Contratados, colonos e emigrantes cabo-verdianos

Angola, terra longe

Chegaram a Angola há cem anos. Assistiram à decadência de um poder colonial que os instrumentalizou e ao nascimento da nação angolana. A memória dos imigrantes cabo-verdianos no nosso país conta uma história de opressão e resistência que o sociólogo crioulo Nardi Sousa resgatou e vai lançar em livro.

Cabo Verde e Angola têm uma história comum. Episódios de um império criado por caravelas e derrubado por lutas ombro a ombro. Mas há um outro elo, o emocional, que liga os dois países há precisamente um século e um ano quando, em 1914, chegaram a terra angolana os primeiros imigrantes das ilhas de que há registo. Eram pouco mais de noventa.

Crioulos em terras austrais, cujo percurso o sociólogo cabo-verdiano Nardi Sousa resgatou e publicará no livro “Contratados e Povoadores Cabo-verdianos em Angola: Serviçais, Segundos Europeus ou Imigrantes (1947-1973)”. “Acredito que Angola é o país onde os cabo-verdianos melhor se adaptaram no mundo”, atira o académico em entrevista à Austral. Afirmação que ganha uma dimensão ainda maior se pensarmos que este “mundo ” é amplo e diverso. A universalização crioula é epopeica, e hoje há mais cabo-verdianos em países como Portugal, Holanda e Estados Unidos do que nas próprias dez “ilhas da morabeza”. 


Nos anos em que viveu em Luanda (2003 a 2009), Nardi fez a sua pesquisa de campo, e sentiu na pele a que diz ser “a forte integração dos cabo-verdianos no meio social angolano”. “São muitos os casamentos mistos. Basta ir ao Prenda, São Paulo, Sambizanga, Boavista, bairros onde vive a maior parte dos cabo-verdianos de Luanda e os seus descendentes, e ver a forma como se relacionam com os angolanos”, observa o agora professor da Universidade de Santiago, em Cabo Verde.

 

“Ramadiado dja caba na Angola”

Num Cabo Verde que é música pura, o mítico Codê di Dona retratou, com a sua sabedoria popular aguçada, a relação histórica dos ilhéus com Angola.  No clássico “Febri di Funaná”, este músico escala alguns dos destinos da emigração cabo-verdiana ao longo dos tempos.

Canta Codê!

“Qui tem dinheiro dja cá ba Holanda

Qui s’ta na djeto dja cá bá Lisboa

Ma ramediados dja cá bá Angola

Dizanimadus dja cá santa Praça”.

A partir da Cidade da Praia, o jornalista José Vicente Lopes traduz-nos: “Quem tem dinheiro já embarcou para a Holanda/ Quem tem algum já embarcou para Lisboa/ Os remediados já embarcaram para Angola/ Os desanimados assentaram praça”, ou, como explica-nos, “foram para a tropa”.

Com maior ou menor capacidade económica, para muitos cabo-verdianos a emigração chegou a ser questão de vida ou morte. Nos anos 40 do século XX, o arquipélago sofreu um ciclo de secas e fomes particularmente devastador que matou quase metade da população da então colónia. Estatística fria, brutalmente humanizada em “Famintos”, do escritor Luis Romano: “O silêncio apoderava-se de tudo: das fazendas, das aldeias, das casas dispersas que lembravam os nomes dos que partiram ou ficaram sepultados a esmo e os que os passarões teimavam em desenterrar”.

Esfomeados, muitos cabo-verdianos lançaram-se na que foi a primeira grande vaga de emigração forçada para Angola. “O regime precisava aliviar a pressão demográfica em Cabo Verde onde a densidade populacional, 319 habitantes por quilómetro quadrado, dificultava a gestão dos recursos em alturas de crise e seca”, comenta Nardi Sousa. Mas, assegura, a transferência planeada de população cumpria um objectivo mais: “Para o regime, o cabo-verdiano contava-se entre os povos mais instruídos do ‘império português’. Era considerado ‘civilizado’, ‘não indígena’ e perfeito intermediário entre os africanos e os europeus. Basicamente, as autoridades coloniais aproveitaram a mão-de-obra crioula para o cumprimento dos seus interesses em Angola”.

Para tal, aplicaram uma estratégia de “lavagem cerebral”. ” Prometiam aos contratados boas condições de vida, salários atractivos, o que era um enorme engano”, conta o autor. Ao chegar a Angola, eram transferidos para as terras da Companhia Agrícola de Angola na Catumbela e no Cuanza Sul. Outros iam para as Lundas, contratados pela Diamang, a empresa colonial de diamantes e, em menor escala, para as plantações de café e algodão do Uíge. Alguns, “muito poucos”, conseguiram escapar e instalar-se em Luanda. “A cidade era um importante pólo comercial, o que atraía os cabo-verdianos, que não estavam minimamente preparados para a actividade agrícola”, explica.

