Uma América sem América
Na semana passada, os Estados Unidos organizaram a 9ª Cimeira das Américas em Los Angeles, Califórnia. O encontro da Organização de Estados Americanos (OEA) foi parco em resultados e repleto em rebeldia. O encontro ficou marcado pela ausência do México, El Salvador, Guatemala, Honduras e Bolívia, em protesto pela recusa dos EUA em convidar Cuba, Venezuela e Nicarágua. Nunca mais uma América sem América, exigiram.
Uma cimeira onde as ausências foram as grandes protagonistas. Resultados? Uma série de acordos gerais que não vinculam nada nem ninguém e um plano frouxo para mitigar as ondas migratórias para os Estados Unidos com origem no chamado Triângulo Norte – região que congrega Guatemala, Honduras e El Salvador, precisamente três dos países que se recusaram a ir a Los Angeles para uma cimeira “à la Biden”.
As ausências de protesto começaram a desenhar-se a inícios de maio. Em visita oficial a Cuba, o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador (AMLO), insurgia-se contra a (até esse momento) intenção de Washington de excluir Cuba, Venezuela e Nicarágua da Cimeira das Américas. Por não respeitarem os direitos humanos e serem regimes ditatoriais, alegavam.
Em Havana, AMLO rejeitou pela primeira vez uma “Cimeira das Américas sem América”, aproveitando a deixa para condenar uma vez mais, com firmeza, o embargo económico dos EUA a Cuba. Uns dias depois, numa das conferências matutinas no Palácio Nacional, o presidente mexicano deixava as coisas claras, para o caso de haver dúvidas: “Se se deixam de fora [os três países), se não se convidam todos, da parte do México vai à cimeira uma representação do governo, mas eu não vou. Porque não quero que continue a mesma política na América. Ninguém tem o direito de excluir ninguém.”
Os alarmes soaram na Casa Branca. Uma roda-viva da diplomacia norte-americana na Cidade do México tentou convencer o presidente López Obrador a repensar a decisão, a recuar, mas sem efeito. O homem é de posições firmes. Apanhados desprevenidos, os EUA não conseguiram deter o efeito dominó que temiam e que foi imediato. Depois do México, o bloco formado pelos países caribenhos, o CARICOM, também ameaçou com um boicote. Bolívia, Guatemala, Honduras, El Salvador, também a Argentina e o Chile acenaram com um possível veto à cimeira de Los Angeles.
A rebeldia latina desnorteou uns EUA habituados ao “yes, sir” do sul. Numa conferência de imprensa, a porta-voz do governo, Jen Psaki, tentou parar esta reação em cadeia, afirmando que “ainda não havia uma decisão sobre os convidados” e que, por isso, os convites ainda não tinham sido enviados. Na página do Departamento de Estado dos EUA, as autoridades esforçavam-se por demonstrar toda a boa vontade. “Reiteramos o compromisso com um processo inclusivo que incorpore os contributos das pessoas e instituições que representam a imensa diversidade do nosso hemisfério e inclua as cozes indígenas e outras historicamente marginalizadas”, lia-se.
Durante um mês de convida-não-convida, a tal da “imensa diversidade” que o Departamento de Estado propalava caiu como baralho de cartas e os EUA acabaram por manter o veto aos três terríveis - Venezuela, Cuba e Nicarágua.
Cumprindo a palavra, o presidente do México, mas também os da Bolívia, El Salvador, Guatemala e Honduras não viajaram a Los Angeles, em protesto pela decisão unilateral dos EUA. Dos presidentes latino-americanos que foram à cimeira, muitos aproveitaram para pôr o dedo na ferida e exigir mudanças à OEA.
In your face
Minada desde o início, a Cimeira das Américas foi insossa e tímida, coincidem analistas de várias alas. Era a primeira vez em 28 anos que os EUA organizavam o encontro magno da OEA. Depois do consulado de Donald Trump, marcado por críticas de intervencionismo na América Latina, como o golpe de estado na Bolívia, Joe Biden apostava forte para recuperar influência nesta região cada vez mais acossada pela China. “Aconteça o que acontecer no mundo, a América sempre será a prioridade da Casa Branca”, garantiu o mandatário norte-americano no arranque da cimeira. As fissuras abertas pelas ausências presidenciais e as claras divisões entre o norte e o sul revelavam uma realidade muito diferente, deitando por terra a desejada operação de charme.
O ambiente à volta da cimeira também não ajudou. Durante a semana do evento, um sector dos media norte-americanos retaliou com força, desclassificando os presidentes que não picaram o ponto e atirando ao ar comentários impossíveis de digerir. “A ideia de que um país não queira vir quando os Estados Unidos o convida é impensável”, indignava-se uma comentadora da Fox News (sem grandes surpresas).
Também no terreno, o confronto era constante. Em painéis paralelos à cimeira, personagens como Luís Almagro, o Secretário-Geral da OEA, eram duramente atacados por ativistas. “OS EUA queriam saquear os recursos naturais da Bolívia, e o senhor ajudou-os a instalar uma ditadura para facilitar esse saqueio”, gritava um participante numa conferência. “E agora o senhor vem aqui dar uma palestra sobre a liberdade, democracia e os direitos humanos [em Cuba, Venezuela e Nicarágua]. Não tem vergonha! É um assassino e uma marioneta dos EUA!”, berrou antes de ser calado.
