Ação de Graças, o luto do povo da Primeira Luz
É um ritual patriótico entranhado nos Estados Unidos. Desde o século XIX, o Dia de Ação de Graças relembra como uma “boa tribo” – os Wampanoags, o povo da “Primeira Luz” - ajudou uns “piedosos ingleses” a sobreviver às inclemências do “Novo Mundo”. Nos 400 anos deste encontro entre indígenas e forasteiros, a lengalenga de Ação de Graças é cada vez mais contestada. Nativos e historiadores revertem a história oficial e marcam este dia como o início de um genocídio brutal e incessante.
Os perus, pão de milho, abóboras, amoras e bolos são a cara feliz do dia de Ação de Graças. Nesta celebração fofa que Hollywood nos impinge, as famílias unem-se e abraçam-se; os bons cidadãos ajudam os pobrezinhos que não têm que comer; milhares desfilam pelas ruas das cidades. A festa celebra o amor ao próximo e prepara os estômagos e ânimos para o Black Friday na virada das 24 horas.
Oficialmente, a comezaina e arrebate de caridade têm origem lá no início da fundação dos EUA em terra indígena, quando o primeiro grupo de colonizadores europeus com intenções claras de assentar arraiais aportou às praias do que hoje é Massachusetts. Eram 102 e passaram para a História como os “pais peregrinos”. Era o ano de 1620.
Este grupo de homens, mulheres e crianças viajaram a bordo do navio do navio Mayflower, conta história, fugindo da intolerância religiosa na Inglaterra. A viagem transatlântica desde Plymouth foi, claro, epopeica, terrível, com perigos mil e resistência heroica. Superadas contrariedades sobre-humanas, chegaram finalmente em novembro desse ano às praias acolhedoras do que hoje é Plymouth (a gringa) na Inglaterra (a Nova).
O que os esperava não se parecia nada à terra prometida. Em pleno inverno rigoroso, aos poucos meses o frio e a fome mataram metade dos “pais peregrinos”. Foi no meio da calamidade que os Wampanoags entraram em cena. Em 1621, há exatos 400 anos, este povo nativo da região ensinou os recém-chegados a plantar feijão, abóbora e milho – a tríade sagrada do chão americano. As dicas salvaram o que restava dos viajantes, lançando a raiz de uma árvore genealógica de onde brotaram personagens como Katharine Hepburn, George W. Bush, Clint Eastwood e mais 35 milhões de pessoas (dos quais 10 milhões são norte-americanos), segundo a Sociedade Geral de Descendentes de Mayflower.
Foi deste resgate dos colonos moribundos que nasceu o ritual de Ação de Graças. O “Thanksgiving” assinala a suposta festarola com que os ingleses sobreviventes celebraram com a “boa tribo” a primeira colheita. A tradição foi-se mantendo e ganhando forma. Em 1863, Abraham Lincoln proclamou-a festa nacional, numa tentativa de unir um país estilhaçado pela guerra civil. Em 1941, no meio de outra guerra maior, Franklin Roosevelt converteu a party em feriado, fixando-a na quarta quinta-feira de cada novembro.
É quando se apagam as luzes da festa que surgem as sombras. E estas contam outra história. Este conto de irmandade, amor, harmonia e paz entre o bom colono e a amável tribo (desencantem-se) é uma brutal ilusão, gritam os Wampanoags e não só. Historiadores debatem há anos se os nativos foram sequer convidados para o banquete dos colonos ou se a reunião serviu apenas para estabelecer laços diplomáticos. Os povos originários relembram também que os “pais peregrinos” nem foram os primeiros europeus com quem contataram. Os Wampanoags conheciam desde 1524 o homem branco e as suas pestes que dizimaram entre 75 e 90% das dezenas de milhar de indígenas que viviam na região sul do atual estado de Massachussets.
Em 2014, também o jornalista Matt Juul escavou mais fundo na história oficial de como o dia se converteu numa festa oficial. O que encontrou estilhaça a balela da amizade fraternal. “Como dia festivo, o Dia de Ação de Graças começou em 1637, quando o governador de Massachusetts Bay Colony, John Winthrop, o proclamou para celebrar o regresso a são e salvo dos homens que lutaram contra os Pequot em Mystic, Connecticut”, cita um artigo da CNN. “Esta luta provocou a escravidão e massacre de mais de 700 homens, mulheres e crianças da tribo baseada na Nova Inglaterra e foi um sangrento percursor do que seriam séculos de lutas para os povos nativos nos Estados Unidos”.
