Recortes. “Temporada de Furacões”. A Bruxa, os vivos e os mortos.
“Temporada de Furacões” é livro sem parágrafos. Frases inteiras descabidas de tamanho, asfixiantes, incómodas e pegajosas, como ar putrefacto. O júri do Correntes d’Escritas chama-lhe “escrita torrencial marcada pela coloquialidade”. Também “experiência de vertigem, isenta de qualquer tentação moralista”. E ainda “narrativa polifónica que exacerba a existência de personagens, elas próprias restos na periferia da periferia”.
Há um ano, Isabel Lucas (um dos jurados do Correntes d’Escritas 2024) mergulhara já no livro, com a crítica “De Fernanda Melchor, um livro do diabo: Temporada de Furacões”. “A estranheza de nos sentirmos possuídos por um romance que explora o sórdido, a violência, a miséria numa linguagem crua onde é possível encontrar o belo”, subtitulava o texto do Público.
Na verdade, “Temporada de Furacões” dispensa perfumadas considerações. É escrita direta, sem papas na língua, com joelhos esfolados, al chile, como se diz aqui no México. Ensombrado pela tal violência dos cartéis que o júri refere, sim, mas com a qual não se relaciona de nenhuma maneira – ou pelo menos dessa maneira com que o apresentam e que reforça, sem surpresas, o estigma fácil que tudo parece permear e explicar quando, lá fora, o assunto é México, dos sombreros ao fentanil. “Temporada de Furacões” trata de violências pessoais num contexto de violência coletiva, e de como estas interagem e se alimentam, tipo tubarão de rabo na boca. É mais complexo que frouxas certezas, porque é humano. Cru e pornográfico, violento e noir, como o catalogaram quando foi lançado, em 2017. Um murro no estômago que, com o passar do tempo, derivou num hit de prémios literários dentro e fora de casa e num filme Netflix, no ano passado.
“Temporada de Furacões” deve ser lido com frontalidade e coragem, por entre os cacos de estereótipos. Entrevistas da autora ao longo dos anos mostram que, ao contrário do que o mundo pensa sobre este país, nesta realidade alucinante, muitas vezes a tragédia sai de dentro para fora e só depois reverbera. Neste collage de recortes de jornal e revistas, os nossos fantasmas – dos vivos – assumem-se, escancarados, como as verdadeiras sombras a temer, as que asfixiam os fantasmas dos outros – os mortos.
Nota: Para este artigo desconsiderei a entrevista online coletiva que Fernanda Melchor deu à imprensa portuguesa, horas depois do anúncio do prémio Correntes d’Escritas. O pouco que saiu, saiu mal. Sem contexto, e com um guião tão certinho que não abala nenhuma certeza: o México, conta esta pintura barata com mil demãos, é um gigante charco de sangue em coagulação borbulhante.
Recorte: Fernanda Melchor
Nasceu em Puerto Veracruz, México. É autora do livro de crónicas “Aqui não é Miami” (2018) e dos romances “Falsa lebre” (2013; 2022), “Páradais” (2021) e “Temporada de Furacões” (2017), este último traduzido para mais de trinta línguas e finalista do Booker International Prize, em 2020. O seu trabalho valeu-lhe vários prémios nacionais e internacionais, incluindo o Prémio Anna Seghers de 2019, o Prémio Internacional Alemão de Literatura e o Prémio PEN de Excelência Literária de 2018.
Recortes: “Sinopse”, “Capítulo II”
“Uma descoberta macabra abala o povoado de La Matosa, depois de um grupo de crianças encontrar, flutuando num turvo canal de rega, o cadáver da Bruxa, personagem que os populares respeitam e temem na mesma medida. As suspeitas recairão sobre alguns jovens da aldeia que, dias antes, uma vizinha viu fugir da casa da feiticeira, carregando o que parecia ser um corpo inerte. A partir de então, os personagens envolvidos no crime contarão a sua história, enquanto nós, os leitores, nos submergiremos na vida deste lugar acossado pela miséria e abandono, e onde convergem a violência do erotismo mais obscuro e as sórdidas relações de poder.”
