Grita Colômbia
A Colômbia está há 34 dias nas ruas, em protesto fogo-vivo contra um sistema político, económico e social decadente. A repressão das forças policiais matou até hoje pelo menos 47 pessoas. Centenas desapareceram, milhares foram presas arbitrariamente. A luta contra a desigualdade e a pobreza continua, em estado de alerta. Operários, camponeses, indígenas, estudantes e uma classe média cada vez mais vulnerável gritam lado a lado. Dia após dia, a Colômbia exige um novo rumo.
Cali virou um inferno. Na última sexta-feira, quando se assinalava um mês exato do início das manifestações na Colômbia, a brutalidade policial atingiu um nível sem precedentes. A terceira maior urbe do país foi varrida por gritos de ordem, fumo e fogo, tiros, sirenes e luzes de ambulâncias, por morte. Nessa noite, pelo menos quatro pessoas foram assassinadas nas ruas da cidade, aumentando o número de mortos destas manifestações para 47.
A loucura tomou conta desta cidade que é, desde o início, um dos epicentros do movimento de contestação. Numa zona conhecida por La Luna, um agente da Procuradoria de Justiça vestido à civil e, em pleno dia livre, disparou contra a marcha à queima-roupa. Uma pessoa acabou por não resistir aos impactos. Em fúria, os manifestantes encurralaram o atirador e lincharam-no. Morreu poucas horas depois num hospital de Cali. O cenário de terror da última sexta-feira exibe, sem filtros, a brutalidade das autoridades contra os protestos que arrancaram há pouco mais de um mês e que, entre outras coisas (ironicamente), pedem Paz no país.
Foi a 28 de abril que o Comité Nacional de Greve deu o tiro de partida. Num comunicado, balizam: “A cidadania reclama que o Governo nacional deixe a soberba e a indolência, proteja efetivamente as e os líderes sociais, implemente o acordo de paz [com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as FARC], fortaleça o serviço de saúde, acelere a vacinação, garanta a renda básica e um salário mínimo, a matrícula a custo zero, o apoio às pequenas empresas e respeite as garantias democráticas”.
Uma Reforma Tributária detonou as marchas. Em tempos de crise económica, o governo colombiano propunha aumentar impostos a produtos da cesta básica familiar, agravar o custo da gasolina, da internet e até de serviços funerários, entre outros. No total, o presidente colombiano Iván Duque pretendia gerar ingressos extra de 6300 milhões de dólares, fragilizando ainda mais as economias das famílias pobres e enfiando a classe média num espartilho, acusam os críticos.
(Contexto: Segundo as próprias autoridades colombianas, em 2020, a pobreza aumentou 42,5% no país. 75% dos colombianos estão em situação de vulnerabilidade económica. O desemprego aumentou 5% nos últimos doze meses. Há cinco anos, 54,2% da população não conseguiam ter uma refeição diária em condições. Hoje, o cenário é muito pior, estimam.)
Sem nada a perder, milhares de colombianos estalaram em raiva e desespero contra o seu Duque. Nessa quarta-feira, 28 de abril, o Comité Nacional de Greve e outras organizações que se associaram à convocatória gritaram forte em todo o país, incluindo em lugares onde nunca tinha havido protestos. Estes focos inesperados e remotos de descontentamento ainda hoje se mantêm, firmes.
Iván Duque não esperou para ver o que aconteceria. As marchas pacíficas logo começaram a ser reprimidas brutalmente pela Polícia Nacional e pelo soturno Esquadrão Móvel Anti-distúrbios (ESMAD). Encurralado em Bogotá, o presidente começou então a falar em “estado de sítio”. A 1 de maio, militarizou os principais lugares de protesto (medida reforçada em Cali depois dos distúrbios da última sexta-feira). No dia seguinte, numa manobra que não convenceu ninguém, recuou na polémica Reforma Tributária. Mas, na verdade, os protestos nunca se tinham circunscrito a uma lei. Nunca se detiveram.
