O pesadelo de Borges
Escrevia o jornalista Enric González em ”Borges, o inspetor de aves”: “Falando de mistérios, não existem se nos perguntarmos em quem votaria o inspetor [Jorge Luís] Borges nas eleições do próximo 19 de novembro. Em Javier Milei, sem sombra de dúvida. No dia seguinte, qualificaria Milei de ‘nefasto’. Como sempre fez com todos”.
Talvez assim fosse. Antiperonista feroz, o escritor argentino certamente não perderia a oportunidade de dar ao partido da situação o golpe que a democracia lhe permite. No entanto, nesse 19 de novembro, pouco peso teria o ressabiamento de Borges. A vitória da coligação de ultradireita “La Libertad Avanza” na segunda volta das presidenciais, por 55,69% (contra os 44,3% do peronista Sergio Massa) foi mais que expressiva. Não foi preciso contar simpatias, vinganças nem votos à lupa para validar esta vitória – um verdadeiro “milagre”, segundo o próprio presidente-eleito.
O ruído metálico da motosserra com que Milei deu show na primeira parte da campanha para as presidenciais assusta a outra quase metade de eleitores argentinos que o abomina. No desconcerto, buscam nas sombras respostas alternativas ao que as análises sócio-económico-políticas lhes tentam explicar há duas semanas: a rutura era inevitável; a Argentina é um país falido, com 40% da população na pobreza e inflação anual de 143%; o sistema de partidos está caduco e desacreditado; a desesperança e raiva, até, contra a classe política tradicional andam pelos céus.
Nesta busca de sentido, recuperam-se arquivos antigos e forçam-se analogias. É neste espaço que alterna entre o absurdo e a razão que aparece o improvável Borges com pesadelos de meio século.
O homem com cara de leão
Em 1974, a revista Crisis publicou uma entrevista de María Esther Gilio a Borges. Uma conversa intimista em que o escritor argentino dizia querer ser “o homem invisível”. A dada altura, recorda um pesadelo. De um homem com cara de leão.
“María Esther Gilio: Em vários dos seus contos, como “O xadrez” ou “O condenado à morte”, aparecem pesadelos e insónias. Há alguma relação com a sua vida?
Jorge Luís Borges: Sim, agora tenho pesadelos quase todas as noites.
Pesadelos? O senhor tem pesadelos?
Acaba de me perguntar pelos pesadelos. Por que se surpreende?
Pensei que me ia dizer: ‘Nunca tive pesadelos.’.
Não era lógico.
Como são esses pesadelos?
Contados não são horríveis, mas sonhados sim, são.
Conte-me.
Em noites passadas, sonhei com um senhor alto, louro, muito elegante, à moda do século XIX. Eu sabia que ele era inglês, dessa forma que sabemos as coisas nos sonhos. Esse senhor tinha uma juba e uma cara que era quase como a de um leão. Rodeava-o um semicírculo de pessoas que tinham um pouco cara de leão, mas menos que ele.
Parece-me um sonho bem estranho.
E ele vacilava. Tudo isso estava retratado num grande quadro e em baixo dizia: ‘Leões’. E havia outro senhor, de costas para mim, que gesticulava e testemunhava tudo o que se passava nesse quadro. Ele era judeu e eu sabia-o, assim como sabemos as coisas nos sonhos, sem que ninguém o diga. Esse senhor estava no meio, assim, apaixonado.
Apaixonado?
Sim, e à volta dele, esse semicírculo de pessoas todas vestidas como ele, com jubas e barbas. Alguns, pude aperceber-me, quase não tinham cara de leão. Simplesmente desejavam sê-lo, e por isso disfarçaram-se. Contado desta forma, isto não tem nada de extraordinário.
E o que o angustia tanto, então?
Bom, isso é o que não sei, mas acordei a tremer.
Não procurou uma explicação?
Como pode ver, esse sonho, em si, é disparatado, mas não terrível. Essas figuras não me ameaçavam. Como? Como?
Não, nada. Eu não disse nada. Queria saber o que para si era tão terrorífico. Que interpretação daria a esse sonho?
Eu? Nenhuma. Eu acredito no que dizia Coleridge, o poeta inglês, que os factos produzem emoções. Por exemplo, se entra aqui um leão, sentimos medo, ou se um animal se senta no seu colo, sente-se intimidada. Mas nos sonhos começamos pela emoção e só depois, de um modo dramático, inventamos uma explicação.
Que é o sonho.
