A Sacerdotisa e os Meninos Santos
Respiramos ar puro na serra de Oaxaca. Nas terras altas do sudoeste mexicano, uma camponesa com o dom da cura virou um hit do vórtice psicadélico e hippy dos anos 60 e 70. Carimbada como “produto indígena”, Maria Sabina, a sacerdotisa dos cogumelos alucinógenos, virou artigo de consumo de intelectuais, cientistas, artistas e de uma multidão sedenta de drogas. No seu transe, não entenderam nada.
Um forte de pedra, trincheiras de montanhas. Silêncio. O bosque verde-escuro sobe encostas e despenha-se nos vales profundos por onde sobe a névoa ao fim da tarde. Aqui as nuvens nascem do chão. Na aldeia indígena de Huautla de Jiménez, as cascatas e riachos são burburinho constante. As ruas são de terra e lodo. A pobreza é extrema. O frio infiltra-se nas casas de tijolos de adobe, humedece o chão de terra batida e os tetos de palha. Cheira a flores e incenso, café e cacau.
Nesta solidão brutal da alta montanha da Serra Mazateca nasceu em 1894 Maria Sabina. A sábia, a sacerdotisa, a curandeira, a mulher xamã ainda hoje é evocação perene nestes lugares moldados por desfiladeiros e estreitos cumes.
A história, como todas as boas histórias, começou num dia sem tempo.
A árvore
Uma árvore traçou-lhe o destino. Era um dia qualquer do início do século XX em Huautla de Jiménez. Maria Sabina e a irmã Maria Ana saíam uma vez mais pelos campos para cuidar as galinhas da família. Num ponto impreciso, num momento sem hora, sentaram-se debaixo de uma árvore sob o céu azulão das montanhas.
Conversavam e riam quando algo lhes despertou a atenção. Uns “cogumelos ali à mão” chamaram pelas pequenitas, recorda a curandeira no documentário “Maria Sabina, Mulher Espírito”, de Nicolás Echeverría: “Lembrei-me que os avós falavam destes fungos com grande respeito. Levei-os à boca e mastiguei-os. O sabor não era agradável, eram amargos, sabiam a raiz, a terra. A minha irmã Maria Ana fez o mesmo. Ficámos zonzas, como se estivéssemos bêbadas, e começámos a chorar. Mas depois sentimo-nos bem e ouvimos uma voz. Era uma voz doce, autoritária, como um pai que quer muitos os filhos, mas que os cria com força. Senti que tudo o que me rodeava era Deus”.
Terra de tradição mazateca, Huautla era, há séculos, lugar de xamãs que usavam os cogumelos alucinógenos para curar as doenças do corpo e do espírito. Maria Sabina sabia disso, ela mesmo tinha antepassados curandeiros e assistira ao ritual de sanação de um tio. Debaixo da árvore onde experimentou pela primeira vez os cogumelos, baptizou-os de “meninos santos”, expressão que usaria toda a vida. Os mais velhos contaram-lhe o resto. “Fiquei a saber que os cogumelos davam sabedoria, curavam doenças, que a nossa gente comia-os há muitos anos e que tinham poder, eram o sangue de Cristo”, conta.
A curiosidade era grande, mas na dureza da Serra Mazateca a vida de Maria Sabina seguiu um rumo que a afastou durante muito tempo desse mundo. Aos 14 anos, foi “entregue” para casamento, prática comum na sua comunidade. Seis anos depois, ficou viúva. Sozinha e com três filhos pequenos, concentrou-se em garantir o sustento. Percorria numa mula os caminhos íngremes na borda dos desfiladeiros. De aldeia em aldeia, revendia todo o tipo de mercadoria.
Aos 30 anos casou-se pela segunda vez. Teve seis filhos, só um sobreviveu. Treze anos depois, o marido – homem violento que a agredia constantemente – foi assassinado. Nessa altura, o chamamento tornou-se mais forte. “Ficar viúva pela segunda vez facilitou-me seguir o meu destino, que era ser sábia, curar com a linguagem dos meninos santos. Durante muito tempo algo me deteve, como nos detém esse medo que temos de nos entregarmos ao que fomos destinados.”
