“O meu lado infantil está radiante” - Arménio Vieira
Prémio Camões 2009. Cabo-verdiano. Conde. Arménio Vieira no seu laboratório de criação: Pracinha do Liceu, Cidade da Praia. O que se segue não é um discurso milimetricamente estruturado e óbvio. É, antes, um desenrolar de frases, pensamentos e memórias às vezes desconexos e non sense na aparência, que evidenciam, nesse jeito irónico e mordaz, a dimensão humana e artística do poeta e ficcionista.
Sei que está farto de entrevistas e de toda a mediatização de Arménio Vieira, depois do anúncio do Camões 2009…
Isto é incómodo, não tenho paz. Esta é a décima segunda ou décima-terceira entrevista. E é a melhor, porque você também escreve, não tira muitas fotografias e não aparece aqui com câmaras de televisão. Às vezes são duas ou três no mesmo dia. Agora até a malta do xadrez já me pediu uma entrevista, porque fui campeão de xadrez e sou apaixonado por este jogo. Querem também falar comigo.
E como é que o Conde [nome pelo qual é conhecido entre os seus] encara tudo isto?
O meu lado infantil está radiante. Porque, sabe, somos todos crianças. Se calhar por isso é que jogo xadrez, se calhar é por causa disso que eu escrevo… Poesia não! Poesia é coisa séria. Se calhar é por isso que vejo jogos de futebol. Sei lá. Vou receber 100 mil euros. Dinheiro é para adultos também. Tenho os meus problemas a resolver.
Por exemplo?
De dois em dois anos tenho as paredes para pintar, o que não é nada barato.
Aqui na Praia há quem defenda que o prémio deveria ser-lhe entregue em Cabo Verde. É isso que quer?
O prémio sempre foi entregue em Lisboa, pelo que poderia ser diferente, agora. Mas gostava que fosse aqui, não só por uma questão simbólica. É que em Portugal vão-me continuar a maçar como figura pública. E lá há mais canais de televisão, jornais e isso tudo.
Constou-me que a discussão aqui na Pracinha do Liceu, depois de saber que era o vencedor deste ano, centrou-se em saber se tinha que vestir fato nessa cerimónia oficial.
Sinto-me ridículo quando ponho fato e gravata. As pessoas gostam mais, mas eu não. Uma vez participei num encontro na Casa Fernando Pessoa, em Portugal. Vestíamos todos jeans, menos um poeta português que só andava de fato. Mas os poetas não fazem isso. Depois fomos comer num restaurante fino. O que comi, não conhecia. Mas sabia usar os talheres! (risos)
Porque é que tentam engravatar os poetas?
Porque são recebidos pelas organizações, academias, e até chefes de Estado.
E é preciso engravatá-los?
Acho que não, mas as pessoas não aceitam que seja diferente! Vou-lhe contar uma: um dia fui a Lisboa a um encontro de jornalistas. Quem dirigiu o encontro era um catedrático de economia mas que tinha sensibilidade poética. Ele gostou de saber que Cabo Verde tinha um poeta que ele achava bom. E disse que o Arménio podia até nem usar sapatos, mas o resto das pessoas tinham que se vestir de forma normal. E no final, ele até fez o discurso de encerramento no vão das escadas. “Palavras, palavras e palavras”, citando Shakespeare.
Os seus poetas e autores de referência usavam fato?
Às vezes, se calhar. Outros nem tiveram hipótese. São muitos. Todos os autores clássicos gregos, poesia trovadoresca, Dante. Tolstoi é maçudo. Gosto de Lord Byron. Dos brasileiros o Euclides da Cunha, Drummond de Andrade, Machado de Assis. Tem os latino-americanos do realismo mágico: Garcia Marquez, Cortázar. É impossível citar todos.
Cabo-verdianos?
Nenhum… Nenhum.
A literatura cabo-verdiana parece estar muito presa, por vezes, aos autores da Claridade1.
É claro que foi um movimento muito importante na literatura deste país. Mas eu não sou claridoso. Comecei com poesia surrealista, a escrever outras coisas. Mas não sou o único. Filinto Elíseo não é claridoso; Jorge Carlos Fonseca não é claridoso; Mário Lúcio Sousa não é claridoso. Já avançámos.
E que caminho foi este que culminou no mais recente livro, MITOgrafias?
Foi o meu caminho. E sem MITOgrafias não teria ganho o Prémio Camões, provavelmente. Mas estou agora a trabalhar no novo livro. São mais ou menos 120 poemas. Muitos deles escrevi-os aqui sentado na Pracinha, com o telemóvel. Não trago computador portátil porque é muito pesado, e dá muito nas vistas aqui na mesa. Não acha? Assim faz de conta que estou a mandar uma mensagem e ninguém me chateia.
E já comprou a bicicleta2?
Bicicleta e mota ela já tinha. Na altura ela andava pelos dezoito anos, escangalhava aquilo a levar os amigos a passear.
Ela é quem?
