Peabiru, o Caminho da Terra sem Mal
Em terra sul-americana as veredas rituais – simbólicas ou físicas – são passagens sagradas. A norte, o Caminho da Anaconda é fonte de vida. Mais a sul, os Caminhos do Peabiru são mistério e lenda de incas, guaranis e kaigangs, os povos que o construíram. São mais de quatro mil quilómetros de uma imensa teia interoceânica de “caminhos de relva amassada” – “Peya Beyu” em tupi-guarani, da qual deriva o nome atual.
Os restos pouco visíveis desta rota não ajudam a identificar uma origem temporal precisa, como escreve Catherine Balston em “O Caminho do Peabiru: a antiga e misteriosa rota indígena de milhares de quilómetros que conecta o Atlântico ao Pacífico”. “Algumas teorias situam o início à volta do ano 400 ou 500 da era cristã. Outras sugerem que se remonta até há 10 mil anos, à época dos paleoamericanos”. Outras ainda, as mais referenciadas, atiram para 3 mil anos atrás. Sem um momento zero formal, o certo é que a enorme rede se construiu ao longo de um tempo mítico.
Já quanto ao traçado, um conjunto de mapas, registos coloniais e histórias orais permitiram reconstruir uma rota genérica e geralmente aceite pela academia. Crê-se que Peabiru partia de dois pontos distintos na costa do atual Brasil (estados de São Paulo e de Santa Catarina), que confluíam em Paranaguá, no Paraná. Dali, seguiam para o Paraguai até Potosí e o lago Titicaca, na Bolívia, e chegavam a Cusco. Por caminhos pré-incas e incas, desciam da capital imperial pelos Andes, passavam pelo litoral do Perú e terminavam no norte do Chile.
Segundo a descrição dos guaranis e de documentos do século XVI, compunham a rota caminhos largos entre 1,5 a 2 metros, forrados por gramíneas que impediam o crescimento de mato (a tal “relva pisada”). Moldavam-se às feições naturais do terreno e da geografia, percorrendo florestas tropicais, campos abertos, rios caudalosos e serras elevadas.
As lendas guaranis contam que os caminhos reflectem na Terra a Via Láctea (Getty Images - BBC Mundo)
Os caminhos dirigiam-se ao paraíso mitológico guarani da Terra sem Mal (Projecto Caminhos de Peabiru)
Na sua conceção e orientação, mantinham uma profunda conexão com a cosmologia indígena. Os Caminhos do Peabiru acompanhavam o movimento solar, sentido nascente-poente, e contam as lendas que eram uma representação da Via Láctea. Para os guaranis, que habitam há milénios em partes do Brasil, Argentina, Paraguai e Bolívia, esta rede espiritual e física era o caminho sagrado para o lugar mitológico onde viviam os seus deuses – o Yvy MarãEy, a Terra sem Mal.
Espiritualidade ritual
O Peabiru era, assim, uma obra coletiva, fruto da necessidade de troca e da visão de mundo dos povos originários. Uma via por onde se transmitiam símbolos, mitos e cosmologias, pontuada por locais de culto e de oferenda e por espaços de encontro ritualístico. “Para além de ter sido construído seguindo a malha magnética do planeta, é praticamente um mapa para ser visto de cima, onde as avenidas mais largas, assim como os ramais, chegavam diretamente às várias construções conhecidas hoje como fortes-estrela”, descreve Urandir de Oliveira, presidente da Associação Dakila Pesquisas no site da Secretaria de Turismo e Viagens do Estado de São Paulo.
Esta configuração alinha-se à teoria (não confirmada) de vários pesquisadores para quem o caminho tinha uma função essencialmente religiosa, facilitando as migrações ritualísticas de guaranis, sobretudo, e também de incas.
Se esse foi o objetivo principal, não foi o único uso. Os historiadores confirmam que este sistema promoveu alianças políticas, casamentos entre diferentes povos, partilha de territórios e negociações de paz. E claro está, teve uma importante dinâmica comercial, com a circulação continental de produtos de diferentes zonas e ecologias, como milho, mandioca, tabaco, batata-doce e algodão.
Caminhos invisíveis
Quando os europeus chegaram à América do Sul, no século XVI, encontraram o Peabiru em pleno funcionamento. Contam as crónicas que o português Aleixo Garcia foi o primeiro forasteiro a percorrer estes caminhos de costa a costa.