“Temporada de Furacões”, contracapa da edição mexicana
“Chamavamlhe a Bruxa, tal como à sua mãe: a Bruxa Pequena quando a velha começou o negócio das curas e dos malefícios, e a Bruxa simplesmente quando ficou sozinha, lá pelo ano do deslizamento. Se porventura teve outro nome, inscrito num papel gasto pelo passar do tempo e dos vermes, oculto talvez num daqueles armários que a velha atafulhava de sacos, de trapos encardidos, de madeixas de cabelo arrancado, de ossos e de restos de comida, se alguma vez chegou a ter um nome próprio e apelidos como as outras pessoas da terra, isso foi coisa que nunca ninguém soube, nem sequer as mulheres que visitavam a casa às sextasfeiras a ouviram alguma vez chamála de outra maneira.”
“Temporada de Furacões”, Capítulo II
Recorte: “Fernanda Melchor: as cicatrizes dos trópicos”
“O romance [“Temporada de Furacões”] esbanja um aroma mexicano cozido, com certeza. Drogas duras e leves, pobreza quase extrema, lixo nos rios, cervejas mornas que são bebidas, mas não apreciadas, comércio sexual, homicídios e muitas situações limítrofes. O despertar da sexualidade num ambiente hostil, longe da proteção dos direitos humanos. Violência verbal e física, lama, suor, aldeias que vivem da estrada e um cheiro a cana queimada e alcatrão que não sai do leitor. A descrição (relato, crónica, pedido de ajuda?) de uma Veracruz abandonada e partida parece ser, em grande medida, a intenção do texto.
Além de explorar outros temas (crus, profundos e devastadores, como a realidade do país) e oferecer uma trama mais ou menos simples (com algumas notas noir), “Temporada de Furacões”, novo romance de Fernanda Melchor (Veracruz, 1982), é um experimento narrativo concretizado. A Bruxa é, no texto, uma porta de entrada. Não é apenas a personagem central – no sentido posicional, e não hierárquico – do romance, mas a figura que possibilita e legitima o caminhar do leitor pelos vários pontos de vista que a escritora assume na tentativa de desaparecer. A arte de tornar o narrador invisível sem que o leitor perceba: um truque.
A artimanha funciona. À medida que se lê, torna-se cada vez mais difícil localizar a voz que conduz a história entre parágrafos intermináveis. O leitor é subitamente mergulhado na narrativa, porque não tem escolha, porque os períodos e quebras de parágrafos que ele poderia segurar para se manter à tona desapareceram. Ele logo descobre que foi manchado com a lama da cana-de-açúcar e o suor dos trópicos.”
Recortes: Conversas, monólogos e entrevistas
Revell/2018 – Em “Temporada de Furacões” os personagens parecem ser um reflexo do seu ambiente, sobrevivem a um clima pegajoso, tudo acontece em espaços desolados, marginais, violentos e sujos. Como se a casa, a aldeia, e até a região fossem também protagonistas monstruosos. Onde fica La Matosa, no México?
La Matosa não existe como aldeia. Havia um lugar que se chamava assim, era uma comunidade nas margens dos lagos de Alvarado [estado mexicano de Veracruz], mas morreu quando construíram a urbanização Punta Tiburón [marina e complexo de golfe]*. Eu ouvi essa história há muito tempo, porque tinha um tio que morava em Tlalixcoyan e havia uma placa no caminho que dizia “La Matosa”. Para mim, pensar em La Matosa é pensar naquela selva jarocha [gentílico de Veracruz, na linguagem popular] onde não há floresta. É puro capim, capim, capim, verde, verde, que cresce e cresce e que tu tens que ir cortando com uma catana enquanto caminhas. No entanto, à medida que avanças, o caminho fecha-se novamente atrás de ti, e não vês nada, porque a erva é muito alta e solitária. Essa era a imagem que eu tinha daquele lugar. Mas não existe. Quando escrevi o romance, não estava em Veracruz [vivia no estado de Puebla]. Fiz uma viagem rápida a Puerto Veracuz e ao passar por Cardel, tomei nota do nome. Era abril, época em que a cana-de-açúcar é pequena, porque já foi cortada em novembro. O romance passa-se durante os últimos dias de abril e termina quando começa a temporada de furacões, em maio. Tomei nota das cores predominantes e de alguns sinais, mas todo o contexto é do Veracruz de que me lembro, o meu Veracruz.
