Na cidade somos quase predadores
Longas barbas brancas e cabelo também ele branco e solto. Cara queimada pelo sol e um amor enorme pelo deserto do Namibe, região onde viveu a infância e se encantou pela areia das dunas que lhe pareciam então montanhas de ouro a brilhar ao longe. Samuel Aço é o principal impulsionador do Centro de Estudos do Deserto, associação que, no interior da província do Namibe, sul de Angola, quer descobrir os segredos de uma das mais inóspitas regiões do país.
As suas pesquisas no deserto do Namibe já são antigas. Quando começou o interesse académico por esta região?
Desde 1996, tenho vindo a desenvolver uma pesquisa na região que parte do Tômbwa, estende-se até à cidade do Namibe e à fronteira sul, ao longo do rio Cunene, e que passa pela Namíbia. É um estudo sobre os comerciantes informais do deserto. Uns são mesmo comerciantes tradicionais, deslocam-se a pé, sozinhos ou acompanhados por um burro que transporta a carga. Outros já utilizam veículos.
É uma actividade que se estende por todo o deserto, ou circunscreve-se a determinadas áreas?
Podemos encarar dois aspectos: o verdadeiro deserto, que para nós é totalmente inacessível, mas que para aquelas populações é “menos inacessível”, e a região de estepe, que eles percorrem a pé, perfeitamente à vontade, percursos que vão até 300 km. Transportam cobertores, tabaco, aguardente, entre outros bens. Ali não se usa dinheiro, é troca por troca. As populações pagam, geralmente, com cabritos, ovelhas (às vezes) e, muito raramente, cabeças de gado.
Quanto vale, por exemplo, um maço de tabaco?
Eles vendem mais em grandes quantidades. Mas, por um exemplo, um cabrito pode ser trocado por duas mantas e uma garrafa de aguardente ou então por três garrafas de aguardente. E esta aguardente que as populações recebem é de fraca qualidade, porque para elas o que interessa é a quantidade.
Os “novos” comerciantes, que utilizam os camiões de carga, fazem uso do mesmo sistema de trocas?
Sim, embora esses transportem já outros bens, como fuba, massas e algum arroz. Mas os principais produtos são o milho e a aguardente. Levam também algum vinho e cerveja. A maior parte destes comerciantes é de fora da região, têm já alguma capacidade de investimento. Descobriram este mercado, viram que é inexplorado e interessante, e lá estão.
As rotas utilizadas são antigas?
Sim, são caminhos antigos. Quando comecei o estudo, em 1996, fiz o percurso entre Onkokua e o Iona. O meu carro era o primeiro a passar ali em 24 anos. Nessa altura o comércio que se fazia naquela zona era só a pé. Mas como ali praticamente não chove, não nascem árvores novas e não cresce capim, os caminhos ainda estavam visíveis, mesmo 24 anos depois.
Este tipo de comércio informal tem, para os povos da região, algum significado para além do económico?
Quando comecei a fazer este trabalho, reparei que os comerciantes que andavam a pé (na altura ainda não havia camiões) levavam uma mercadoria exígua, o que dava a entender que aquela actividade existia por algo mais que o mero interesse comercial. A pesquisa visava, por isso, conhecer os motivos que levavam as pessoas a fazer este itinerário a troco de tão pouco – se há outros valores envolvidos, de carácter simbólico, de comunicação, de encontros de famílias. Estamos ainda a trabalhar nas conclusões.
A que grupos étnico-linguísticos pertencem os povos da região?
Em grande plano, temos o grupo Helelo, sobretudo os sub-grupos Himba e Tjimba. Existem também os Mucubais, que já foram estudados por Ruy Duarte de Carvalho. Mas o grosso da população desta região mais próxima da costa é pré-bantu – são os Vatua, que se subdividem em Kwebes, Kwis e Kuroca. Estas designações são há muito conhecidas, mas os povos a que se referem não estão devidamente estudados. Não sabemos ainda, sequer, as diferenças entre uns e outros.
“Queremos divulgar a região”
O Centro de Estudos do Deserto (CE.DO) é um projecto pioneiro no país. Pretendeu, com a sua criação, virar as atenções dos académicos para a região sul de Angola?
