E o muro o vento levou

Na linha da fronteira, a terra tem a mesma cor, os rios correm na mesma direção. Ainda que não pareça. Entre o México e os Estados Unidos, a frontera-border é um livro surpreendente de histórias. Mais que os mortos do Rio Bravo, as crianças migrantes enjauladas ou a cidade-pecado de Tijuana. Muito mais. Um anedotário mexicano que, com galhofa e bazófia, resiste ao avançar da sombra.

1. 

Duro, forte, resistente. Huge, enormous, marvelous, na verborreia de Trump. É o muro, o the wall que o presidente norte-americano prometeu construir ao longo da fronteira com o México. Um compromisso a meio-gás e vetado no Congresso, com que o Mr. President quer afastar os bad hombres que vêm do sul com os pés em ferida e com a roupa molhada pelo Rio Bravo. Desnutridos, pobres e assustados. Perigosos, portanto.

Mas o México é terra onde os deuses são fortes, diz-se por aqui. E no final do mês passado, este impenetrável, intransponível e invencível bloco de cimento e metal, com alicerces nunca antes vistos para impedir os túneis entre os dois países, foi derrotado por uma simples rabanada de vento. Um airecito que constipou o muro. Ou um dardo de betão no ego de Trump. Simbólico até à medula.

A derrocada destas vigas estremeceu a linha que separa a sufocante e morena cidade mexicana de Mexicali, de Calexico, na loura e perfumada Califórnia. As autoridades norte-americanas culparam a qualidade do cimento, que não era grande coisa e demorava a secar-se. O vídeo do desastre passava em repeat. A galhofa mexicana foi geral. Cada gargalhada era uma pequena vitória. Uma alegre e ilusória vingança.

2.

A liberdade pode ser uma bola de voleibol. Na linha de fronteira entre os Estados Unidos e o México, entre os estados de Sonora e Arizona, há dois pedacinhos de terra. Dois vilarejos com o mesmo nome – Naco –com pronúncia gringa ondulada do sul e sotaque mexicano duro do norte. 

A história é antiga. Em 1960, os Estados Unidos marcaram a fronteira da região com arame farpado. Era frágil, a divisão. Irritante e desnecessária para Naco. Mas com potencial. Num desafio claro à separação forçada, em 1979 os habitantes dos dois lados da fronteira converteram a cerca na rede improvisada de um campo de voleibol. Era o início de uma festa-ritual. Todos os anos em abril, Naco mexicano e Naco norte-americano confrontavam-se num jogo binacional. No centro da festa, uma bola sem passaporte que ia e vinha dos dois países em voo livre.

O vento derrubou parte do muro entre Mexicali e Califórnia (Saga)O vento derrubou parte do muro entre Mexicali e Califórnia (Saga)

O arame farpado que reforça o muro (AP, Arquivo Televisa)O arame farpado que reforça o muro (AP, Arquivo Televisa)

No dia da celebração, os organizadores cobriam as puas metálicas com borracha, para não furar a bola de voleibol. A competição consistia numa série de cinco jogos. A equipa que ganhava três partidas ganhava o torneio. Quem perdia organizava uma festa para as duas comunidades – uma pachanga, se mexicana; uma party, se gringa. Quando Naco de Arizona perdia, abria um buraco na cerca metálica para os vizinhos mexicanos entrarem à socapa nos Estados Unidos e assim reclamar o prémio com cerveja e bailarico.

Os jogos continuaram sem problemas até 1994, quando Bill Clinton, o grande impulsionador do muro que agora Trump reforça com demagogia e alguns martelos, decidiu substituir a pequena cerca metálica de Naco por vigas metálicas altas e resistentes. O cerco apertava-se. A partir de finais dos 90, os voleibolistas de Naco tiveram de fintar o avanço da barreira, movendo o campo de jogo para pontos da fronteira remotos e ainda acessíveis.

Todos sabiam que era questão de tempo. Em 2007, mexicanos e norte-americanos lançaram pela última vez a bola que os uniu durante quase 30 anos. Depois desse abril, os muros rodearam definitivamente a região. Cortaram o cordão umbilical. Naco deixou de se poder olhar nos olhos.

3. 

Tijuana há muito que se habitou a muros. Rodeiam-na, metem-se areal e mar-adentro. Como outros muros de outras terras, são tela onde rebeldes, pintores e ativistas pintam o amor e a humanidade. 

Por ordem de Washington, no final de 2018, os muros de cimento ou de placas metálicas que já são parte da paisagem de Tijuana começaram a ser blindados. Havia caravanas de migrantes centro-americanos a caminho. Trump levantava o fantasma de uma invasão de pobres de pés inchados. A muralha foi reforçada com uma cabeleira densa de arame farpado. 

Foi então que o improvável aconteceu. Pouco a pouco, pela calada da noite, os remoinhos de puas de Trump começaram a desaparecer, para gozo dos mexicanos que sentiam vencer o império. Algumas semanas depois, a polícia descortinou o esquema: sem pudor, uma banda de ladrões de Tijuana estava a desmontar o muro nas barbas da patrulha fronteiriça norte-americanas. Uma ronda pelas casas contíguas ao muro exibia a evidência. Algumas moradias tinham até 30 metros de vedação novinha em folha “made in muro USA”. Quinze ladrões foram apanhados em flagrante delito, encavalitados na vedação com alicate na mão.

Mas história não acabaria aí. A adensá-la, surgiu a dada altura um personagem misterioso ao estilo “justiceiro”. Há quem jure a pés juntos que um “indigente”, um sem-teto com aspeto sujo, percorre de noite as ruas das praias de Tijuana com pedaços do arame farpado gringo. Vende-os ao preço da chuva. Um ano depois, nunca ninguém o identificou.

por Pedro Cardoso
Jogos Sem Fronteiras | 7 Fevereiro 2020 | EUA, México, migração, muro, Tijuana, Trump