*A desaparecida povoação de La Matosa que inspirou “Temporada de Furacões” foi a mítica aldeia fundada por Francisco de La Matoza, escravo chegado a esta região no século XVI, vindo do que hoje é Angola. Matoza foi o chefe militar de uma rebelião de escravos africanos em Veracruz, liderada pelo herói Yanga, e que terminou com a fundação do primeiro território livre das Américas (San Lorenzo de los Negros, Veracruz). Morto Yanga, os africanos rebelados construíram uma nova aldeia só sua, sob orientação do velho Matoza – La Matosa. Quando visitei o lugar, em 2010, encontrei memórias e uma anciã cega que aí vivera. Na altura, já a aldeia não existia. O espaço estava cercado, para a construção do complexo de luxo que Fernanda Melchor descreve. Ler: Luta, Sangue e Liberdade e O Carnaval dos Filho de Yanga.
Revell: Por que escrever uma história tão perversa, cheia de fatalidades e violência, um inferno na Veracruz de hoje?
O romance foi inspirado num crime. Li sobre isso num jornal. Não comecei a investigar nada. Foi em Cardel, na zona de cana-de-açúcar. No artigo estavam o assassino, o padrasto que estava numa cadeira de rodas, e um amigo que viu tudo, mas como não participou, acabou por ser libertado. A notícia dizia: mataram o bruxo da aldeia, o seu amante matou-o. O bruxo queria que o rapaz voltasse para ele, mas como este já se tinha casado, recusou-se. Enfurecido, o bruxo enfeitiçou o amante. E este, quando soube, matou o bruxo. As fotos do artigo real foram tiradas por El Mariachi [fotojornalista Gabriel Huge Córdoba], que já está morto, foi um dos jornalistas do [meio veracruzano] Notiver que assassinaram. E a notícia foi feita por Yolanda Ordaz, a jornalista assassinada, cuja cabeça atiraram nas oficinas do [meio de comunicação] Imagen [em Veracruz, 2011]. Assim, o romance nasceu no contexto dos jornalistas assassinados em Veracruz.
Revell: Fala sobre fotografias reais, essas imagens têm alguma influência enquanto escreve?
Tenho cadernos cheios de recortes de jornais. São fotografias de homens capturados. É assim que construo a aparência física dos personagens. São os rostos dos criminosos que se apanham e se exibem na seção de crime: escuros, banhados pelo sol, sujos, com olhos um pouco avermelhados. Eu sou obcecada por aqueles rostos que olham diretamente para a câmara. Na verdade, estão a olhar para dentro de si mesmos. É o tipo de olhar de um psicopata.
El Universal/2020: Quem são os personagens que habitam “Temporada de Furacões”?
Entre toda a diversidade pessoal, sexual e de origem, o que os une é que são sobreviventes. São pessoas, seres, existências totalmente focadas na luta pela sobrevivência. Estão neste mundo a lutar para serem um pouco mais livres e pela possibilidade de continuarem a viver, de se libertarem das amarras, são seres que estão a lutar. Este não é um mundo fácil, mas ser mexicano é um desporto de alto risco. Interessam-me muito as estratégias, histórias, as maneiras como as pessoas tentam tirar o melhor proveito do pouco que há ou tentam sobreviver neste mundo onde tudo está contra elas: como mulher, como pessoa homossexual, como parte de uma classe social pressionada ou como um homem tentando sobreviver. Os personagens também têm em comum uma busca constante pelo amor de diferentes maneiras: o amor como desabafo sexual e carnal, mas também o amor como uma espécie de significado para a própria vida ou sentido de valor pessoal; a busca constante por outro, por outro olhar, por alguém que possa dar um pouco de sentido às suas existências.