O que aconteceu, na verdade, é que, a dada altura da minha pesquisa, verifiquei que era importante haver alguma entidade que apoiasse institucionalmente as pessoas que, como eu, quisessem estudar a região. Daí surgiu a ideia de criar esta associação que se chama Centro de Estudos do Deserto. Formalizámos a instituição há cerca de um ano, com o intuito de dar realmente esse apoio aos investigadores. Numa primeira fase daremos, essencialmente, alojamento. Estamos a construir um pavilhão com dois espaços para estudantes, que pode albergar até 20 pessoas.
Para além do apoio aos académicos, quais são os eixos fundamentais do projecto?
Queremos divulgar a região e dar voz às populações e ajudá-las. Para isso, estamos a construir um centro de formação profissional que irá proporcionar uma série de cursos ainda a definir, mediante as necessidades locais. A alfabetização será um deles, com toda a certeza, uma vez que há um défice de escolas naquela zona. De acordo com o contacto que tenho tido com eles, sei de certeza que o artesanato é uma das áreas em que as pessoas vão gostar de trabalhar. As senhoras, por exemplo, gostam também muito de costura. Com o aumento de movimento de viaturas na região, começa a ser igualmente importante um curso de mecânica para promover a abertura de oficinas. Para além da formação, queremos dar um apoio à melhoria da alimentação e da saúde.
Quais são as áreas de estudo a que o CE.DO se vai dedicar?
Estamos abertos a qualquer investigador, nacional ou estrangeiro, de qualquer área de saber (sociologia, geologia, ecologia, antropologia, etc). Neste momento estamos, por exemplo, a preparar um protocolo com o pólo universitário do Namibe, que tem curso de engenharia ambiental, para criarmos espaço para os estudantes trabalharem no centro. Temos já um projecto em carteira sobre água. Parecendo que não, o deserto tem muita água, mas é preciso saber extraí-la e geri-la. A água tanto pode ser um bem, depois de extraída, como um perigo muito grande, na medida em que pode levar à concentração de gado e à subsequente destruição das pastagens. Há também o perigo do gado comer as sementes ou plantas que ainda não têm sementes e tornar os terrenos completamente estéreis. Isso já se passa em muitas áreas do deserto. Este estudo está a ser conduzido pelo Laboratório Nacional de Engenharia. Estamos também em contactos com o Laboratório de Engenharia de Portugal e uma universidade brasileira, no âmbito deste trabalho.
Que tipo de apoios têm, actualmente?
São poucos, ainda. A associação conta com o apoio do Governo Provincial do Namibe, que está a pagar metade da construção do centro de formação, e ofereceu uma casa para a sede do CE.DO em Njambasana, a única aldeia do deserto, cerca de 27 km a nordeste do Tômbwa. A outra metade do centro de formação vai ser paga pela Toyota de Angola.
“A transmissão da cultura tradicional está em risco”
O que é que o deserto nos pode ensinar?
As populações desta área dispõem de meios muito rudimentares, mas têm um conhecimento muito sofisticado de como criar o gado, o que lhes permite ter animais em áreas que, para nós, não servem para nada. Ao mesmo tempo, sabem também muito bem como salvaguardar o gado da maior parte das doenças. Toda a vida social daquelas comunidades está estruturada à volta dos rebanhos. É importante conhecer como essas comunidades conseguem sobreviver, organizar-se e funcionar em condições adversas e como conseguem gerir a pastagem e a água no meio de um deserto.
Esse é um tema muito actual no chamado “mundo moderno”, que não está a saber lidar com o problema da água.
Temos muito a aprender com essas populações. Embora vivam num meio inóspito e onde praticamente não chove, apresentam uma saúde razoável e não há casos notórios de desnutrição. Nesta região, as crianças, sensíveis por excelência, são muito robustas.
Ainda não terminou o seu estudo, mas consegue adiantar quais são os “segredos” dos povos do deserto para conseguirem encontrar este equilíbrio?
Para mim, o segredo principal é essas comunidades terem sabido transmitir e preservar a memória e sabedoria ancestrais ao longo das gerações. No entanto, a entrada de elementos estranhos poderá alterar esta corrente.
As comunidades tradicionais estão em risco?