Dia Nacional de Luto
A imposição sangrenta dos colonizadores sobre os nativos norte-americanos é, precisamente, o cavalo de batalha que os descendentes dos Wampanoags montam há décadas para desarmar a história oficial. Enquanto milhões de pessoas se empanturram, os descendentes dos que receberam os ingleses em 1621 alçam a voz nas ruas. “Para nós, o Dia de Ação de Graças é um dia de luto, porque recordamos os milhões de antepassados que foram assassinados por colonos europeus que ninguém convidou… Hoje, nós e muitos povos indígenas em todo o país dizemos ‘não, obrigado’ “. Palavras de Kisha James, integrante dos povos Aquinna Wampanoag e Oglala Lakota à National Public Radio.
A ativista é neta de Wamsutta Frank James, o fundador do “Dia Nacional do Luto”, que se celebra anualmente em cada Dia de Ação de Graças e que junta indígenas de todos os EUA. O movimento começou por acaso em 1970, quando se comemoravam os 350 anos do desembarque dos “pais peregrinos”. A organização tinha que integrar de alguma forma os Wampanoag e, para tal, convidou Wamsutta Frank James para discursar no banquete de ocasião. Havia apenas um senão: o ativista indígena tinha que entregar previamente o discurso para escrutínio dos organizadores.
O primeiro parágrafo não augurava nada de bom: “É com uma mistura de emoções que estou aqui para partilhar os meus pensamentos. Este é um momento de celebração para vocês, que festejam o aniversário de um começo para o homem branco nos Estados Unidos. Um momento de olhar para trás, de reflexão. É com grande pesar que olho para trás e vejo o que aconteceu ao meu povo”. E continuava: “Nós, os Wampanoag, demos-te as boas-vindas, homem branco, com os braços abertos, sem saber que 50 anos depois já não seríamos um povo livre”. O discurso prosseguia com um relato de horrores que incluía cenas de escravatura, assassinatos, de segregação, marginalização social, política e económica.
Foi um murro no estômago. Sem surpresas, os organizadores baniram as palavras de Wamsutta Frank James e pediram-lhe que escrevesse um novo texto – mais amável, não tão incendiário. O ativista negou-se e decidiu dar uma resposta contundente que perdurasse no tempo, mais além de um discurso incómodo. Com outros grupos indígenas, instituiu então o “Dia Nacional de Luto” como contraponto do Dia de Ação de Graças.
51 anos depois, o evento permanece vivo, obedecendo a um programa estrito que arranca com uma cerimónia espiritual. Os participantes percorrem as ruas de Plymouth, onde montam tribunas que falam sobre o passado e discutem temas que afetam as comunidades nativas na atualidade. Os manifestantes peregrinam ainda por lugares simbólicos, como o Post Office Square, onde, contam, os colonos exibiram num pau a cabeça de Metacom, líder Wampanoag que tentou congregar os vários povos da região para uma resistência organizada contra os ingleses.
Atualmente, o Dia Nacional de Luto faz cada vez mais ruído entre os norte-americanos em geral que começam a aperceber-se que “algo não está bem na história que lhes contaram “, comenta Kisha James. No entanto, inverter o esquema mental de “um mito inventado no século XIX e difundido pelas escolas de todo o país durante séculos é complicado“, contrapõe Linda Coombs, historiadora Wampanoag em conversa com El País. “O que nos ensinam é: índios e ingleses juntaram-se, tornaram-se amigos, foram felizes e comeram peru. Depois, os nativos, que nem sequer são nomeados, desaparecem. Fim da história. “
O que veio depois, é bem sabido, foi o começo de um peregrinar de séculos que continua atualmente. “Dizem que é um dia para agradecer. Agradecer? Que temos que agradecer? Que há 400 anos tínhamos a nossa própria terra e vivíamos à nossa maneira? Que nos forçaram a adotar o cristianismo?” Perguntas de retórica de Brian Moskwetah, presidente do Conselho Tribal dos Wampanoag de Mashpee, numa entrevista ao diário espanhol. “Para nós, esse momento marca a origem de um trauma histórico que persiste. Por coisas como essas, os índios têm os maiores índices de alcoolismo, toxicodependência e suicídio dos Estados Unidos”, indica.
Uma das feridas abertas é o roubo das terras indígenas. O litígio de séculos está longe de acabar e tem sofrido avanços e recuos ao sabor da dança de cadeiras na Casa Branca. Depois de um progresso com Obama, que reconheceu o direito da tribo a cerca de 120 hectares, e um impasse com Donald Trump, que quis reverter a decisão, o governo federal de Biden já reconheceu de forma definitiva a existência de duas famílias Wampanoag, os Mahspee e os Aquinnah. Assim como o direito a que a sua terra seja considerada uma reserva indígena nos termos da legislação do país.
Um direito ancestral, recordam os Wampanoag. Nada que agradecer.