Canto ao seu Amor Desaparecido

Quando um poeta, Zurita, canta o poema ‘Canto ao seu Amor Desaparecido’, transforma a sua voz rouca num talante de imprecação ritual destinada à memória do genocídio. Zurita uiva, contorce-se, sopra, enquanto agita a sua nuca de sacerdote de missa negra e o mal de Parkinson se acopla ao ritmo”. 

Maria Moreno em “Zapada Zurita”, prólogo de “Canto a su Amor Desaparecido”, Ediciones Universidad Diego Portales, Santiago, Chile, 2019

A obra de Zurita é atravessa pela memória dos desaparecidos e do pesadelo pessoal do poeta durante a ditadura de Pinochet (DR)A obra de Zurita é atravessa pela memória dos desaparecidos e do pesadelo pessoal do poeta durante a ditadura de Pinochet (DR)

Sábado de manhã e a sala de teatro está cheia. Trémulo, Raúl Zurita (Santiago, Chile, 1950), o poeta das palavras que resistem, faz uma pausa depois de uma entrevista séria. Pega nuns papéis, e comandante num enorme cadeirão de onde nunca se levantou, orquestra uma purgação brutal, com as memórias do Chile repressor a detonarem uma convulsão íntima e coletiva.

Corpo em movimentos involuntários de Parkinson, mas com a voz firme de quem acredita que a poesia ainda é uma possibilidade, lança-nos sem aviso uma bomba de fragmentação emocional (a tradução é livre, o original pode ler-se aqui; e aqui, a voz que é dele).

Canto ao Seu Amor Desaparecido

Agora Zurita - deixou-me – já que de puro verso e desgarro pudeste entrar aqui, nos nossos pesadelos. Podes-me dizer onde está o meu filho?

Aos paisanos

Às Mães da Praça de Maio

À Agrupação de Familiares que não aparecem

A todos os torturam, palomo [ingénuo] do amor, países chilenos e assassinos.

Canto ao seu Amor Desaparecido

Cantei, cantei de amor, com a cara toda banhada cantei de amor e os rapazes sorriram-me. Mais forte cantei, pus a paixão, o sonho, a lágrima. Cantei a canção dos velhos galpões de cimento. Uns sobre os outros, dezenas de nichos os preenchiam. Em cada um há um país, são como crianças, estão mortos. Todos jazem ali, países negros, África e sudacas [termo despectivo para sul-americanos]. Eu cantei-lhes assim a pena aos países, com amor. Milhares de cruzes estendiam-se até ao fim do campo. Inteira, à sua apaixonada, cantei assim. Cantei o amor:

Foi o tormento, os golpes e em pedaços nos partimos. Eu ainda te consegui 

ouvir, mas a luz terminava.

Procurei-te entre os destroçados,

falei contigo. Os teus restos olharam-me e eu abracei-te. Tudo acabou.

Não resta nada. Mas morta 

te amo e nos amamos, mesmo 

que ninguém o possa entender.

– Sim, sim, milhares de cruzes estendiam-se até ao fim do campo.

– Cheguei dos sítios mais longínquos, com toneladas de cerveja dentro e

– vontade de desaguar.

– Assim cheguei aos velhos galpões de cimento.

– De perto, eram quartéis retangulares, com os seus vidros partidos e cheiro a mijo

– sémen, sangue e muco, fediam.

– Vi gente desgrenhada, homens picotados de varicela 

– e milhares de cruzes na geleira, oh sim, oh sim.

– Movendo as pernas a todos esses podres tipos, invoquei.

– Tudo se apagara menos os malditos galpões.

– Rei, um perverso da cintura quis tomar-me, mas atirei sobre a relva aymara o número do

– meu guardião, e fugiu.

– Depois vendaram-me a vista.

– Vi a Virgem, vi Jesus, vi a minha mãe

– esfolando-me com golpes.

– Na escuridão procurei por ti, mas nada podem ver

– os rapazes lindos por baixo da venda dos olhos.

– Eu vi a Virgem, vi Satã e o senhor K.

– Tudo estava seco em frente aos nichos de cimento.

– O tenente disse “vamos”,

– mas eu procurei e chorei pelo meu rapaz.

–  Ai amor.