Sim. Ou seja, estava a dormir e por alguma razão senti medo ou senti horror, e então inventei essa explicação disparatada.
O sonho seria uma explicação ao seu medo.
Sim.
Que o senhor mesmo dá.
Sim, eu poderia contar-lhe muitos outros sonhos.
Conte-os, então.
Não, não, não. Escolhi este porque, precisamente, em si mesmo não é terrorífico, é disparatado. Imagine o desatino de uma pessoa que tem cara de leão e busca um acompanhante parecido a ele.
Na verdade, não acho que seja assim tão inocente, para mim é bastante terrorífico.
Não, não é terrorífico. Simplesmente é estranho. Possivelmente se visse um quadro…
Esses tipos, com caras de leões vestidos de pessoas…
É que eram pessoas! O único que tinham de leões era a cara. E este senhor tinha uma bengala muito linda, estava vestido de negro, acho que de fraque, não tenho certeza desse detalhe. Este sonho em si não é horrível, mas quando o sonhei era um pesadelo e quando acordei estive uns minutos aterrorizado, até que pensei que, acima de tudo, o sonho não era terrível e que, além disso, era só um sonho. Quando me apercebi disso, adormeci em cinco minutos.”
O rugido
Quase 50 anos depois desta entrevista, o “homem-leão de Borges” saltou do onírico para o cadeirão presidencial da Casa Rosada, garantem os mais fantasiosos. Os acasos jogam a favor da teoria profética. Com cabelo farto a emoldurar o rosto e voz forte, Milei gosta de ser chamado de leão. Uma irresistível pérola semântica. “Milei não é um leão, é um gatito mimado pelo poder económico”, atirava a candidata da Frente de Esquerda Unidade, Myriam Bregman, num debate presidencial. “O presidente eleito já pausou a ideia de dolarizar a economia. Aprendeu, em menos de uma semana, que uma coisa é fazer campanha a gritos e a outra é armar um Governo. O leão tornou-se vegetariano”, escreve Federico Rivas Molina, em El País.
Mimado ou vegetariano, a verdade é que o rugido inicial de Milei converte-se, pouco a pouco, em bramido. A necessidade de ganhar o apoio dos mais moderados, depois de ficar atrás do peronista Massa na primeira volta, moderou-lhe o tom para o ataque final às urnas. No entanto, contra todos os prognósticos, a vitória acentuou esta tendência, escreve Claudio Jacquelin em “Revolução ou reforma? A Dúvida Crucial”. “Ao contrário do que se poderia prever, a enorme (e imprevisível) diferença de mais de 11 pontos que alcançou sobre Sergio Massa não reafirmou nem acelerou o timing e a radicalidade da proposta com que o libertário chegou à política, fez campanha e consagrou-se eleitoralmente. Muito pelo contrário. O passo do tempo, as nomeações de futuros ministros e altos funcionários, os avanços e marchas-atrás, a inclusão e supressão de nomes da lista do seu primeiro gabinete alteraram o rumo, as perceções e as expectativas. A incerteza que o resultado tinha dissipado voltou, mais forte.”
Com este baixar de revoluções, as mais radicais promessas de campanha que lhe granjearam a fama de louco e lunático entre os opositores (recortar à despesa pública a 15% do PIB; acabar com Banco Central; dolarizar a economia) começam a ser chutadas para canto à espera de novo fôlego. A aritmética dos pesos e contrapesos na Argentina não o favorecem. A dolarização da economia, por exemplo, custaria uns 35 mil milhões de dólares, segundo as contas do próprio presidente-eleito, montante que teria de ser coberto com as reservas e bónus do Banco Central – o mesmo Banco Central que Milei quer desaparecer mas que, numa economia dolarizada, seria fundamental para manter a disciplina financeira, notam analistas ouvidos pela BBC Mundo.
A nível político a coisa também não pinta a favor. Quando assumir o poder no próximo dia 10 de dezembro, o presidente Milei enfrentará um cenário onde não tem a maioria nas duas câmaras, e onde o seu partido não conta com um único governador. “Num país federal como a Argentina, onde os governadores têm um peso extraordinário”, esta será “uma debilidade estrutural” importante, adverte à reportagem da BBC Mundo o politólogo argentino Sergio Berensztein.