La Tempestad/2017: A linguagem de “Temporada de Furacões” é complicada. Os personagens falam e pensam com um vocabulário amplo e preciso. O narrador também. Mas ali, no meio, há uma ânsia pelo discurso quotidiano, pelo vulgar e pelo informal. Não parece que está apenas à procura de ser verosímil. O que busca com essa linguagem?
Adoro a linguagem popular, acho que é uma fonte inesgotável de atmosfera e verdade. A linguagem popular é o que apimenta os romances com pretensões realistas, mas é sempre uma faca de dois gumes… O que eu queria fazer com “Temporada de Furacões” e com este narrador, que a dada altura está a flutuar, descrevendo os acontecimentos com precisão e frieza, e que de repente desce ao plano psicológico e entra numa personagem e começa a “falar” e a “pensar” como ele, foi construir a “realidade” crua das personagens a partir do seu próprio “corpo”. Ou seja, a partir do lugar que ocupam no universo narrativo, da sua própria linguagem e da sua visão do mundo, marcada por um discurso específico que, muitas vezes, não é nem eufónico nem propriamente lírico. (…). A vibe era também experimentar as cadências do discurso popular, copiar as estruturas rítmicas dos mexericos e cochichos e aproveitá-las para construir um discurso literário. Um pouco como tentar compor música com sons do dia-a-dia.
La Tempestad: Em “Temporada de Furacões”, o narrador é uma voz que se converte em personagem, depois em crónica; às vezes não é ninguém e mais tarde é um ponto de vista claro; é uma declaração judicial e em seguida uma velha bisbilhoteira. Muda como a água. Estorva-lhe a figura clássica do narrador?
Como leitor, desconfio profundamente dos contadores de histórias. Especialmente de narradores na primeira pessoa. Sempre que me deparo com uma voz como essa, pergunto-me: Quem está a falar comigo? Por que é que tem de ser uma pessoa a dizer-me tudo isto? E se não consigo encontrar uma justificação, fico furiosa. É por isso que prefiro narradores na terceira pessoa, são mais honestos, assumem a sua natureza artifício e não pretendem enganar ninguém… Mas eu não luto realmente contra essas formas. Pelo contrário, penso que a figura do narrador clássico dificultou este romance em particular. Foi o mais difícil para mim, encontrar uma voz fluida e mercurial, capaz de ver tudo de cima, de contemplar o presente e o passado das personagens e da comunidade e, ao mesmo tempo, entrar na mente dos protagonistas e conhecer os seus pensamentos e desejos mais íntimos, e até de falar com as suas vozes e captar o tom dos diferentes discursos do universo do romance. Eu queria alcançar um efeito de um turbilhão irreprimível e ao mesmo tempo claustrofóbico, e para isso precisava de um narrador que fosse capaz de reunir um conjunto variado de vozes.
La Tempestad: Provocar essa tontura foi um objetivo premeditado ou uma consequência inevitável da imitação do discurso coloquial?
Acredito que todo o romance é, na sua forma mais básica, um loop: um bom romance avança gerando interesse e tensão em relação a algum evento passado ou futuro, e retorna continuamente a ele, uma e outra vez até conseguir resolvê-lo. O que acontece em “Temporada de Furacões” é exatamente isso: cada capítulo é uma enorme digressão que esconde outras digressões menores dentro e que, quando se junta a outros capítulos, forma uma espiral. Creio que este romance não avança de forma linear “para a frente e para cima”, mas “para baixo”, “para dentro”, até chegar ao cerne do seu mistério, que neste caso não é tanto descobrir quem matou a Bruxa de La Matosa (…), mas sim explorar como é que pode haver pessoas capazes de cometer crimes semelhantes e como também há lugares onde tudo isto acontece diariamente e praticamente sem consequências.
Latin American Literature Today/2021: Há, neste romance, como na crónica da seção de crime, a esperança de despertar a morbidade ou há algo que sacie ou expurgue como escritora?