O marinheiro naufragou em 1516 no sul do Brasil, a bordo de uma expedição espanhola que rumava ao Rio da Prata. Acabou por ser acolhido por guaranis da região. Segundo a investigadora brasileira Rosana Bond, autora de “A Saga de Aleixo Garcia”, citada no artigo de Catherine Balston, “oito anos mais tarde, depois de ouvir as histórias sobre um caminho que conduzia a um império nas montanhas, rico em ouro e prata, Garcia viajou com dois mil guerreiros guaranis até aos Andes, a quase três mil quilómetros de distância”. O “marinheiro português tornou-se, assim, no primeiro europeu conhecido a viajar ao Império Inca, em 1524, quase uma década antes do espanhol Francisco Pizarro, a quem se atribui a ‘descoberta’”…
… e a matança. “As lendas de El Dorado e da Sierra de la Plata”, continua, “levaram espanhóis e portugueses a atravessar o Atlântico, e alguns grupos indígenas ajudaram-nos a penetrar no interior do continente ao longo dos Caminhos do Peabiru (…) Conhecer as principais rotas e trilhos através das populações nativas tornou-se uma vantagem estratégica, ampliando a pilhagem, destruição e cobiça de novos territórios e riquezas minerais”. “O caminho espiritual dos guaranis para o paraíso tornou-se um caminho rápido para as riquezas dos invasores europeus em expedições ao Novo Mundo, que acabariam por levar ao genocídio das populações indígenas da América do Sul”, relata Rosana Bond.
Nos tempos que se seguiram, a invasão de conquistadores espanhóis, colonizadores portugueses, jesuítas, bandeirantes, comerciantes e “desbravadores” ditaram o declínio do Peabiru. No século XX, a atividade agrícola, o desmatamento, a exploração da madeira, da terra e de outros recursos naturais, para além da construção de estradas e cidades, deram o golpe final a um sistema já decepado, que sobreviveu essencialmente na memória oral transmitida entre gerações.
Recuperação da memória em pacote turístico
A partir da década de 70, multiplicaram-se no Paraná expedições arqueológicas em busca dos rastos do Peabiru. Hoje, várias iniciativas na América do Sul procuram recuperar a rota como símbolo de identidade e integração. No Mato Grosso do Sul, estado também na passagem dos caminhos, o projeto “Peabiru Vivo” integra investigação arqueológica, atividades educativas e envolve escolas públicas na reconstrução de memória, ligando-a ao património guarani contemporâneo. Em São Paulo, também se tenta recuperar e revitalizar os trilhos que passavam originalmente pelo centro da cidade.
Grupos locais em Peabiru criaram rotas pedestres inspiradas no Caminho de Peabiru (Catherine Balston)
Igreja da cidade de Peabiru, criada há 80 anos no Paraná (Getty Images - BBC Mundo)
Hoje, como antes, o Paraná é o centro nevrálgico do Peabiru. Neste estado, o Projeto Caminhos do Peabiru sinaliza, estuda e promove trechos preservados do caminho, envolvendo comunidades indígenas, académicos e operadores de turismo cultural e de natureza. A iniciativa inclui caminhadas históricas e “ecológicas”, palestras, sinalização e centros de interpretação em municípios como Paranaguá e Ponta Grossa.
No total, esta rota turística paranaense percorre 2.200 km, desde a costa até à fronteira com o Paraguai – país onde pesquisadores da Universidade Nacional de Asunción também estudam ramificações que atravessavam o território paraguaio em direção ao altiplano boliviano.
Face à destruição dos caminhos desde a colonização, a rede de caminhos pedestres que as agências de turismo promovem são uma “aproximação, no melhor dos casos, de onde poderia ter estado a rota original, apesar de haver mais certeza sobre alguns tramos, especialmente os referenciados em mapas históricos e onde existem locais arqueológicos”, indica Catherine Balston.
O traçado exato talvez seja um detalhe menor. Para as comunidades locais, a recuperação do Peabiru é uma importante fonte de ingressos, é certo, mas constitui acima de tudo um ato de afirmação identitária. “Caminhar pela Trilha Peabiru, combinado com atividades educativas, pode ser uma ponte para uma compreensão completa do passado colonial da América do Sul, da sua biodiversidade e do conhecimento indígena”, indica à BBC Mundo Claudia Parellada, coordenadora do departamento de arqueologia do Museu Paranaense de Curitiba.
Esta equação turismo + recuperação + redescobrimento pode funcionar, mas há importantes sinais de alerta a ter em conta, adverte o historiador e professor Clóvis Antônio Brighenti, em “Rota Transcontinental Caminhos de Peabiru”: “É importante para nós, como humanidade, sabermos da história de nossos antepassados, mesmo que não parentes sanguíneos, mas parentes pela condição humana. Saber que não somos os mais desenvolvidos – muito pelo contrário, somos a geração que mais tem destruído o planeta e que muito pouco aprende dessas sociedades antigas. Alguns desejam reabrir o caminho [do Peabiru] para fins de turismo, como ocorre com o Caminho de Santiago de Compostela, em Espanha. A minha opinião é que se tiver caráter puramente turístico para alguns lucrarem com isso, melhor não continuar as pesquisas, porque estariam a contrariar as origens do próprio caminho”.
Os trilhos dos Caminhos do Peabiru estendiam-se ao longo de 4 mil quilómetros (Projecto Caminhos de Peabiru)
Pelos caminhos, encontram-se ainda hoje artefactos pré-colombinos (Catherine Balston)
Rota no estado do Paraná, início dos Caminhos do Peabiru (Projecto Caminhos do Peabiru)