Antes dessa decisão aos 43 anos, já os poderes curativos de Maria Sabina eram conhecidos nas comunidades da região. Um episódio um tempo antes detonou a sua fama. Um certo dia, Maria Ana, a irmã com quem tivera a primeira experiência debaixo da árvore, adoeceu. Chamaram-se os xamãs de Huautla, mas nenhum conseguiu curá-la. “Ela não devia morrer, e nessa noite decidi que eu mesma tomaria os cogumelos para a ajudar”, relata Maria Sabina. E assim foi. “Quando os anjinhos estavam a trabalhar dentro do meu corpo, rezei e pedi a Deus que me ajudasse a sanar Maria Ana. Aproximei-me dela e os anjinhos guiaram as minhas mãos para apertar-lhe a cintura. Comecei a cantar e a dizer o que os anjinhos me obrigavam a dizer. De repente, ela começou a soltar muito sangue. Água e sangue, como se estivesse a parir. Nunca me assustei, porque sabia que Deus estava a curá-la através de mim. Atendi a minha irmã até que o sangue deixou de jorrar. Depois deixou de gemer e adormeceu”.
O livro
A forma como Maria Sabina curou Maria Ana repetir-se-ia ritual após ritual. A curandeira dizia que apenas seguia as instruções de um “livro” que lhe tinham confiado nas suas viagens. “Os meninos santos falam comigo, aconselham-me, dizem-me como devo curar os doentes. Eles ensinam-me a linguagem que falo. Tudo o que digo está no livro que me deram. Eu sou a que lê, a intérprete, esse é o meu privilégio”.
Este “livro” era um conjunto de cânticos curativos em mazateco que a curandeira repetia com voz fina e quebradiça durante as sessões de cura. As ladainhas foram compiladas num livro de papel quando Maria Sabina se tornou conhecida. Nelas, descrevia-se como canal de sanação.
“Sou a mulher que olha para dentro
Sou mulher luz do dia
Sou mulher lua
Sou mulher estrela da manhã
Sou mulher estrela deus
Sou a mulher relógio
Sou a mulher constelação
Sou a mulher constelação bastão
Porque podemos subir ao céu
Porque sou a mulher pura
Sou a mulher do bem
Porque posso entrar e sair do reino da morte.”
Em busca destas conversas rituais com os reinos invisíveis que curavam o corpo, os habitantes da região começaram a procurar Maria Sabina. A curandeira nunca cobrou nada. Na maior parte das vezes levam-lhe feijão, milho ou outros alimentos. Mas não eram só os doentes que a procuravam, enumera. “Aqui chegam também os que foram encantados pelos duendes, os que perderam o espírito por um susto no monte, no rio ou nas veredas. Pergunto-lhes sempre: ‘não sentias que não tinhas espírito, que o teu corpo ia vazio? Ou nos teus sonhos, a que lugares chegas? Quando dormimos, o espírito vagueia, vai até onde quer ir. O espírito transforma-se em tlacuache [um marsupial típico do México], tigre ou [ave] zopilote. Convertido em animal, viaja a lugares longínquos e regressa quando acordamos. O espírito é o que adoece. Os meninos santos curam as chagas e feridas do espírito”.
Aconteciam de noite, estas sessões de cura conhecidas simplesmente por “veladas”. À porta fechada, na casa de adobe e teto de palha de Maria Sabina e sem luz elétrica, e escuridão e silêncio da Serra Mazateca imperavam. O ambiente era solene. Acendiam-se velas para quebrar a noite. A luz quente, mortiça e ondulante iluminava as imagens de santos católicos perfilados num altar caseiro onde a Virgem de Guadalupe e um crucifixo com Cristo morto dominavam. Açucenas em pequenos jarrões gritavam vida.
Num incensário em forma de taça, Maria Sabina acendia copal, uma resina aromática usada nos rituais dos povos pré-hispânicos. Com uma pasta que misturava tabaco, cal e alho, a que chamava San Pedro, untava o corpo do paciente. Sentava-se depois num pequeno banco de madeira em frente a uma mesita de tábuas e abria um papel ou folhas de plantas onde guardava os cogumelos alucinógenos. Passava-os pelo fumo do copal, como consagração, e comia-os aos pares. Dava-os também ao doente, ponto central da velada de cura, e aos seus acompanhantes.