Povoamento crioulo

A época dos contratados arrastou-se até inícios dos anos 60 quando, depois do 4 de Fevereiro, as autoridades portuguesas reformularam a sua política colonial. Aos emigrantes cabo-verdianos deram-lhes um novo estatuto: “colonos” ou “povoadores”. Em 1962, temporiza Nardi Sousa, “chegaram os primeiros 197 povoadores cabo-verdianos. Vinham das ilhas do Fogo e da Brava.” Criaram-se, então, 25 colonatos crioulos dispersos pelas províncias do Bié, Moxico, Uíge, Cuanza Norte e na Mabuia, província do Bengo.

Numa sociedade repressiva, os “candidatos a colono” necessitavam da luz verde do governador de Cabo Verde e da Junta de Povoamento para emigrar. Já em alto mar, “eram informados pelas autoridades portuguesas sobre a melhor forma de obter terrenos e de manter um clima de boa vizinhança. Indicavam-lhes como se deviam comportar, agora que não eram mais contratados, mas sim colonos. Isso implicava a aceitação da unidade do império”, reflecte a investigação de Nardi Sousa. Inseridos nesta lógica colonialista, “entre 1961 e 1963, alguns cabo-verdianos aderiram à Organização Provincial de Voluntários e da Defesa Civil de Angola, cometendo muitos abusos contra angolanos”, aponta o académico. Um período negro das relações daqueles tempos entre os dois povos, marcadas por constantes “aproximações e fricções.”

É também desta época a chegada de quadros cabo-verdianos a Luanda para trabalhar na administração pública da colónia. Um deles, Silva Tavares, chegou a ser Alto Comissário e Governador-geral de Angola. “Portugal pensava que, com a presença maciça de estrangeiros, Angola nunca se tornaria independente”, resume o sociólogo natural do Tarrafal de Santiago. A estratégia não resultou e, em 1968, a Junta de Povoamento abandonou a estratégia de colonização crioula de Angola.

 

Independências cruzadas

Os quase 30 anos de emigração crioula para Angola deixaram marcas que os historiadores tentam esclarecer. Nardi Sousa não entra em polémicas e é contundente: “os cabo-verdianos foram instrumentalizados por Portugal, o que criou a percepção de que eles eram o braço direitos das autoridades coloniais”.

No entanto, diz, “os cabo-verdianos tinham fricções não só com os angolanos, mas também com as autoridades portuguesas. Chegavam até a bater nos guardas coloniais, em defesa da sua dignidade.” “O cabo-verdiano rejeitou peixe podre, fuba podre, comer com colher e prato de pau, chicote, cortar o cabelo das mulheres como castigo, as cordas nos pés dos contratados angolanos. Muitos cabo-verdianos enfrentaram o regime, também a favor dos angolanos”.  “N ca ta nhó”, diziam aos cipaios, uma expressão que, em crioulo de Cabo Verde, é uma negativa rotunda. Algo como “eu não faço isso, senhor!”. Tantas e tantas vezes o repetiam, que os angolanos passaram a conhecê-los por “catanhós”, termo que ainda hoje é bastante comum.

Ao mesmo tempo, sobretudo a partir de 1966, “a consciência” de que estava a ser usado como peão pelo regime “generalizou-se” entre o núcleo cabo-verdiano em Angola. E o que os alertou? “A disseminação da luta do irmão angolano pela independência”, afirma Nardi Sousa. A partir desse momento, “muitos crioulos passaram a apoiar o MPLA, cujos ideais e objectivos eram muito semelhantes aos seus. Um grande número deles chegou a alistar-se para lutar pela libertação de Angola.”

Com a História em aceleração, o surgimento em Angola do cabo-verdiano Amílcar Cabral, o mítico líder do Partido Africano de Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), ajudou a este despertar. “Ele passou várias vezes por Angola como agrónomo, e aproveitou para fazer um trabalho de consciencialização para a causa da independência de Cabo Verde e de Angola junto das comunidades”, conta Nardi Sousa.