O meu coração está sempre do lado dos romances que procuram confrontar o leitor. Stephen King disse numa entrevista: um bom romance é como um ataque pessoal. Não é uma coisa inofensiva que se possa esquecer rapidamente, mas sim, como disse Kafka, um machado que pode quebrar o gelo do nosso congelado mar interior. Escrevo o que escrevo, porque tento compreender este mundo e porque quero partilhar com os outros o que descubro, que são quase sempre mais perguntas do que respostas. E também escrevo para me entender melhor, embora não saiba se os meus romances são purgas. Pelo contrário, são sintomas, pegadas, cicatrizes.
Latin American Literature Today: Houve, então, algum tipo de catarse na escrita deste livro?
Com certeza. Já comentei em várias ocasiões que às vezes acho um pouco engraçado que se fale tanto sobre a realidade do romance, porque também esta aldeia de La Matosa, que é totalmente ficcional, é baseada em povoações em Veracruz que conheço, lugares que eu vejo na estrada quando conduzo. Mas, principalmente, é uma metáfora para a vida familiar quando cresces numa família disfuncional, como eu cresci. O meu pai era alcoólico. Durante muito tempo, foi um alcoólico sóbrio e depois teve uma recaída novamente. A minha mãe, desde muito nova, tem problemas de saúde mental. No início, não sabiam se tinha sofrido de depressão, depois era bipolar, depois era limítrofe. Ou seja, o diagnóstico foi mudando à medida que as doenças se tornaram moda. Mas digamos que ela sempre foi uma pessoa muito amorosa, mas muito instável mentalmente. Por outro lado, agradeço-lhe por tudo o que fez por mim, porque me fez escritora. Eles fizeram de mim uma pessoa que sempre tentar descobrir o que está a acontecer na mente de outras pessoas. É isso que ser escritor é para mim. (…) Eu ponho muito de mim mesma quando faço ficção. Claro que tenho de pôr muito de mim, mas às vezes há coisas das quais não temos plena consciência. Quando terminei “Temporada de Furacões”, tive que fazer terapia. Na verdade, ainda estou a fazer terapia. Ajudou-me imenso, mas confrontou-me com muitas emoções que não estava preparada para processar. Foi um momento muito difícil. (…) Não era apenas a violência que estava ao meu redor no México, mas aquela violência que vivia dentro de mim; aquela dor e angústia que estava dentro de mim e que acabou de sair com o livro.
Revista de la Universidade de México / 2020: [Os livros da autora] “Falsa Lebre”, “Temporada de Furacões” e “Páradais” estão unidos por um tema comum: o clima de hiperviolência e desesperança em que milhares de crianças e jovens vivem no México. Como surgiu o seu fascínio pelo assunto?
Não sei, às vezes penso que a culpa foi do ano em que nasci, 1982, quando ocorreu a que foi então classificada como a pior crise económica do México, uma crise que naturalmente se tem repetido ciclicamente ao longo de todos estes anos, mas que deixou muitos da minha geração com um sentimento de perpétua “desvalorização”. Como se tivesses nascido no começo do fim, sabes? A queda do Muro, a morte do punk, a Guerra do Golfo Pérsico, catástrofes puras em escalada… Se olho para trás, toda a minha infância está tingida por este sentimento de perda irremediável, e a isso acrescento ter nascido mulher numa família e numa sociedade desastrosa que pintou para mim, desde muito jovem, um destino que, francamente, não me convencia. Olhava para a minha mãe e para a forma como o meu pai a tratava e pensava que isso acontecia porque ela tinha nascido mulher. Via violência por todo o lado, mas nenhum adulto quis explicar-me o que significavam as palavras “violação” ou “incesto”. Então, eu mesma tive que recorrer aos livros para o descobrir. Acho que foi aí que tudo descambou, porque felizmente os meus pais nunca se interessaram pelo que “a menina” lia, desde que eu não os chateasse com perguntas incómodas. Desfrutava de uma liberdade invejável para ler o que quisesse. Desde muito jovem, dei rédea solta a leituras desconfortáveis, violentas e mórbidas, porque era a única maneira de descobrir como era o mundo e por que era assim (…). Essas leituras abriram-me as portas do Paraíso, mostraram-se as respostas que procurava, explicaram coisas sobre a mente e a existência humana que eu nem sabia como formular. Ainda me lembro dos primeiros livros que comprei com o meu próprio dinheiro, na primeira vez que a minha mãe me levou a uma livraria em Veracruz: “Histórias Extraordinárias”, “O Perfume” e “O Silêncio dos Inocentes”. Livros que falavam do bem e do mal no mundo, da luta pela sobrevivência, muitas vezes do ponto de vista dos maus, dos caídos, dos perturbados, com quem me identificava e ainda me identifico.
