Os enigmas das monjas

No século XVII, freiras portuguesas amantes da literatura criaram uma relação especial com uma religiosa erudita do México colonial, Sor Juana Inés de la Cruz. Com poesia e enigmas de amor, defenderam o direito das mulheres ao conhecimento. Os escritos das religiosas ganharam pó por 300 anos na Biblioteca Nacional, em Lisboa. Até que um investigador tropeçou nas folhas soltas.

 

Sor Juana morreu na Cidade do México em 1695, ostracizada pelo clero.Sor Juana morreu na Cidade do México em 1695, ostracizada pelo clero.

Esta é a história de uma teia de solidariedade intelectual entre mulheres do século XVII de lados opostos do mundo, em busca de saber. Religiosas dispostas a dar um murro na mesa dos poderes do clero e dos homens. Burlonas, ácidas, rebeldes. Letradas e incómodas.

No centro da trama, “Sor Juana Inés de la Cruz” -  Sóror Joana Inês da Cruz. A “Fénix” ou “Décima Musa”, como a conhecem no seu México natal, onde dá a cara nas velhas notas verdes de duzentos pesos.

Sor Juana (vamos chamá-la pelo nome na língua original) é figura maior da literatura em espanhol. Em pleno século XVII, esta mulher que escolheu o convento para fugir ao matrimónio e dedicar-se sem amarras ao conhecimento, era autoridade intelectual na Nova Espanha, nome colonial do México. Poetisa, escritora, ensaísta, teóloga, música e mística, a obra de Sor Juana é vasta.

Contam as crónicas que, na cela conventual onde vivia, se reuniam artistas, escritores, intelectuais e cientistas. Para a época, a sua erudição era escandalosa. Aos 17 anos, um conselho de 40 sábios submeteu-a a um exame para avaliar se a sua capacidade intelectual era mundana ou divina. Respondeu a todas as perguntas sem hesitar. Não se soube o veredito.

A independência de Sor Juana e a contestação ao clero e às leis dos homens (homens mesmo, como macho) coloca-a hoje num pedestal feminista. Tipo Frida versão setecentista. Não são poucos os mexicanos que recitam de cor uma das suas frases mais famosas: “Hombres necios que acusáis a la mujer sin razón, sin ver que sois la ocasión de lo mismo que culpáis.” Em tradução livre, “Homens teimosos que acusam a mulher sem razão, sem ver que são o motivo do mesmo que culpam”.

Se a sabedoria e eloquência das suas aparições públicas “hipnotizavam” tudo e todos, segundo os relatos da época, a solidão da sua cela era ainda mais cativante. Em silêncio, durante anos a fio, Sor Juana criou uma rede de solidariedade intelectual com outras mulheres como ela – intelectuais, fraturantes, de pensamento livre. Entre elas estavam oito intrépidas freiras portuguesas.

A Casa do Prazer

Adivinhai:

“Qual é a deidade 

Que com cega ambição,

Cativando a razão,

Toda se faz liberdade?”

 

E esta também:

“Qual pode ser o cuidado

Que, livremente imperioso,

Se faz a si mesmo ditoso

E a si mesmo desditoso?”

Em pleno século XVII, Sor Juana insurgia-se contra o clero e exigia o direito das mulheres ao conhecimento.Em pleno século XVII, Sor Juana insurgia-se contra o clero e exigia o direito das mulheres ao conhecimento.Quando, em 1968, o investigador Enrique Martinez López tropeçou nestas adivinhas em manuscritos escondidos na Biblioteca Nacional, em Lisboa, nem pensou nas possíveis respostas ali ocultas (sabedoria e desprezo, talvez). Os olhos cravaram-se de imediato numa dedicatória inesperada: “Inéditos Enigmas oferecidos à discreta inteligência da soberana Assembleia da Casa do Prazer, por sua mais rendida e aficionada Soror Juana Inês de la Cruz.” Data: 1695. López soube que tinha uma relíquia nas mãos.

