¡Viva México, cabrones!
Nem nu, nem com coroa. Hoje, o Rei Felipe VI não vai pôr um pé no que foi a jóia do seu velhinho Novo Mundo mitológico. Pouco depois das 9 da manhã no México (15 horas em Lisboa, uma mais em Madrid), a presidente eleita Claudia Sheinbaum assume oficialmente o cargo que arrebatou em junho passado com uma maioria contundente de 59,5%. Entre os cento e poucos representantes de vários países que assistirão à cerimónia, Felipe VI brilhará pela ausência.
Para o seu grande dia, a nova presidente mexicana simplesmente não convidou o monarca. Tal “afronta” desatou uma indignação tremenda em Espanha e uma birra que nunca mais acaba de Pedro Sánchez, Presidente do governo daquele país. Apesar de o Executivo espanhol estar na lista de convidados de Sheinbaum (“o governo sim, foi eleito pelo povo”, justificaria), Sánchez solidarizou-se com o seu Rei, e em protesto decidiu também não vir. Madrid está nervosinha com o diferendo; os mexicanos, nem por isso. Com tanto espernear e estrebuchar, perguntam com gozo na voz: “Vêm para quê?”
O que pode parecer um braço-de-ferro estranho entre os dois lados do Atlântico, na verdade é tudo menos um affair. Em março de 2019, o então recém-eleito Presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador (AMLO) anunciava que tinha enviado “uma carta ao rei de Espanha e outra ao Papa para que peçam perdão aos povos originários pelas violações do que agora se conhecem como direitos humanos”. “Houve matanças, imposições, a chamada Conquista fez-se com espada e cruz. Edificaram-se igrejas em cima dos templos… É tempo de nos reconciliarmos e pedir perdão. Eu também vou fazê-lo, porque depois da Colónia houve muita repressão aos povos originários.”
A inesperada missiva não caiu bem em Espanha nem nos meios conservadores mexicanos e latino-americanos. Na altura, o governo de Espanha, já com Pedro Sánchez à cabeça, apressou-se a rejeitar “com toda a firmeza” o conteúdo da carta de AMLO, com a retórica clássica. “A chegada, há 500 anos, dos espanhóis às atuais terras mexicanas, não pode ser julgada à luz das considerações contemporâneas. Os nossos povos fraternos sempre souberam ler o nosso passado comum, sem raiva e com uma perspetiva construtiva, como povos livres, com uma herança comum e uma projeção extraordinária.”
Enquanto o chefe do governo dava a cara, o rei Felipe VI, a quem a carta se dirigia pessoalmente, alimentou com o seu silêncio o burburinho reacionário. Ignorado, em fevereiro de 2022, AMLO decidiu pausar indefinidamente as relações políticas com Espanha. Até hoje, nem Rei, nem Príncipe, Princesa, amante ou concubina da Casa Real espanhola acusaram sequer a receção do documento. Uma “ofensa grave à soberania e povo do México”, considera a nova presidente, que decidiu carimbar o rei como persona non grata na sua tomada de posse.
O meme do Rei
Cinco anos de silêncio real absoluto cobram agora fatura. Na semana passada, numa chamada telefónica com Pedro Sánchez, Claudia Sheinbaum reiterou-lhe o convite para a investidura, e aproveitou para justificar o porquê de não querer sangue azul espanhol na pachanga (festa).
A explicação diplomática não surtiu grande efeito. Um dia depois, o Ministério dos Assuntos Exteriores do país ibérico reagia num comunicado de poucas linhas: “O Governo de Espanha considera inaceitável a exclusão de Sua Majestade, o Rei, do convite para a tomada de posse da presidente eleita do México, no próximo dia 1 de outubro, na Cidade do México. Por esse motivo, o Governo de Espanha decidiu não participar em dita tomada de posse a nenhum nível”.
A choradeira reverberou dias depois, sem falhar, na imprensa conservadora espanhola. Num artigo entre o noticioso e opinativo, o jornal ABC revelou que ouvira a conversa entre Claudia e Pedro, e que o clima era tenso. Com emoção, o ABC jurava a pés juntos que, para tentar dar a volta à coisa, a presidente mexicana tinha até proposto substituir o Rei pela sua filha, Princesa Leonor, na tomada de posse – versão que Claudia Sheinbaum desmentiu prontamente.
Também no México, a polémica excita os meios de comunicação de direita, que há meses e meses não perdem uma oportunidade para “comprovar”, segundo eles, que a nova presidente não é mais que um cão de fila do AMLO. Na sua versão, sem ideias nem vontade própria, Claudia Sheinbaum deixar-se-á influenciar pelo seu antecessor e ele, sim, continuará a governar o país desde as sombras, ditando políticas descabeladas que “transformarão o México numa Venezuela”.
