como o pátrio traseiro dos EUANos últimos meses, membros da administração Trump referiram-se de novo à América Latina como o pátrio traseiro dos EUAJá não é a mesma agência da Operação Condor, actualizou-se e é muito mais do que os clássicos agentes secretos e reuniões furtivas. O novo terreno de batalha são as redes sociais, campanhas de desinformação e influenciadores. “A guerra ideológica é agora tão importante como a militar e as plataformas digitais e os meios de comunicação tornaram-se instrumentos centrais de dominação”, lê-se em “Avassalador – a política intervencionista dos Estados Unidos”, da professora da Universidade Nacional Autónoma do México, Nayar López Castellanos. 

Num tom similar, a análise “América Latina 2025: começo da reconfiguração política”, do CEIUC, sublinha que o momento actual não é meramente uma escalada da ingerência dos EUA na região, mas uma reconfiguração sistémica onde a dependência clássica continua, mas com novos contornos e nova linguagem. A América Latina torna-se teatro de “dominação adaptativa”, resume.

A estratégia parece estar a surtir efeito. Esta sombra densa que os EUA projectam a sul do rio Bravo, alimenta-se paradoxalmente da disposição de alguns em recebê-la de braços abertos. Durante décadas, a América Latina orgulhou-se de resistir à tutela externa. Hoje, sectores da direita e da extrema-direita pedem-na em nome da ordem, da segurança ou da “restauração dos valores”, como os casos já descritos de El Salvador, Argentina e Bolívia.

Há até quem vá mais longe. No México, por exemplo, a polémica senadora Lilly Téllez, ex-esquerda-agora-direita, defendeu publicamente a intervenção armada dos Estados Unidos em território nacional para enfrentar os cartéis. Foi secundada por milhares de vozes políticas e cidadãs. Reagiu-lhes o presidente da Mesa Directiva do Senado mexicano, o trabalhista Gerardo Fernández Noroña: “É irresponsável pedir a intervenção dos Estados Unidos.” Nenhum mexicano em sã consciência implora a invasão de uma potência estrangeira, insiste a Presidente Claudia Sheinbaum, que afirma uma e outra vez que a “soberania não se negoceia”.

O governo venezuelano acusa os EUA de recorrer ao tema do narcotráfico para derrubar o governo de Maduro (DR)O governo venezuelano acusa os EUA de recorrer ao tema do narcotráfico para derrubar o governo de Maduro (DR)

Na Venezuela, a contradição atingiu um nível ainda mais retorcido, com a oposicionista María Corina Machado a solicitar a Trump que “ajudasse a libertar o país”. Dias depois, recebeu o Prémio Nobel da Paz. E dedicou-o a Trump. O mundo às avessas, tal como é.

Esta esquizofrenia, asseguram analistas, ajuda a compreender como os EUA operam e intervêm na região através de fragmentos de poder, de cooptações, de dependências parciais, e do tal domínio sobre a narrativa como elemento de dominação.  A actual reconfiguração política, alegam, assenta obrigatoriamente na institucionalização desse poder simbólico. Nesta dinâmica, a política latino-americana começa a incorporar agendas externas como “internas”, os processos eleitorais alinham-se às directrizes do país a norte e a própria soberania nacional torna-se mais moldável. 

Trump parece ter compreendido isso muito bem e usa-o em proveito próprio. A encruzilhada está aí, entre a memória e o futuro.  O pátio traseiro voltou a ser palco de guerras alheias, agora travadas com contratos, sanções, algoritmos e uma verborreia interminável com consequências imprevisíveis.

por Pedro Cardoso
Jogos Sem Fronteiras | 23 Outubro 2025 | América Latina, direita, EUA, geopolítica, interferências, poder, Trump