– Maldição, disse o tenente, vamos pintar um pouco.

– Morreu a minha miúda, morreu o meu rapaz, desapareceram todos.

Desertos de amor.

– Pegado às rochas, ao mar e às montanhas.

Pegado, pegado, às rochas, ao mar e às montanhas. 

– Percorri muitos lugares.

– Os meus amigos soluçavam dentro dos velhos galpões de cimento.

– Os rapazes uivavam.

– Vamos, chegámos onde nos diziam – gritei ao meu lindo

– rapaz.

– Pingando da cara me acompanhavam os Senhores.

– Mas não encontrei ninguém a quem dizer “bom dia”, só uns bruxos com Mauser apontando-me 

– uma bem sangrenta.

– Eu disse-lhes – estão loucos, eles disseram – não acredites nisso.

– Apenas se viam as cruzes e os velhos galpões cobertos de algo.

– Com um golpe de baioneta cortaram-me o ombro e senti o meu braço cair à

– relva.

– E com ele espancaram os meus amigos.

– Continuaram e continuaram, mas quando começaram a bater nos meus pais

– corri ao urinol para vomitar.

– Imensas pradarias se formavam em cada uma das arcadas, as nuvens

– partindo o céu e os morros, aproximando-se.

– Como te chamas e o que fazes, me perguntaram.

– Olha, tem um bom rabo. Como te chamas bom rabo, rapariga bastarda, me 

– perguntaram.

– Mas o meu amor ficou pegado às rochas, ao mar e às montanhas.

– Mas o meu amor, digo-te, ficou aderido às rochas, ao mar e às

– montanhas.

– Elas não conhecem os malditos galpões de cimento.

– Elas são. Eu venho com os meus amigos soluçando.

– Eu venho de muitos lugares.

– Eu venho chorando. Fumo com os rapazes.

– É bom para ver cores.

– Mas estão-nos a cavar em frente às portas.

– Mas tudo será novo, digo-te,

– oh sim, lindo rapaz.

– Claro – disse o guarda, há que arrancar o cancro pela raiz,

– oh sim, oh sim,

– O ombro cortado sangrava e era um cheiro estranho, o sangue.

– Ao dar a volta, veem-se os dois enormes galpões.

– Marcas de T.N.T., guardas e grossas cercas de arame cobrem os vidros partidos.

– Mas a nós nunca nos encontrarão, porque o nosso amor está 

– pegado às rochas, ao mar e às montanhas.

– Pegado, pegado às rochas, ao mar e às montanhas.

– Pegado, pegado às rochas, ao mar e às montanhas.

– Morreu a minha miúda, morreu o meu rapaz, desapareceram todos.

Desertos de amor.

Silêncio no auditório.

O eco desse refrão terrível no peito em choque.

Pegado, pegado a las rocas, al mar y a las montañas.

Pegado, pegado a las rocas, al mar y a las montañas. 

Caligamas de Canto a seu Amor Desaparecido. Nichos com nomes de países e regiões do Sul global, como urnas funerárias (DR)Caligamas de Canto a seu Amor Desaparecido. Nichos com nomes de países e regiões do Sul global, como urnas funerárias (DR) O eco da voz raspada de Zurita em esforço evidente, percorrendo de novo os galpões de cimento e terror de Pinochet – Três Álamos, Colonia Dignidad, Estádio Chile, Navio Escola Esmeralda, Villa Grimaldi, Estádio Nacional ou o Cargueiro Maipo, onde ele, resistente ao pesadelo, foi detido e torturado na madrugada do golpe militar de 1973, a que acabou com o sonho de Allende.

Pegado, pegado a las rocas, al mar y a las montañas.

Pegado, pegado a las rocas, al mar y a las montañas.

De olhos fechados com tanta força que arrugava a cara, dentes cerrados e a cabeça em agitação intensa de “não”, Zurita liderava com este grito de guerra a intensa purga com que eternizava os desaparecidos do mundo. Fundia-os em elementos perenes – as rochas, o mar e as montanhas – como uma vitória, uma sobrevivência terrenal que nunca foi, atirada à cara dos carrascos, esses sim, para sempre mortos e apodrecidos.

Pegado, pegado a las rocas, al mar y a las montañas.