Se a imprensa tradicional faz um escabeche imenso, para os mexicanos, o povo na rua, o bate-boca entre o México e Espanha é mais divertido que outra coisa. Dá um certo gozo pessoal. Nas redes, as piadas abundam. Em referência ao programa governamental “Jovens Construindo o Futuro”, que apoia mexicanos a conseguir o primeiro emprego, um meme estiga: “Sabem por que o Rei de Espanha chora tanto para vir à tomada de posse de Claudia? Porque sabe que no México dão subsídios a quem nunca trabalhou na vida”.
Para além da piada e do riso fácil, a verdade é que a relação entre mexicanos e espanhóis, na lógica de antigos colonizadores/antigos colonizados, tem vindo a sanar com os séculos – “o problema não é com o povo espanhol”, têm reiterado estes dias tanto Claudia Sheinbaum como AMLO. Já com a monarquia dos Bourbon madrilenos, símbolo da opressão colonizadora (e mais recentemente com grupos económicos espanhóis extrativistas denunciados por AMLO), a história é outra.
Por este motivo, o “não” de Sheinbaum ao Rei é, mais que nada, visto pelos mexicanos, orgulhosos do seu país até ao tutano, como um ato de dignidade e soberania. Em entrevista à jornalista Inna Afinogenova, do Canal Red, a presidente resume este sentimento. “O México é um país independente e soberano, que já não é colónia nem protetorado de ninguém. E como presidente, terei sempre que defender a soberania do nosso país e, ao mesmo tempo, a boa relação com todos os povos. Agora há a questão do perdão. Penso que o reconhecimento do México também deve vir de Espanha.”
“Estavam muito mal-habituados”, reagiu, por sua vez AMLO, e que apoiou sem reservas a decisão e postura da sua sucessora ao longo desta polémica. “Durante o período neoliberal (…), as elites económicas e políticas espanholas vinham e faziam o que queriam. Continuavam a ver o México como terra de conquista”, expôs numa das suas diárias conferências de imprensa matutinas.
A t-shirt de Hernán Cortés
Na margem de lá do charco (como os mexicanos chamam ao Atlântico), o não-convite de Claudia Sheinbaum ao Rei pôs partidos, intelectuais e opinião pública em confrontação aberta. Visto da margem de cá, é uma surpreendente onda de choque.
De um lado, estão então os indignados, indignadíssimos, pelo “ataque arrogante à honra do Rei”: toda a direita – suave, menos suave e extrema –, o governo, o PSOE (partido de Pedro Sánchez), a Casa Real, claro, e os intelectuais revisionistas de toda la vida, que insistem na missão civilizadora de Espanha nas Américas. Alguns até perdem a compostura da gente com classe. Como Arturo Pérez Reverte, catedrático da Real Academia Espanhola, que faz do Twitter o seu púlpito, insultando Claudia Sheinbaum e AMLO de “imbecis”, “oportunistas”, “demagogos” ou “sem-vergonha”.
Ainda neste grupo está também a imprensa alinhada com o poder real. Para além de notícias tendenciosas, como a do ABC, alguns articulistas arrancam os cabelos de incredulidade ao expor que Claudia Sheinbaum não convidou o “amigo Felipe VI”, mas sim os bad boys Putin ou Maduro. Neste excesso sem limites, num programa na TVE, a cadeia pública de televisão espanhola, um historiador apareceu a falar do tema com uma simbólica t-shirt com a cara de Hernán Cortés – o depredador que iniciou a invasão espanhola do que hoje é o México, no século XVI, e que desatou um processo colonizador que, entre outras violências, em poucas décadas dizimou 19,3 milhões dos 20 milhões de pessoas que aqui viviam antes da investida dos espanhóis, segundo vários historiadores.
E temos então o outro lado da barricada que aplaude a posição do México e vira as costas ao Rei – a esquerda espanhola e partidos nacionalistas, incluindo aliados do governo. Alguns deles estarão hoje no Palácio Nacional da Cidade do México, com convite formal em letras douradas, como Jon Iñarritu, dos nacionalistas vascos EH Bildu; Javier Sánchez, do Podemos; ou a porta-voz do Bloco Nacional Galego, Ana Pontón.
A esta lista junta-se ainda Gerardo Pisarello, do partido Sumar, sócio do Executivo espanhol. Recentemente, o dirigente publicou um vídeo que causou indigestão naquelas bandas. “É lógico que a presidente Claudia Sheinbaum vai deixar claro que o México não é um povo de súbditos, mas sim uma República de mulheres e homens livres”.