O que está em risco é a transmissão da cultura. Há cada vez menos condições para a preservação dos conhecimentos ancestrais. É importante, dentro da antropologia do desenvolvimento, indicar caminhos sobre como beneficiar dos avanços tecnológicos sem se perder a cultura própria e a identidade social. Se analisarmos a questão à luz do conceito “angolanidade”, a problemática adensa-se. Se as pessoas não souberem o que são na base, mais confusas vão ficar quando confrontadas com a macroestrutura “ser angolano”. Ser angolano será uma “coisa qualquer”, e não é isso que se pretende.
O que é “angolanidade”, tendo em conta a grande diversidade cultural deste país? Um conceito que nos foi imposto por fronteiras impostas?
Angolanidade é vivermos valores comuns e colectivos dentro de uma diversidade. Uma boa parte dos valores das sociedades e grupos histórico-culturais que habitam o país é comum. Ainda antes da chegada dos portugueses, a partir do século XIII, houve grandes movimentações militares e políticas que ocorreram no que hoje é o território angolano. Isso criou uma amálgama muito interessante. As próprias línguas angolanas são semelhantes, não na perspectiva do falante, mas do estudioso. Toda esta interacção originou uma partilha de valores entre os vários povos.
Uma pergunta recorrente: Como conjugar modernidade com tradição?
Dando espaço às culturas para reagirem à modernidade dentro das suas matrizes. As culturas são dinâmicas e absorvem da modernidade aquilo que é útil, integrando-a de acordo com os seus valores.
Porque é que, nesta luta entre modernidade e tradição, é quase sempre a primeira que leva a melhor?
O homem sempre gostou da novidade, sempre foi curioso. E a modernidade apresenta-nos sempre coisas muito bonitas, aliciantes, coloridas, diversificadas.
Mas ao mesmo tempo muito impessoais, descaracterizadas.
Por isso é que não se coaduna com aquilo que são os valores colectivos, uma vez que faz as pessoas perderem, em muitos casos, a sua personalidade social.
Isso remete para o confronto entre o meio urbano e o meio rural, e as perspectivas distorcidas que têm um do outro.
Hoje em dia há um grande intercâmbio entre ambiente rural e a cidade. Basta ver que um grande número da população angolana está concentrado nas periferias das principais cidades. O problema é que na cidade a transmissão da memória colectiva é posta em risco, porque lá o meio de transmissão por excelência é a escrita. As famílias começam, como em qualquer grande sociedade, a ter um papel cada vez menos relevante na educação das crianças.
O individual ganha preponderância sobre o colectivo. É esta a grande diferença entre cidade e campo?
Na cidade, a educação e a socialização passam mais pelos espaços fora de casa e pelos media. Esse é um problema entre o rural e o urbano. Uma outra diferença tremenda entre esses dois meios é a noção do espaço. No campo, um indivíduo domina totalmente o espaço onde vive e sabe utilizá-lo harmoniosamente. Já na cidade somos quase predadores. Uma pessoa pode destruir a propriedade social-urbana, porque aquele espaço não lhe diz nada. Vemos o que acontece com escolas e edifícios públicos que rapidamente se degradam e são vandalizados. Isso acontece porque as pessoas não se reconhecem neles, alguém que vem do meio rural não sabe fazer a leitura desses espaços.
Esse fenómeno está a ser encarado de frente pelas instituições competentes?
Não com o rigor que o problema exige. É preciso fazer um trabalho sério, com muita profundidade e qualidade, para se encontrarem respostas correctas. Se não percebemos o que se passa e não actuarmos a tempo, corremos o risco de ter problemas sociais graves.
Samuel Aço: Antropólogo do deserto
Samuel Aço é natural de Caluquembe, província da Huíla, onde nasceu a 26 de Junho de 1945. Viveu a sua infância no Namibe até aos 12 anos, altura em que se mudou para Luanda. Em Lisboa, estudou Psicologia, mas logo mudou de curso, iniciando os estudos em Antropologia. Com o curso ainda incompleto, viajou compulsivamente para Angola, depois da independência do seu país natal, em 11 de Novembro de 1975. Regressaria mais tarde a Portugal para terminar a licenciatura, o que aconteceu em 1983.
Actualmente reside em Luanda, onde é docente universitário. Conta com colaborações e artigos dispersos por várias publicações nacionais e internacionais.
Fotografias: Carlos Lousada/ Jorge Coelho Ferreira/ Arquivo Samuel Aço
in AUSTRAL nº 69, artigo gentilmente cedido por TAAG - Linhas Aéreas de Angola.