Ela ia sendo uma tragédia. As irmãs queriam-me matar, porque embora fosse maior de idade, a moça era virgem, nunca tinha arranjado namorado. Sair de casa era proibido, a não ser que um homem pedisse a sua mão. O meu sobrinho é que me meteu nisso. A moça passou na rua e eu disse: “Estou interessado”. Ao que ele me respondeu: “Cuidado que ela não é de engate”. Eu engato por telemóvel e arranjei o número dela. E comecei a mandar mensagens. Na altura ela estava ligeiramente apaixonada por outro indivíduo. Nem olhava para mim, porque tinha 18 anos e eu podia ser avô dela. Depois de quinze dias de conversa por telemóvel convidei-a para vir a minha casa. Ela demorou três horas a chegar na minha porta. Eu estava lá, mas ela não me via, porque nunca imaginou que fosse eu a voz do telemóvel. Foi-se embora. Continuei a insistir e ela não me respondia. Até que um dia resolvi fazer o que os badius [naturais da ilha de Santiago] faziam antigamente: raptar a moça e levá-la para casa. E aí começou a desgraça.
A tal tragédia.
Foi quase! No dia depois de a levar para minha casa havia anúncios na rádio e na televisão a dizer que havia uma moça desaparecida. Com fotografia e tudo! Por volta das quatro da tarde levei-a a almoçar no Poeta3. Uma empregada reconheceu-a e ligou para a [Polícia] Judiciária que foi até lá. Depois disso ela teve que explicar que era adulta, que tinha consentido. Mas de repente já tinha três mulheres com pedras bem grandes atrás de mim! Começaram a atirá-las e eu tive que fazer como o Tarzan, no filme, e retirar-me. A radiografia disse que eu não tinha nada partido, mas ainda apanhei quatro pontos. Depois tive ainda que passar uma meia hora numa esquadra de polícia que metia medo, com uns camaradas assim muito chatos, a quem paguei o jantar.
Quando aconteceu isso?
Há um ano e dois meses, por aí. Olha, foi em Maio! Raptei-a no dia da final da Liga dos Campeões Europeus, em que o Cristiano Ronaldo ganhou4. Desta vez ele perdeu. Eu desse jogo vi só o prolongamento. Agora, essa tentativa de homicídio, quando fui atacado, aconteceu no dia seguinte. Pareceu-me estar a viver a história do Gabriel Garcia Marques, a Crónica de uma Morte Anunciada. Só que, em vez de três irmãos eram três irmãs, e em vez de facas eram pedras. Eu e a moça até hoje continuamos juntos.
“Conde” porquê?
Quando era jovem era conhecido por Marlon Brando. Mas agora sou o Conde. Já fui [o Conde] de Montecristo, o Drácula, vampiro. Há escritores que não têm biografia. Camões tem, Pessoa não; Neruda e Hemingway têm, Faulkner não tem. Cardoso Pires era namorador, outros são homossexuais e libertinos, outros bêbados. Há autores que não dão um bom filme.
Arménio Vieira dá um bom filme?
Acho que daria sim. Eu fui um terror. Até já tive duas tentativas de suicídio, encenações cómicas para fazer mulheres voltarem para mim.
E como se tentou suicidar, supostamente?
Poeticamente. Bebi uma garrafa de uisque pelo gargalo de uma assentada e caí para o lado. Não era muito novo, teria 30 anos. Era apenas um problema de ciúmes. Eu não queria mais nada com esta mulher, mas havia um outro homem interessado nela. Um dia disseram-me que ele estava a namorá-la descaradamente numa praia. Então apanhei um táxi e fui lá para brigar com ele. Ele era um francês e até me recebeu muito bem. Disse-me: “Tu não me queres matar. Tu és um poeta, e poeta não mata. Vamos conversar. Ela já me contou que tu não a queres. Eu sou candidato, ela é que escolhe”. E ela não escolheu nenhum.
E aí entrou a garrafa de uísque.
Sim, depois disso ela voltou para mim. Mas passado o ciúme deixei de gostar dela e deixei-a.
Tem um “passado angolano” que poucos conhecem.
Durante a guerra colonial fui mobilizado para Angola. Estive lá entre 1962 e 1964. Andei em Luanda, no Zaire, no Bié, em Noqui. Em Santo António do Zaire [actual Soyo] aproveitávamos para pescar, já que por ali havia pouca guerra e nós, cabo-verdianos, não estamos habituados a pescar em rios pois não os temos.
Que imagens guarda desse tempo?
A guerra é um inferno, é terrível. Principalmente uma guerra em que uma pessoa é um protagonista forçado. Era como mobilizar um homem da resistência francesa para lutar no exército nazi. Mas em termos de paisagens, Angola é fabulosa. Gostava que Cabo Verde fosse igual. Aqui é só pedra, quase. Mas também me relacionei com angolanos, nessa altura. Quando frequentava a Casa dos Estudantes do Império conheci o Rui Mingas, por exemplo. Lembro-me dele porque ele era cantor e atleta do Benfica, e eu sou benfiquista.
E tem uma história com Agostinho Neto.