Infobae/2021 — O tipo particular de violência que faz com que o México seja visto de forma diferente, ultimamente, aparece muito nos seus romances. Como é contar a história da violência?
Para mim, é uma necessidade fundamental. É sempre uma pergunta complicada de responder, porque falar sobre violência em abstrato pode ser difícil para alguém que não é sociólogo, nem psicólogo, nem cientista político, mas simplesmente escreve histórias. Então, o que posso dizer é que, para mim, escrever romances, escrever ficção onde a violência desempenha um papel central, faz parte da maneira como tento entender onde estou e onde vivi, o que vivi e o que vejo ao meu redor. É a minha forma de explorar estas questões, de compreender as coisas, de partilhar, de comunicar o que encontro com os outros membros da sociedade. E é, claro, parte de uma preocupação real que decorre da realidade, das coisas que nós, mexicanos, vivemos no dia a dia. E acho que muitos latino-americanos também se podem identificar com isso. Especialmente com a dolorosa experiência da impunidade. Ou seja, a violência acontece, mas, além disso, não há justiça. Isso é particularmente doloroso. E sinto que a experiência de desenraizamento, de vulnerabilidade, de abandono que as minhas personagens experimentam, tem a ver com isso, com esse abandono do Estado. Com esse abandono das instituições que é muito comum nas nossas sociedades.
Revista de la Universidade de México: No seu trabalho, destaca-se também uma visão dura da violência contra as mulheres. Em que medida acha que o romance pode ser uma ferramenta de observação ou combate social em torno de um problema tão enraizado?
Penso que o romance, quando orientado para a exploração das possibilidades do humano, pode ser uma ferramenta de observação, e até de combate e mudança social, por que não? Mas é uma mudança lenta que opera de indivíduo para indivíduo, alterando a consciência através da linguagem, como uma erosão em vez de uma explosão. Paradoxalmente, isso só pode acontecer quando, como escritores, renunciamos deliberadamente a qualquer tentativa de mudança social através das nossas obras. A literatura, a arte em geral, creio, só alcança uma função revolucionária quando age à margem, quando se recusa a ser um panfleto, slogan ou manifesto e se limita a fazer o que faz melhor: revelar-nos que a nossa existência é uma armadilha.
Revista de la Universidade de México: Há uma controvérsia na ficção mexicana recente: alguns críticos e académicos escandalizam-se por alguns romances refletirem ou recriarem a hiperviolência que o país sofre. Alguns dizem que os escritores fazem isso para chamar a atenção e vender mais livros. Outros desvalorizam os seus méritos, consideram-nos uma cópia da seção de crimes de um jornal. A sua narrativa dá conta, como poucos, dessa hiperviolência. Por que razão a considera um elemento necessário?
(…) Claro que é verdade que há toda uma corrente literária que explora as supostas realidades da narcocultura no México e que a indústria editorial tem sido capaz de explorar e exportar com sucesso, mas a verdade é que nunca me interessei em escrever sobre capos e jornalistas e oficiais de justiça, e assim contribuir para a mistificação dos senhores da guerra. Eu preocupo-me muito mais com as histórias dos Ponchis [narcotraficante mexicano particularmente sanguinário, que inspirou personagens do romance “Falsa Lebre”] deste mundo, do que com as façanhas dos Chapos. E, em suma, penso que há formas mais interessantes e formalmente arriscadas de escrever sobre esta questão que nos diz respeito a todos, que é a violência. Formas que nos permitem lançar luz sobre como naturalizamos e reproduzimos a nossa crueldade vezes sem conta.