Depois de muitas lutas, a 5 de Julho 1975 Cabo Verde declarava finalmente a sua independência e demonstrou. Por essa altura, Angola via-se a braços com um futuro incerto. Após a invasão sul-africana do território angolano, o recém-criado governo crioulo, liderado por Aristides Pereira, estendeu a mão a Agostinho Neto. Numa reportagem sobre as relações entre os dois países, publicada no jornal cabo-verdiano “A Semana”, em 2005, Aristides Pereira relembrava: “na altura, Cabo Verde criou um corredor aéreo que permitia às forças cubanas viajar da ilha do Sal para Luanda. Foi um risco que tomámos, porque contrariava todas as posições do Ocidente, mas não tivemos opção, em nome da solidariedade com Angola”. Dois países irmãos de armas, desde então.

Cidadania camuflada

Para lá do xadrez político, a independência angolana marcou um ponto de viragem na história dos cabo-verdianos no país. O historiador crioulo António Carreira contabilizou que, “entre 1974  e 1975, cerca de sete mil cabo-verdianos pretendiam voltar para Cabo Verde”, cita Nardi Sousa. “Integravam-se na cultura administrativa portuguesa pelo que a incerteza sobre o futuro era grande”, explica. “Na altura, um jornal dizia que havia em Angola cerca de 40 mil trabalhadores crioulos que serviam a economia colonialista. Carreira aponta 20 mil”. Apesar de tudo, confirma, “a maior parte ficou”.

Nos anos seguintes, muitos naturalizaram-se angolanos vivendo uma espécie de “cidadania camuflada”. “Temos pessoas da comunidade que são bastante influentes nas altas esferas políticas, quadros técnicos de diversas áreas que, durante a guerra civil procuraram não revelar a sua origem para evitar estigmatização”, aponta.

Mas as raízes não se podem esconder e “começam a ser novamente valorizadas”, constatou o sociólogo no terreno. A culpa é da intensa convivência cultural entre os dois países, sobretudo através da música. Relação celebrada por Paulo Flores e Tito Paris; por Bonga e Cesária Évora no hino “Sodadi”; pela própria Cize no eterno refrão “Angola, Angola, oi qu’povo sabe “. Música de Ramiro Mendes, dos Mendes Brothers, também autor do famoso “De Cabinda ao Cunene”, adaptado por músicos angolanos como Nanuto. Relações íntimas que incluem a crioula Mayra Andrade, que viveu em Luanda quando era criança, a angolana Tina Duarte, residente na ilha de São Vicente e tantos outros.

Na capital angolana, também o Bairro do Prenda mantém essa alma crioula que o criou. Ali assentaram-se contratados cabo-verdianos vindos de São Tomé e surgiram lugares icónicos como o desaparecido Salão Biúca, lugar de farras de Bana e Luís de Morais, dois gigantes da música da ilhas. O mercado do Prenda continua também a ser um lugar repleto de descendentes dos primeiros emigrantes insulares, onde se ouve o “papiar” de várias ilhas.

E como não recordar o quintal do Ti Jorge, na Chicala, onde se juntaram noites e noites a fio, angolanos e crioulos? Um espaço encerrado há poucos anos, onde dominava a música cabo-verdiana interpretada pela voz imperial do também desaparecido Pedro Rodriguez, o grande “Maiuca”. Símbolos inesquecíveis de dois países em fusão.

 

Cuca, feijão e Morabeza

A relação entre Angola e Cabo Verde é forte e solidária. Em Cabo Verde, a Cuca foi famosa nos anos 70. Assim como a farinha de mandioca, antes  importada de Angola. A chamada “farinha de pau” misturava-se com açúcar ou acompanhava o atum e a cavala.

De Benguela, chegavam às ilhas milho e feijão. Em entrevista ao jornal A Semana, o antigo presidente  da entretanto extinta Agência Nacional Alimentar de Cabo Verde, António Monteiro, contou um episódio caricato: “Em 1977, Angola doou-nos de uma só vez 10 mil toneladas de feijão. Não tínhamos capacidade para armazená-lo, então, para que não se estragasse, tivemos de exportar o excedente”. Com a guerra civil em Angola, foi a vez de Cabo Verde ajudar Luanda, sobretudo com medicamentos da Emprofac e confecções da empresa Morabeza.

Este “djunta mon” (inter-ajuda, em crioulo)  nunca mais cessou. Durante a recente erupção do vulcão da ilha do Fogo, Angola enviou toneladas de produtos para ajudar à reconstrução das comunidades destruídas pela lava. 

 

Fotos: Arquivo Austral, Pedro Cardoso e Germano Liberato.

Artigo publicado originalmente na revista Austral nº 110.

por Pedro Cardoso
A ler | 20 Julho 2015 | cabo-verdianos, colonos, contratados, emigrantes