Sem maioria no Congresso, as reformas abruptas que quer implementar poderão ficar seriamente comprometidas, se se recusar a negociar. É certo que Milei já ameaçou realizar plebiscitos ou recorrer a decretos de necessidade e urgência caso não se aprovem as suas medidas, mas esqueceu-se de um pormenor, notam especialistas: segundo a Constituição argentina, para serem vinculantes, as consultas populares têm que passar pelo Congresso para serem convocadas. Igual fluxo para os decretos de necessidade e urgência.
Como resume o analista argentino Rosendo Fraga à BBC Mundo, “o sistema político vai ser o grande desafio” de Milei.
O chanta
Ainda que intrincados, os labirintos políticos e constitucionais que poderiam frenar o buldózer Milei não deixam descansar os que temem uma política de terra queimada, sobretudo em matéria social. O receio do desmantelamento do Estado não é à toa. O fim da educação pública obrigatória, com uma política de atribuição de vouchers para os alunos decidirem a que instituição querem pagar para estudar, aliada às ameaças da privatização da saúde e aos reiterados ataques contra as ajudas sociais do Estado são promessas não descartadas. Estão pausadas, por enquanto, mas parecem ser questão de tempo. A eliminação de ministérios como o Meio Ambiente ou das Mulheres, e a fusão da Educação, Saúde e inclusão no Ministério de Capital Humano, são outros alertas estridentes. Minimizar o Estado ao máximo para salvar a economia, é a palavra de ordem gritada a bom som, fiel ao anarcocapitalistíssimo professado por Milei.
Para Julieta Gaztañaga, professora-adjunta na Universidade de Buenos Aires, em “Milei, ‘o falácias’. Essa mentira faz-te feliz?”, as coisas são muito claras: o novo Presidente reduz a gestão da Argentina a uma insuportável “relação de custo-benefício”. “A campanha do partido libertário de extrema-direita de Milei levou o postulado de ‘É a economia, estúpido!’ a níveis inesperadamente reducionistas, banais e circenses. A economia é importante numa sociedade que está criminosamente endividada há mais de cem anos com instituições financeiras que se intrometem na política interna. Todos sabemos isso. Mas quem quer explodir com a nossa economia também sabe disso? E os que querem encolher o Estado como se as pessoas fossem apenas números numa folha de papel?”.
Indignada, a antropóloga e investigadora, continua: “Milei está convencido (e repete-o vezes sem conta) que os males deste mundo se devem à intervenção do Estado na vida das pessoas. Não chega ao ponto de explicar os anarquistas comunitários, nem o pode explicar a partir da lógica da economia capitalista (um modo de produção forjado sob a proteção legal e coercitiva do Estado). É um auto-de-fé, um dogma. E se alguém lhe pede para elaborar os seus argumentos dogmáticos, grita tempestades de palavrões possuídos de mau-humor (muito mais se quem pergunta for uma mulher!). É inútil que economistas de prestígio de todo o mundo alertem para a fraqueza do seu ‘projeto’ económico.”
Um projeto económico que, alerta Andrés Velasco, ex-candidato à presidência do Chile e ex-ministro das Finanças desse país, é dúbio e “não dá resposta a nenhum dos problemas” crónicos da Argentina. No artigo “Javier Milei é mais do mesmo para a Argentina”, Andrés Velasco realça que “o principal cartão de apresentação de Milei não é a solidez das suas políticas – algumas das quais são realmente estranhas – mas sim a sua atuação de indignação”.
E recorda: “Milei ficou famoso na Argentina por um programa de televisão no qual, entre outras palhaçadas, comemorou o seu aniversário com os olhos vendados, enquanto destruía com um pau um modelo do Banco Central. Noutro espetáculo, rebentou um enorme balão amarelo que dizia B.C.R.A. (Banco Central da República Argentina), enquanto gritava ‘a loucura está nessa merda!”
E será Milei o “libertário” com que o apodam? Não rotundo, metralha Andrés Velasco. “Os libertários priorizam o direito de escolha, e ele opõe-se ao aborto e à educação sexual. Além disso, foi durante muito tempo conselheiro de Antonio Bussi, o general que serviu como governador da Província de Tucumán durante a ditadura militar. Milei é um populista autoritário clássico, que só é de direita porque o partido no poder é de esquerda”.
De libertário a chanta, o verniz estala facilmente. “O castelhano da Argentina trouxe para a língua um neologismo útil: o chanta, um charlatão que não pára de se vangloriar e que pode muito bem meter a mão no bolso de uma pessoa, enquanto esta permanece imóvel, hipnotizada por tanta tagarelice. Como diria um de seus admirados economistas de Chicago, Milei é o chanta argentino por definição.”