Pegado, pegado a las rocas, al mar y a las montañas.

Pegado, pegado a las rocas, al mar y a las montañas.

A voz do poeta insistia numa fúria crescente no verso, até lá onde o verso já não se repete. Nem no guião, nem no poema nas suas múltiplas edições. 

Pegado, pegado a las rocas, al mar y a las montañas.

O delírio adiava até à última força da voz cansada o verso final e inevitável. 

Por fim, um silêncio súbito deixou o poema em suspenso. 

A pausa foi breve. O grito virou sussurro. Zurita abriu os olhos e olhou-nos de frente.

Murió mi chica, murió mi chico, desaparecieron todos,

Desiertos de amor.

Pouco a pouco reagimos. Houve palmas hesitantes e descompassadas, sabíamos do sacrilégio ao quebrar o silêncio do poeta. No desconforto de quem desperta de um sonho feito de silhuetas nós, público, diluímo-nos também em sombras. Na escuridão daquela sala do teatro, éramos todos caminhantes de uma marcha fúnebre. Seguíamos, atordoados, um féretro memorial onde cabiam todos os mortos e desaparecidos de uma loucura que vem de longe e que, recordou-nos Zurita, todos os dias usa sem pudor a máscara da “Verdade”.

Nem pena nem medo, ação poética de Zurita no deserto de Atacama, 1993 (DR)Nem pena nem medo, ação poética de Zurita no deserto de Atacama, 1993 (DR)

O canto das cinzas

A carga emocional de “Canto ao seu amor desaparecido” tornou-o uma das obras mais simbólicas de Raúl Zurita. A primeira edição faz exatamente 40 anos, foi publicada em 1985, em plena ditadura militar chilena. Numa vintena de páginas, o poema-caligrafia percorre um território de luto a partir da ferida aberta da tortura, dos desaparecimentos, da reparação física e espiritual negada aos que sobreviveram a regimes opressores.

A todos os ausentes, Zurita oferece-lhes aqui uma voz. Revive-os, conta-lhes a morte, ressuscita-os. Este é, pois, um memorial, onde o poeta inclui dois mapas toscos e desenhados à mão dos “galpões de cimento 12 e 13” – o Sul global mutilado, violado e silenciado e resistente.

Em cada galpão desta necrópole poética alinham-se nichos mortuários com o nome de regiões e países de África e de toda a América (alguns imaginados), ora perpetradores, ora varridos por ditaduras sanguinárias. Assim os descreve: “Dos Galpões 12 e 13. As lâmpadas preenchiam o caminho. Chorou-se todo o amor do pai e da mãe, e ao abrirem-se as portas a balada recomeçou, subindo de tom. Do seu amor desaparecido percorreu buraco após buraco, fossa após fossa, buscando os olhos que não encontra. De lápide em lápide, de choro em choro, foi pelos nichos, pelas sombras”. Com um lacónico “E foi assim:”, o poeta começa então o caminho pelos nichos, descrevendo-os um a um. 

Esta geografia faz de “Canto ao Seu Amor Desaparecido” um espaço simbólico onde os vivos podem finalmente nomear os mortos (os sem corpo, sem certidões de óbito nem justiça) e inscrever o nome de Estados delinquentes e assassinos, cúmplices, em lápides e túmulos.

O possível para um poeta que repete publicamente que “a poesia não pode parar uma ditadura, uma guerra, o trabalho escravo ou o narcotráfico, mas sem poesia nenhuma mudança seria possível”. “Se agora mesmo a poesia acabasse, a humanidade pereceria nos cinco minutos seguintes. Isto é literal, não é uma metáfora”.

Esta fé inabalável na palavra arrebata o final de “Canto ao Seu Amor Desaparecido”.  Uma inesperada afirmação de vida depois de taciturnas páginas de angústia. Como um canto que se ouve entre as cinzas. 

O poema Verás, projetado em 2024 durante toda a noite, era apenas visível desde o mar (DR)O poema Verás, projetado em 2024 durante toda a noite, era apenas visível desde o mar (DR)

CANTO DE AMOR AOS PAÍSES

Lembras-te chileno, do primeiro abandono quando criança?

Sim, diz.

Lembras-te do segundo, já aos vinte e tantos anos?

