Se morro longe de ti
A pandemia e esta loucura universal microscópica. Milhares de migrantes mexicanos e centro-americanos estão a morrer nos Estados Unidos. Os corpos perdem-se na burocracia, nas valas comuns e nas estatísticas. Não voltam mais a casa. No México, há quem faça enterros com caixões vazios.
Uma cruz guia uma procissão na aldeia de Carretas. É fim de tarde em Veracruz, estado que bordeia o Golfo do México. Umas dezenas de pessoas avançam pelas ruas breves do pueblito mexicano. Portam velas nessa quase escuridão. Rezam um rosário. Movem-se, passos lentos, demorando as memórias de Medel Huesca.
A marcha fúnebre de Medel, emigrante veracruzano nos Estados Unidos há vinte anos, foi resgatada esta semana pelo jornal The Guardian. Pai de seis crianças, Medel gostava de dançar cúmbia, um divertido ritmo colombiano que há muito invadiu a América Latina. Tinha dois trabalhos, com os quais alimentava seis filhos e terminava de construir uma casa na terra natal. Era “profundamente leal e mantinha relações fortes com a família no México”, diz quem o conheceu.
A 3 de abril, conta o jornal inglês, Medel começou a respirar com dificuldade. O quadro clínico agravou-se em vertigem. Morreu dois dias depois e foi cremado. A família nos Estados Unidos começou então uma batalha com consulados e organizações de todo o tipo para trasladar as cinzas de Nova Iorque para a pequena aldeia de Carretas. Entre promessas e prazos não cumpridos, os restos mortais de Medel continuam em terra estranha.
Esta história é uma de muitas. As famílias dos milhares de migrantes mexicanos e centro-americanos que morreram no Gabacho (Estados Unidos) de coronavírus lutam para trazer os seus mortos de volta ao chão original. Mas em tempos de pandemia, as terras do norte são prisão até para os mortos.
Aturdida com papéis por assinar e cinzas que ainda não voltaram, a família de Medel não quis esperar. No México o espírito dos mortos é coisa séria, veneração e respeito. E se não há corpo, há alma, muita alma. A procissão de morto ausente percorreu então as ruas da aldeia de Carretas a 14 de abril, pouco mais de uma semana depois do emigrante falecer. A velação recordou o bom filho da terra. Uma grande cruz de madeira forrada de fotos fez as vezes de Medel. Familiares e amigos beijaram-na e acariciaram-na antes de a semienterrar ao lado da campa do pai do malogrado. Ali jaz um vazio. Em epitáfio, um refrão não cumprido de uma canção que, no México, é um verdadeiro hino: “México lindo e querido, se morro longe de ti, digam que estou a dormir e que me tragam aqui”. Histórias marginais da migração em tempos de peste.
As marchas esquecidas
A história de Medel é cinza. Mas a de muitos migrantes centro-americanos é desespero em carne viva. O início da pandemia foi um golpe duro para quem tenta chegar aos Estados Unidos. Ao contrário do que sugere o silêncio mediático, as caravanas migrantes continuam em tempos de coronavírus. Mais desorganizadas e pequenas, é certo, mas em marchas de muito asfalto desde as Honduras, El Salvador e Guatemala, sobretudo.
O vírus exponenciou o medo e a incerteza. Na fronteira sul do México, os migrantes encontram agora uma barreira quase intransponível. Ninguém passa, decretou o governo mexicano. Milhares de pessoas deambulam pela linha da fronteira com a Guatemala, sem rumo. As populações locais acusam-nos de trazer a peste e escorraçam-nos. As autoridades perseguem-nos. Famílias inteiras escondem-se nas zonas rurais à espera de uma oportunidade de continuar viagem por sua conta, ou guiados por traficantes de pessoas, os famosos “coyotes”.
O pânico e frustração gera revoltas. Em alguns centros de migrantes no México houve confrontos em protesto pela falta de condições de higiene, pela alimentação pobre e pela falta de medidas para evitar os contágios nas instalações a abarrotar. Em abril deste ano, na Estação Migratória de Tenosique, em Chiapas, os distúrbios acabaram num incêndio que matou, por sufoco, um migrante da Guatemala.
Os que fintam as autoridades e chegam aos Estados Unidos encontram uma mão ainda mais dura, tipo soco em seco. Os centros de detenção da Patrulha Fronteiriça dos EUA tornaram-se pontos de alto nível de contágio de COVID-19, alertam organizações de apoio aos migrantes. O descontrolo parece total.
Em resposta, as autoridades gringas avançaram para uma série de deportações massivas de migrantes latinos. Há algumas semanas, um grupo de senadores democratas acusou a “Administração Trump” de “prejudicar os esforços regionais na América Latina e no Caribe para conter a atual pandemia, ao deportar migrantes com COVID-19”.
Também nesta história há um nome: Ernesto Escobar. Salvadorenho, foi o primeiro migrante detido nos centros de migração dos EUA a falecer por COVID-19. Foi em maio. Vivia nos Estados Unidos desde 1980, ano em que fugiu com a família da guerra civil de El Salvador. Estava preso no Centro de Otay Mesa, em San Diego, Califórnia.
Ernesto esteve internado uma semana em estado crítico antes de falecer. Como o mexicano Medel Huesca, não voltou mais a casa. Mais um corpo que ficou em terra estranha. Sem cruzes de pau a lembrarem-lhe a ausência.