Nem sequer o Secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, foi poupado. Tomando como ponto de partida o assassinato em Israel da jornalista Shireen Abu Akleh (11 de maio deste ano), a repórter Abby Martin atirou-lhe à cara: “Estes são dois dos seus aliados no Médio Oriente: Arábia Saudita e Israel. Assassinaram jornalistas norte-americanos e não houve qualquer repercussão. E o senhor está aqui sentado a falar de liberdade de imprensa e democracia. Os Estados Unidos negam a soberania a dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo com sanções draconianas por eleger líderes que não lhes agradam. Mas por que não há nenhuma responsabilidade para Israel e Arábia Saudita?”
A confrontação dos EUA com os seus dois pesos e duas medidas na política internacional desfocou totalmente o esforço em realçar e política de bons vizinhos que Biden queria levar à cimeira. Na verdade, o evento foi uma oportunidade perdida de aproximação entre norte e sul. Não houve pactos unânimes e a falta de sintonia foi mais que evidente. Se algo demonstraram os dias da Cimeira das Américas é que o Rio Bravo é um enorme fosso, a sul do qual a desconfiança por Casas Brancas e afins é crónica.
Convidados incómodos
Muitos dos presidentes que numa primeira etapa ameaçaram não ir acabaram por viajar a Los Angeles. Sem grandes sorrisos ou nem palmadinhas nas costas, porém. Optaram por outra via: posar de cara fechada para a foto e mandar recados nos discursos oficiais.
A intervenção de Marcelo Ebrard, Secretário de Relações Exteriores mexicano, em representação de López Obrador, era um dos mais esperados. Foi direto ao ponto. “Ninguém tem o direito de excluir ninguém”, arrancou o diplomata, recalcando que o México “não aceita o princípio de intervenção para determinar quem vem e quem não.” Ao mesmo tempo, reforçou: “É incrível que ainda continuemos a ver bloqueios e sanções, mesmo durante a pandemia, a países das Américas, contradizendo o direito internacional e os objetivos que nos norteiam nas Américas. É evidente que a OEA e a sua forma de atuar estão esgotados. Basta ver o vergonhoso papel que teve no recente golpe de estado na Bolívia.”
Na mesma linha, o presidente da Argentina, Alberto Hernández, não esteve com meias medidas. “Ser país anfitrião não outorga a capacidade de impor um direito de admissão”, vincou, defendendo que “é preciso lançar as bases para impedir que, no futuro,” tal aconteça de novo. “Definitivamente teríamos querido uma outra Cimeira das Américas. O silêncio dos ausentes interpela-nos”, continuou.
Também o primeiro-ministro do Belize, Johnny Briceño, sublinhou que “é incompreensível que se isolem os países da América que contribuíram com lideranças fortes para a resolução de assuntos críticos dos nossos tempos”. As palavras do político ganham especial relevância por ser o líder atual do bloco de países caribenhos que esteve a nada de não ir à cimeira. Tal como Gabriel Boric, o recém-eleito presidente do Chile. No final, acabou por ir, não sem uma mensagem na bagagem: “Não me agrada a exclusão de Cuba, Venezuela e Nicarágua. A exclusão só fomente o isolamento e não dá resultados.” A mensagem geral é clara: nenhum país é menos país da América que os EUA. E os tempos em que Washington mandava e todos se calavam acabou.
A propósito, aqui no México nos últimos dias tem-se recordado um episódio que ficou conhecido por “comes y te vas” (almoças e vais-te embora) e que envolveu o então presidente mexicano, Vicente Fox, e o líder cubano Fidel Castro. Parece uma piada, mas não foi. Entre 18 e 22 de março de 2002, a cidade mexicana de Monterrey acolheu a Conferência Internacional sobre o Financiamento para o Desenvolvimento. Fidel tinha sido convidado pelas Nações Unidas, não havia como evitar a sua presença no México. Para tentar minimizar a sombra do líder cubano e o incómodo com os Estados Unidos, o presidente do México ligou ao velho revolucionário pedindo um favorzinho:
- Olha, podes vir na quinta-feira, para participar na sessão. Fazes a tua apresentação no espaço reservado a Cuba, à uma da tarde. Depois vamos ter um almoço que o governador vai oferecer aos chefes de Estado. Até te convido que venhas e te sentes ao meu lado. Mas quando terminar o almoço e a participação, peço-te que regresses.
- À Ilha de Cuba? – perguntou Fidel.
- À ilha de Cuba ou onde tu quiseres. Para que me deixes livre e não me compliques a minha sexta-feira – respondeu Vicente Fox.
- O senhor não quer que eu lhe complique a sexta-feira – respondeu o líder cubano – Muito bem, é que o senhor parece que não leu uma linha em que digo que vou com espírito construtivo, cooperar com o sucesso da conferência.
- Sim, sim, li essas linhas…
- Se a minha palavra não lhe deu segurança… Eu compreendo o que está envolvido nisto tudo, são coisas das quais não vamos falar. Já adivinhava que me ia ligar para dizer algo parecido. Mas, muito bem: estou disposto a cooperar consigo e a fazer o que me está a pedir.”
Vicente Fox agradeceu. Fidel cumpriu a palavra. Naquela quinta-feira, almoçou e foi-se embora. Deixou o presidente mexicano à vontade com George W. Bush e demais compadres.
Exatos 20 anos depois, um episódio do estilo “comes y te vas” entre Fox e Fidel seria impossível e a polémica da Cimeira das Américas é prova disso. A ressaca do desencontro entre gringos e latinos apenas começa e surge num momento em que a esquerda começa a ressurgir nos países da região. Em Washington, a dor de cabeça agudiza-se. Veremos se paracetamol será suficiente ou, como noutras ocasiões, optarão por algum remédio mais radical.