Sim, diz.

Sabes chileno e palomo, que estamos mortos?

Sim, diz.

Recordas então o teu primeiro poema?

Sim, diz.

Diz sim, diz sim sim sim siiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiooooooooooooooooo

Oooooooooooooooooooooooooeeeeeeeeeeeeiii

Iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiioooooooooooooooaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

la                  la

la

A noite canta, canta, canta, canta

Ela canta, canta, canta debaixo da terra.

Aparece então!

Levanta-te nova, por entre os paisanos mortos

chilenos, karatecas, somozas e traidores

levanta-te e lança de novo o seu voo e canto

que só por ti paisano voa, canta e toma forma

sim, devolve-lhe o mais poeta e chorado

desaparecido do amor

palomo e mau

Sim, diz.

O poeta é considerado uma das vozes literárias mais importantes da literaratura em espanhol (Miguel Sayago)O poeta é considerado uma das vozes literárias mais importantes da literaratura em espanhol (Miguel Sayago)

A justa-contra-posição da palavra

A tragédia de 11 de setembro de 1973 no Chile – o bombardeamento de La Moneda, o suicídio de Salvador Allende, a instauração da ditadura militar – é o substrato de Zurita como escritor. “A sua obra inteira parece construir-se a partir da necessidade de falar como um ventríloquo pela boca morta dos desaparecidos, mas também de nomear em primeiríssima pessoa o inferno pessoal e coletivo”, sintetiza Mariana Di Ció em “O Poema como memorial da dor”.

Nesse dia começou então o seu caminho poético e pessoal contra o “delírio dos que falam a partir do lugar da verdade, ignorando que a verdade não é mais do que a cara mais cruel e sanguinária da mentira”. Uma luta em que ainda insiste: “A verdade criou Auschwitz, a verdade criou Hiroshima, a verdade chama-se hoje o horror, o massacre e genocídio do povo palestiniano”, escreveu em 2023 na conta de X. 

Com esta bandeira, Zurita e a sua geração recorreram nos anos da ditadura chilena à justa-contra-posição das palavras como arma. Em “Um mar de pedras” (2018), o autor narra: “A partir do momento em que a própria ditadura se chamou a si mesma de ‘governo autoritário’, há uma luta no território concreto da linguagem. A linguagem é a primeira zona, o primeiro terreno de batalha. Uma vez instalada a ditadura, o primeiro que faz é tentar dar um novo sentido a todas as palavras, além de conceber a história do Chile e uma maneira de criar heróis”. 

Ciente desta subversão, em 1979, Zurita cofunda o Coletivo Ações de Arte (CADA), um grupo mítico de resistência que interveio durante anos no espaço urbano com imagens e performances que questionavam a vida no Chile ditatorial. Com os dois primeiros livros, “Purgatorio” e “Anteparaíso”, deu um passo em frente, abrindo novas possibilidades formais à literatura chilena e à resistência artística.

As ações de protesto empreendidas por Zurita contra a ordem vigente não raramente foram polémicas. “Em Zurita tudo é sacrifical até chegar ao corpo”, recorda María Moreno. Em 1975, depois de ser detido e humilhado por uma patrulha militar, queimou a cara com um ferro em brasa, que lhe deixou um vale profundo na face. Em 1979, lançou amoníaco (ou algo parecido) aos olhos. 

Anos depois, Zurita retiraria muito do romanticismo que estes episódios ganharam com o tempo. “Queimar-me a cara em 1975 serviu para rearmar-me e formar-me como pessoa. E o amoníaco nos olhos [em 1979] foi uma tentativa real para cegar-me, mas que não funcionou, felizmente, já que muito mais forte foi o impulso de fechá-los no momento de lançar-me o amoníaco. E nem foi ácido. Se fosse, teria deformado a cara. Esta vontade de cegar-me tinha muito a ver com a situação chilena e com um projeto de escrever no céu”.

Ideia que concretizaria anos depois, com os olhos bem abertos. Em 1982, o desejo de transgredir o signo linguístico, levou Zurita a escrever com fumo de branco de cinco aviões, o poema “La vida nueva” no céu de Nova York. Cada verso com quilómetros de longitude, e em espanhol, em reconhecimento das minorias do mundo. Sem tradução, portanto.