A viagem começava. “Deixo-me levar. Não oponho resistência e caio num poço profundo, interminável, como uma vertigem. Quando ‘eles’ fazem o trabalho no meu corpo, peço-lhes que me ensinem o caminho para rastear a doença e digo: teu sangue tomarei, teu coração tomarei, porque minha consciência é pura, limpa como a tua, porque em mim não há bruxaria, é pura, porque não tenho lixo nem pó”.
Num transe profundo, Maria Sabina mergulhava num murmurinho de cânticos – os do livro – e rezas apelando aos santos, a Deus, à Virgem e a Jesus Cristo pela cura do doente. A litania longa, interminável e repetitiva potencializava o êxtase. Maria Sabina passava então a mão pelo corpo que havia que curar. Batia palmas, assobiava, falava, cantava, guardava silêncio. Invocava, rezava, movia a cabeça, fechava os olhos, abraçava, massajava. Ao fazê-lo, “pedia favores aos senhores das montanhas, dos rios e dos mananciais, porque eles têm o poder de encontrar os espíritos e também de curar”.
Quando o paciente vomitava, expulsando os males do corpo e alma, a sessão acabava. Apagavam-se as velas e todos ficavam em silêncio. A noite dominava. “Sem luzes, vemos a escuridão até ao infinito profundo. Há um mundo mais além do nosso, um mundo que está longe, também próximo e invisível. Aí é onde vive Deus, onde vive a morte e os santos. Um mundo onde tudo já aconteceu, e tudo se sabe. Esse é mundo que nos fala.”
O circo
Nos finais dos anos 50, a fama de Maria Sabina já tinha extrapolado os limites de Huautla de Jiménez. Chamavam-lhe “La Señora”. Pequenina, com vestidos bordados de flores e o omnipresente huipil (uma espécie de xaile típico dos povos indígenas do México), caminhava silenciosamente. Passos imperceptíveis que muitos tentavam seguir. E que muitos encontraram.
Em 1955, chega à aldeia o banqueiro norte-americano Robert Gordon Wasson. Há vários anos que se dedicava a estudar etnomicologia no México e queria conhecer “a grande curandeira” de quem lhe tinham falado na cidade de Oaxaca. Contam que, primeiro, Maria Sabina resistiu. Tinha medo de perder as capacidades terapêuticas. Mas com alguma insistência acabou por ceder e abrir as portas a Wasson e à sua esposa. Noite após noite, os forasteiros participaram nos rituais de sanação e desfolharam o livro de cânticos que vivia na voz de Maria Sabina (e gravaram-nos sem autorização, o que enfureceu a curandeira quando se deu conta). Impressionado, o etnobotânico recordaria mais tarde Maria Sabina: “Era uma cinquentona de modos solenes, com um sorriso cheio de dignidade”.
Wasson regressa aos Estados Unidos e escreve vários artigos sobre o que viu. Em 1957, publica uma reportagem na revista Life sobre Maria Sabina, “a sacerdotisa”, como passou a ser conhecida. O boom foi imediato. Nos anos que se seguiram, um cortejo de escritores, cantores, artistas, cientistas e micologistas subiu à Serra Mazateca para conhecer a xamã. “Visitam-me muitos estrangeiros, tomam a minha imagem e a minha voz com os seus ‘ferros’ [máquinas fotográficas, câmaras de filmar e gravadoras]. Dizem ser doutores, outros que têm cargos importantes nas cidades. Vêm pessoas que escrevem nos papéis e perguntam pela minha vida”, conta no documentário de Echevarría. Sem saber quem eram, Maria Sabina abriu as portas da casa de adobe a personagens inesperados como Albert Hoffman, o pai do LSD, Aldous Huxley, Bob Dylan, Jim Morrison, John Lennon (dizem que numa má viagem viu a sua morte). Também Walt Disney, visitante assíduo que os rumores contam que terá construído uma pequena pista de aviação nos arredores de Huautla para chegar mais facilmente à curandeira. Nos últimos anos de vida, Maria Sabina recatou-se em Huautla, fugindo ao circo mediático que montaram à sua volta. Às portas dos anos 60, o ruído mediático sobre uma xamã indígena, sábia de cogumelos mágicos e “perdida” numa remota serra mexicana era música para os ouvidos do movimento hippie. À pequena aldeia Huautla de Jiménez começaram a chegar enxurradas de jovens estrangeiros, sobretudo. Muitos vinham à procura “da luz”, o que quer que isso fosse; outros, queriam drogar-se pura e simplesmente. A aldeia encheu-se de gente alienada que consumia cogumelos nas ruas, animada por charlatões que prometiam viagens ao “outro lado”. O caos chegou a tal ponto que o Exército mexicano teve que expulsar uns quantos e rodear a povoação para evitar que fosse invadida, literalmente.