Ao longo do último mês, mais e mais organizações sociais afetas ou não ao Comité Nacional de Greve engrossaram as marchas. Os camionistas paralisaram várias zonas do país. Até hoje, o desabastecimento de alimentos e combustível em alguns pontos da Colômbia é a arma de arremesso do governo contra os manifestantes. A aliança entre operários, camponeses e indígenas reforçou-se – nunca foi tão forte, dizem os analistas. Até as instituições mais insuspeitas, como a Associação de Futebolistas Profissionais da Colômbia, não deixaram passar o momento. “Unimo-nos a vocês que pedem um país mais justo, equitativo e inclusivo, onde nos garantam a todos as condições mínimas para viver com dignidade”, atirou em comunicado.
De toda a Colômbia, chegavam às grandes cidades carrinhas e autocarros com grupos de indígenas que se juntavam à luta – a chamada “minga”. Muitos não o toleraram. No passado domingo, 9 de maio, uma caravana indígena foi atacada quando passava por uma zona rica de Cali. Homens com t-shirts brancas, que hoje ninguém diz saber quem são, saltaram de jipes topo de gama. Com a cara tapada, atiraram a matar contra os veículos onde viajava a minga. Num dos vídeos gravados no local, uma mulher gritava “Fora índios!” Nove pessoas foram feridas, vários automóveis incendiados. O Conselho Regional Indígena de Cauca, região de onde provinha a caravana atacada, pediu a Iván Duque proteção e justiça por este e outros atos violentos contra os seus. Indiferente, o presidente pediu-lhes que voltassem para as suas comunidades “para evitar confrontos desnecessários”. Assim, sem mais.
Direto aos olhos
A entrada em cena dos indígenas foi vista como uma ameaça pelas elites. Embora sejam relativamente poucos, a sua presença radicaliza as críticas dos opositores ao movimento. Acusam-nos de estar armados até aos dentes e de querer tomar as cidades à força. Enquanto os manifestantes aplaudem-nos à chegada, outros, como os habitantes do bairro de classe alta por onde passavam, atacam-nos.
A paranoia faroeste dos “índios que tomam a cidade” evidencia o ódio histórico que ainda hoje traz consequências desastrosas para as comunidades. Essas mesmas consequências que os levam a unir-se à luta nas ruas. A minga indígena exige o que lhe foi prometido: segurança, o fim dos assassinatos dos seus líderes, apoio ao desmobilizados da guerra contra as FARC e o fim da militarização das suas comunidades. Protestam também contra o fracking, que o governo quer retomar, e as fumigações dos campos ilícitos de coca com glifosato, que lhes envenena a terra.
Com a minga, chegou também a Guarda Indígena, formada pelas populações para defender os territórios ignorados pelo Estado. Rapidamente tomaram protagonismo nos protestos, onde muitas vezes protegem os manifestantes, interpondo-se entre a cabeça das marchas e a parede de militares. Cara-a-cara com bastões, gás lacrimogéneo e armas de alto calibre.
De peito aberto, confrontam o Estado e essa brutalidade constante que não só mata como ameaça. Os 47 assassinatos, que o governo diz não estarem necessariamente relacionados com as marchas, mas sim com tentativas de roubos e rixas, são apenas uma parte de uma história violenta com 34 dias. A plataforma GRITA, criada para amplificar as denuncias cidadãs, regista já mais de três mil casos de violência policial, centenas de desaparecimentos forçados e a prisão arbitrária de quase 1500 manifestantes. A tortura, dizem, virou prática comum nos quartéis e prisões de todo o país. A violência sexual contra mulheres (de ambos lados da barricada) e membros da comunidade LGBTI são notícia de cada dia. Em campanhas de terror, a Polícia lança gás lacrimogéneo contra casas particulares e invade-as sem mandato judicial. Nas grandes cidades, há cortes programados de luz - quando a escuridão cai, desatam-se rajadas de metralhadora.