Em Espanha, a controvérsia extrapolou a tal ponto que reacendeu por estes dias o velho e delicado fogo retórico e ideológico entre republicanos e monárquicos. Juan Carlos Monedero, cofundador do Podemos, não perdeu a oportunidade para metralhar: “Parece-me óbvio que, se a Espanha tivesse uma presidência da República, iria oficialmente à posse de Claudia Sheinbaum, porque o governo já se teria reunido com o do México para iniciar uma nova etapa, onde os dois países teriam chegado a um acordo sobre a conquista. Ou será que o Parlamento alemão não pediu desculpa pelos bombardeamentos de Guernica? A direita não está acostumada a pedir desculpas”.
Neste contexto de escalada, alguma imprensa espanhola chegou a acusar o México de dirigir um complot republicano para separar a monarquia e o governo em Espanha. Surpreendidos pelo absurdo, os mexicanos se cagan de risa.
¿Por qué no te callas?
A irmandade e respeito pelos povos que os reis espanhóis advogam em discursos, em particular nos países que Espanha colonizou, nem sempre coincidem com a postura oficial dos monarcas.
Nos últimos dias têm vindo à baila episódios que exibiram a Coroa espanhola em toda a sua arrogância e desrespeito por países latino-americanos com governos de esquerda. Um dos mais icónicos aconteceu em novembro de 2007, na XVII Cimeira Ibero-americana, no Chile. Durante uma discussão entre Zapatero, na altura presidente do governo espanhol, e Hugo Chávez, o falecido Rei João Carlos I interrompeu sem pedir licença, e com um trejeito de desprezo gritou ao então presidente da Venezuela: ¿Por qué no te callas? (Por que não te calas?).
Felipe VI, filho de Juan Carlos I, não tem sido menos infeliz. Uma das polémicas mais estridentes do atual rei espanhol ocorreu na Colômbia em agosto de 2022, durante a tomada de posse de Gustavo Petro. Ao contrário de todos os convidados na tribuna, e em profundo desrespeito por um dos símbolos máximos da libertação da América Latina, Felipe VI permaneceu sentado à passagem da emblemática espada de Simón Bolívar numa marcha militar.
Também no Chile, Sua Majestade provocou indignação, ao chegar tarde à tomada de posse de Gabriel Boric. “Pareceu-me altamente inaceitável que se atrasasse a cerimónia porque o rei de Espanha não chegou a tempo”, disse um irritado Boric à imprensa.
As críticas pelo “comportamento desrespeitoso” de Felipe VI na América Latina esquerdista passam também pela Bolívia, onde terá tido atitudes “despectivas” com Evo Morales, segundo o próprio; ou na República Dominicana, onde quebrou de forma grosseira o protocolo de vestuário na tomada de posse de Luis Abinader.
Com o atual diferendo com o México, estes episódios também têm eco em Espanha. “Estamos extremamente preocupados com o facto de o governo estar a ligar as suas relações internacionais, como no caso do México, às relações internacionais da monarquia e do rei. O rei foi com cara de cão para a Bolívia; o rei cometeu, do meu ponto de vista, uma enorme falta de respeito na posse de Gustavo Petro, tentando humilhar o presidente da Colômbia. Depois disso, é evidente que o México não convida o rei, porque o rei é um problema para as relações internacionais baseadas no respeito mútuo e nos direitos humanos”, criticou Ione Belarra, deputada do Podemos.
“Ninguém escolhe reis, e por isso eles podem ficar sentados de forma arrogante quando a espada de Bolívar desfila na posse de Gustavo Petro; ou ter casos extraconjugais que todos nós pagamos enquanto ele nos fala sobre ‘família’ a cada 24 de dezembro; ou criar bares de praia para deixar dinheiro sujo para seus filhos; ou podem criar problemas para a Espanha, mostrando o seu desrespeito pelo México, o país que mais espanhóis recebeu na longa noite da ditadura”, acrescentou Juan Carlos Monedero, ex-dirigente do Podemos, em referência aos milhares de crianças e refugiados políticos que o México acolheu durante a Guerra Civil de Espanha e a repressão franquista.
E depois há aqueles episódios que adornam as histórias e suavizam humores. Como o que protagonizou Gabriel Rufián. Na semana passada, em declarações à imprensa, o porta-voz da Esquerda Republicana da Catalunha encheu o peito de coragem. Forte e claro, e em pleno Congresso espanhol, exclamou o verdadeiro e autêntico mantra mexicano, que tudo resume: “Viva México, cabrones!”