Estivemos presos na mesma altura, na Cadeia Civil da Praia. Eu fui detido, o Neto apareceu um ou dois meses depois, quando foi mandado para Cabo Verde. As nossas celas eram juntas, e tinham uns espaços por onde dava para comunicar. Usávamos uma vara para trocarmos bilhetes. Metia a cana, ele apanhava e depois respondia. Eram mensagens curtas, mais para animar. Ele dizia-nos que íamos ser julgados, para não termos medo porque não íamos ser fuzilados. Durante um mês ou dois mantivemos esta correspondência. Mais tarde ele foi libertado e nós ficámos. Não cheguei a conviver com ele aqui na Praia, mas sei que fazia muita paródia aqui na Praia e que fez vários amigos nos botecos da cidade. Na altura ele não era só político, era um homem divertido. Mas não dançava muito bem. Aristides Pereira5 dançava melhor que ele. Voltei a ver Agostinho Neto quando fui a Angola.
Já depois da independência?
Sim, por volta de 1977, pouco tempo depois do que aconteceu com o Nito Alves. Morreu lá um amigo meu, que pertencia a esse grupo. Eu era uma espécie de padrinho dele. Apanhei-o na rua e fiz dele um militante político. Chamava-se Ulisses, era conhecido por “Fogo”, porque era natural da ilha com o mesmo nome. Ele fez parte da leva de cabo-verdianos que foram deportados para o Campo de São Nicolau, em Angola. Lá, tornou-se muito amigo do [José] Van Dúnem. Depois do 25 de Abril o “Fogo” ainda veio a Cabo Verde, mas depois voltou a Luanda. Lá, assassinaram-no.
Porque é que as autoridades coloniais o detiveram a si?
Éramos acusados de tentar separar uma fracção do território português. Era crime de lesa pátria, dava direito a 24 anos de cadeia, mais do que se tivessemos cometido um homicídio voluntário. Mas era, sobretudo, delito de opinião. Na altura eu tinha 21 anos, era um miúdo. Mais tarde fui julgado e absolvido. Depois tive problemas com a tropa, porque quando me chamaram eu estava preso. Quando me libertaram esqueci-me desse assunto e andei dois anos sem me apresentar à inspecção. Claro que fui intimado a comparecer, senão ia preso. Fui para Lisboa, de onde tentei fugir para a França, mas na altura não tinha os sete contos necessários para fazer a viagem.
E acabou por ir para Angola.
Sim. Mas com o Neto tem outro episódio. Houve uma altura, ainda durante o período colonial, em que dirigi um programa na rádio oficial que estava, claro, visado pela censura. Chamava-se “Tempo de Poesia”. Então, uma vez, fiz uma coisa deliberada: Comecei com um poema de Fernando Pessoa, passei para um texto poético de Eça de Queiroz, depois para Pablo Neruda, mas um poema de amor, que mesmo assim ainda viu um verso ser cortado. Depois é que foram elas: pus Agostinho Neto, Viriato da Cruz e outros poetas de Angola. Foi o suficiente para acabarem de vez com o programa.
Era a sua forma de resistência?
Sim, mas só mais tarde vim a compreender que tínhamos que recorrer à força das armas.
Lutou na Guiné-Bissau?
Não, fiquei na retaguarda. Não fui por causa de uma mulher por quem estava loucamente apaixonado e que não consegui deixar para trás. Desisti mesmo no último instante.
PERFIL
“Ainda não sou o Papa”, diz Arménio Vieira a quem o interpela na Pracinha da Praia. O poeta, ficcionista e jornalista nasceu na cidade da Praia, na Ilha de Santiago, Cabo Verde, em 24 de Janeiro de 1941.
Colaborou em publicações como o “Boletim de Cabo Verde”, a revista “Vértice”, de Coimbra, “Raízes”, “Ponto & Vírgula”, “Fragmentos” e “Sopinha de Alfabeto”. Arménio Vieira foi redactor no jornal “Voz di Povo”.
Em 1981 publicou a compilação Poemas (reedição em 1998), seguindo-se, em 1990, a ficção O Eleito do Sol. O romance No Inferno (1999) e o livro de poesia MITOgrafias (2006) completam a sua bibliografia, curta, mas original.
É o primeiro cabo-verdiano a ganhar o Prémio Camões, e o quarto africano, depois de depois de José Craveirinha (1991), Pepetela (1997) e Luandino Vieira (2006), que o recusou.
originalmente publicado no Novo Jornal, Angola (19/6/2009 logo após a atribuição do prémio camões)
- 1. movimento literário surgido em meados dos anos 30, que defendia a emancipação cultural, política e social da então colónica cabo-verdiana. Manuel Lopes, Baltasar Lopes e Jorge Barbosa foram as figuras de proa. São conhecidos por “claridosos”
- 2. quando questionado, logo após o anúncio do prémio, sobre o destino a dar aos 100 mil euros, Arménio Vieira disse que iria comprar uma bicicleta à sua namorada
- 3. restaurante bastante conhecido na Cidade da Praia.
- 4. final entre Manchester e Chelsea, a 20 de Maio de 2008.
- 5. primeiro Presidente da República de Cabo Verde.