Os tais manuscritos com cheiro a antigo continham 20 poemas-adivinhas, conhecidos por “enigmas”, um poema-romance de 24 versos e um conselho desconcertante: “Divirtam-se, nem que seja por um momento.”. O livro escancarava a até então desconhecida cumplicidade intelectual entre Sor Juana e um grupo de freiras portuguesas de conventos de Lisboa e outros pontos do país. 

Em “Sor Juana Inês de la Cruz em Portugal: uma homenagem desconhecida e versos inéditos”, Enrique Martinez López teoriza: “As freiras portuguesas (…) estariam seguramente a par da defesa de Sor Juana do direito da mulher à intelectualidade, por isso, como mostra de apoio e sororidade feminina, pediram-lhe que colaborasse com a sua poesia no grupo literário constituído por elas, cada uma a partir do seu convento, chamado Casa do Prazer”. A ponte entre os dois lados do Atlântico, comenta o investigador, era “a Duquesa de Aveiro” e Maria Luísa Manrique de Lara e Gonzaga, uma condessa espanhola que tinha sido vice-rainha da Nova Espanha. As duas eram admiradoras e amigas próximas não só de Sor Juana mas também das Irmãs portuguesas.

Encantadas com a escrita da monja rebelde da Nova Espanha que falava de amor nas suas adivinhas, as freiras lusas reuniram então num livrinho os enigmas e incluíram prosas e poemas em que elogiavam as “claridades obscuras” de Sor Juana. A admiração não era à toa. Três destas religiosas (Soror Feliciana Maria de Milão, Soror Maria do Céu e Soror Maria das Saudades) eram elas próprias figuras destacadas entre os intelectuais portugueses de então e donas de espíritos vivazes e aguçados. Qualquer coincidência com o carácter livre de Sor Juana “não é coincidência”, sublinha Enrique Martinez López.

Sor Juana, Padre António Vieira e o cisma

Sor Juana é considerada a última grande poetisa dos anos de ouro da literatura em espanhol.Sor Juana é considerada a última grande poetisa dos anos de ouro da literatura em espanhol.Em Portugal, a fama de Sor Juana precedeu os Enigmas da “Casa do Prazer”. Em 1690, a religiosa escreveu a “Carta Atenagórica”, um ensaio teológico intrincado que criticava duramente o “Sermão de Mandato” do intocável Padre António Vieira. A crítica ao jesuíta português caiu como uma bomba no seio da Igreja patriarca e atirou a intelectual para o olho do furacão em Portugal e outros países. 

Popular e polémico, o texto de Sor Juana foi publicado quatro vezes entre 1690 e 1693. A Inquisição começou a tê-la debaixo de olho. Altas figuras do clero da Nova Espanha aconselharam-na a deixar a reflexão teológica para “os homens” e a dedicar-se à oração. A “Fénix” aguentou as críticas e ressurgiu com uma resposta dura, repleta de “ardentes declarações feministas” e onde reivindica o direito das mulheres ao conhecimento. Mas o caminho estava traçado. Quem estuda a fundo a vida de Sor Juana coincide que a crítica ao Padre António Vieira marcou o início de um forçado e irreversível apagão intelectual.

Desgastada e atacada por todos os lados, a Décima Musa desfez-se da sua biblioteca de mais de 300 livros. Deixou de escrever. Vendeu os instrumentos musicais, os aparelhos científicos e doou o dinheiro aos pobres. Mergulhou numa austeridade profunda. Em 1695, morre no Convento de São Jerónimo, vítima de uma epidemia de cólera que arrasou a Cidade do México.

Séculos depois, o esquecido livro “Enigmas” acabou por revelar-se como a ponta de um novelo maior. Depois da descoberta da obra, em 1968, manuscritos encontrados em outros países expandiram a dimensão de Sor Juana. Nos Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo, é considerada um dos pilares dos primeiros movimentos feministas. No seu México natal, depois de anos e anos de detração por intelectuais misóginos, o século XX resgatou-a. A esses “hombres necios”, do lado de lá do esquecimento manda a sua achega: “Triunfante quero ver quem me mata; e mato quem me quer ver triunfante”.

por Pedro Cardoso
Corpo | 21 Agosto 2020 | clero, conhecimento, Literatura, México, Monjas, Padre António Vieira, poder, poesia, religião, Sor Juana Inés de la Cruz