Atordoada, Maria Sabina começou a ter problemas com autoridades, vizinhos e família. Numa tentativa de proteger os seus “meninos santos”, insistia em explicar o carácter sagrado do ritual a uma turba com os olhos fora de órbita. As tentativas foram em vão. “Os jovens têm sido irrespeitosos, tomam os meninos santos a qualquer hora e em qualquer lugar, não o fazem durante a noite, como é tradição, nem respeitam as indicações dos sábios. Para mim, é difícil explicar-lhes que isto não se deve fazer só para sentir o efeito, porque se continuarem assim vão dar em loucos. Uma velada faz-se para curar as doenças das pessoas, isto não é uma brincadeira para mim. Devemos ter respeito pelos meninos santos. As pessoas que recorrem a eles devem ser puras de corpo e espírito.”
Durante a euforia desses anos, Maria Sabina é etiquetada como produto indígena para consumo de massas. Os media adoram-na e exploram ao máximo o “divertido exotismo” das suas histórias. Convencem-na a ir às grandes cidades mexicanas com a promessa (nunca cumprida) de a que a ajudariam a tirar da pobreza extrema em que sempre viveu. Foi a convidada principal de programas de televisão na capital mexicana, figura de curtas e documentários. Foi convidada de palestras e conferências em que estudantes, cientistas e pseudocientistas insistiam em conhecer os “segredos” dos cogumelos alucinógenos e plantas medicinais.
Como sempre nestas histórias, a fama e burburinho à volta da curandeira indígena de pouco lhe valeram. São muitos os relatos de abusos, enganos, fraudes e roubos. Em algumas situações, Maria Sabina foi praticamente abandonada em pensões, sem comida e com umas moedas nos bolsos. Sozinha na grande cidade, sem sequer falar espanhol, “La Señora” tornava-se vulnerável. A um dado momento decidiu não participar mais nesse circo que tinham montado à sua volta.
Nos últimos anos de vida, a imprensa local de Oaxaca começou a denunciar a miséria em que Maria Sabina vivia e a exploração a que era submetida. Sem querer entrar em polémicas, rejeitava confrontos. Vários relatos contam que insistia apenas em que lhe dessem um pouco de feijão, milho, açúcar, cobertores e um huipil novo.
Os apoios arrancados a ferro eram puras migalhas que não resolveram a precariedade em que vivia e que potenciava a doença avançada. Aos 91 anos afligiam-lhe muitas dores. O alcoolismo consumira o seu corpo. A morte, no entanto, não a assustava. Durante a rodagem de “Maria Sabina, Mulher Espírito”, em 1979, dizia estar preparada: “Conheço o reino da morte, porque cheguei aí muitas vezes. É um lugar onde não há nenhum ruido, porque o ruido, por mínimo que seja, incomoda. Na paz desse ruído vejo Deus.”
Maria Sabina morreu a 21 de novembro de 1985. No dia do seu enterro, os habitantes de Huautla acompanharam-na com flores brancas até ao cemitério. As autoridades montaram guarda de honra e mataram um galo para que anunciasse a jornada da xamã até à outra vida. No caixão, puseram sete sementes de abóbora, uma chávena e um prato, também água e comida para a grande viagem. O povo bebeu aguardente e café com canela, rezou e cantou.
As câmaras de televisão gravaram cada momento dos rituais fúnebres mazatecos que despediram a sacerdotisa. Para as grandes cadeias nacionais mexicanas, a morte foi o último ”espectáculo” que lhes deu Maria Sabina.