Suficiente intimidação? Ainda não. As forças policiais e o ESMAD agora apontam direto aos olhos dos manifestantes, numa réplica do que aconteceu no Chile em 2019. Quase 50 jovens perderam pelo menos um dos olhos por lesões com balas de borracha. “Estamos perante um Estado que dispara aos seus jovens na cara, descaradamente”, denuncia uma das atingidas, Gareth Steven Stella, na reportagem “Perdi o olho mas não os sonhos”, do jornal colombiano El Espectador.
Na semana passada, várias organizações de direitos humanos colombianas reuniram-se com o Departamento de Estado dos Estados Unidos para denunciar a violência de Estado. Semanas antes, pressionado, o governo de Iván Duque acabou por prometer investigar os “alegados excessos” das forças policiais e militares. Mas continua a rejeitar a entrada dos observadores da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que querem investigar as acusações contra as autoridades colombianas.
A calma antes da tempestade
Iván Duque e o seu regime sabiam perfeitamente que este turbilhão era questão de tempo. As manifestações que ecoam no país foram apenas o fim de um tenso compasso de espera de ano e meio imposto pela COVID-19. Em novembro de 2019, uma onda de manifestantes tomou durante semanas as ruas do país em protesto contra o presidente Iván Duque. A incubação dessa revolta, a que muitos chamaram “o despertar colombiano”, é uma história de décadas a que a assinatura do acordo de paz entre governo e as FARC, em 2016, pôs um fim. “Com a desmobilização e o acordo de paz, esse inimigo que eram as FARC diluiu-se em grande parte e a sociedade começou a pôr atenção às causas estruturais do conflito, ou seja, a falta de acesso a terras, a bens e serviços públicos, a falta de oportunidades. Eram aspetos socioeconómicos que estavam eclipsados e que agora se destapavam” – Alejandro Rodríguez, do centro de investigações Dejusticia, em entrevista à DW, numa análise partilhada por muitos académicos e jornalistas colombianos.
Nos protestos de novembro de 2019, a caixa de Pandora abriu-se, por fim, e as exigências caladas durante anos saíram à pressão. Nas ruas, o país insurgiu-se contra décadas de corrupção, violência, desigualdade social e pobreza, perpetuadas pelo atual governo, também acusado de cumplicidade na morte de líderes sociais (700 durante o governo de Iván Duque, segundo organizações colombianas). As causas então representadas eram muitas, mas tal como agora, a gota que encheu o copo foi a proposta de uma reforma económica que, neste caso, eliminaria o fundo de pensões, aumentaria a idade de reforma, entre outras medidas.
A “afronta” do povo colombiano ao seu presidente custou a militarização das ruas. Em finais de 2019, cidades inteiras submeteram-se ao recolher obrigatório. Fecharam-se as fronteiras do país. A tensão era crescente, acirrada por movimentos que na altura abalavam a América Latina, com o Chile a marcar o ritmo. Até que uma pandemia chegou. De um momento para o outro, o coronavírus fez o que Iván Duque não conseguiu durante semanas: pôr um fim abrupto ao movimento contestatário. As medidas sanitárias e o confinamento foram a desculpa perfeita para calar as vozes nas ruas. Mas todos sabiam que era questão de tempo.
Agora, um mês depois do retomar das manifestações, o impasse marca o compasso. O diálogo entre o Comité Nacional de Greve e governo leva dias sem avanços. Um frágil pré-acordo para o início de negociações com sindicatos e organizações sociais e estudantis não ata nem desata. A violência das autoridades na passada sexta-feira reforçaram o nervosismo, a raiva e a incerteza. Cansados da brutalidade, os grupos em pé de luta anunciam marchas de silêncio.
Para todos, o tempo corre. A favor de uns, de outros nem tanto. Dentro de exatamente um ano, a Colômbia vai a eleições gerais e presidenciais. À frente das sondagens para Presidente está Gustavo Petro, um candidato de esquerda que militou nas guerrilhas. Considerado um governante débil mesmo dentro do próprio partido, Iván Duque sabe que esta é a hora do tudo ou nada.
#palenque