Poema La Vida Nueva, de Zurita, nos céus de Nova Iorque, 1982 (DR)Poema La Vida Nueva, de Zurita, nos céus de Nova Iorque, 1982 (DR)Raui Zurita foi detido na madrugada do golpe militar que derrubou Allende, a 11 de setembro de 1973 (DR)Raui Zurita foi detido na madrugada do golpe militar que derrubou Allende, a 11 de setembro de 1973 (DR)

LA VIDA NUEVA

MI DIOS ES HAMBRE

MI DIOS ES NIEVE

MI DIOS ES PAMPA

MI DIOS ES NO

MI DIOS ES DESENGAÑO

MI DIOS ES CARROÑA

MI DIOS ES PARAÍSO

MI DIOS ES CHICANO

MI DIOS ES CÁNCER

MI DIOS ES VACÍO

MI DIOS ES HERIDA

MI DIOS ES GHETTO

MI DIOS ES DOLOR

MI DIOS ES MI AMOR DE DIOS.

As performances de poesia-ação de Zurita continuaram. Em 1993, escavou permanentemente no deserto de Atacama, no Chile, “NI PENA NI MIEDO” (NEM PENA NEM MEDO) – poema de um só verso com três quilómetros, apenas visível do ar. 

No ano passado concretizou mais uma ideia antiga. No mês de março, Zurita projetou com feixes de luz o poema “VERÁS” nos alcantilados do norte do Chile. Um a um, os 22 versos iluminaram-se, espaçados, ao longo de uma noite, a 800 metros de altura. Eram visíveis apenas a partir do mar. Foram recitados ao vivo pelo poeta, que os descreveu como “imagens do que um ser humano verá na sua passagem pela Terra”.

VERÁS

VERÁS UM MAR DE PEDRAS

VERÁS MARGARIDAS NO MAR

VERÁS UM DEUS DE FOME

VERÁS A FOME

VERÁS UM PAÍS DE SEDE

VERÁS CUMES

VERÁS O MAR NOS CUMES

VERÁS ESFUMADOS RIOS

VERÁS AMORES EM FUGA

VERÁS MONTANHAS EM FUGA

VERÁS ERRATAS INDELÉVEIS

VERÁS A ALVA

VERÁS SOLDADOS NA ALVA

VERÁS AURORAS EM SANGUE

VERÁS APAGADAS FLORES

VERÁS FROTAS AFASTANDO-SE

VERÁS AS NEVES DO FIM

VERÁS CIDADES DE ÁGUA

[Os últimos versos apareceram e disse-os ao nascer do sol.]

VERÁS CÉUS EM FUGA

VERÁS QUE SE VAI EMBORA

VERÁS NÃO VER

E CHORARÁS

“E CHORARÁS” ficou suspenso no alcantilado até o sol nascente eclipsar por completo a projeção do feixe de luz. “Ao contrário dos poemas traçados no céu e no deserto, que são obras diurnas, esta é uma obra do crepúsculo e da noite. Se trabalhei até ao limite do possível, com a minha vida, também devo trabalhar com a imagem da minha morte. Quando tudo terminou, apenas restou o som do mar”, disse Zurita.

Há ainda um sonho pendente. “Queria escrever um poema nos paredões de gelo da Antártida”, revelou em entrevista em maio deste ano à agência EFE. Não sabe se terá “forças para o fazer”, mas o poema já tem nome e versos.

Poema Final

Então, esmagando a face queimada

Contra os ásperos grãos deste solo pedregoso

Como um bom sul-americano

Levantarei por um minuto mais a minha cara ao céu

Como uma mãe chorando

Porque eu que acreditei na felicidade

Terei voltado a ver de novo as radiantes estrelas.

Verso do poema Verás, projectado nos alcantilados do norte do Chile, em 2024 (DR)Verso do poema Verás, projectado nos alcantilados do norte do Chile, em 2024 (DR)Zurita nasceu numa família pobre do Chile, em 1950 (DR)Zurita nasceu numa família pobre do Chile, em 1950 (DR)

por Pedro Cardoso
Mukanda | 2 Junho 2025 | Chile, poesia, Raúl Zurita