Migração nos EUA: A fronteira e os números matam

Entre Janeiro e Abril de 2025, pelo menos 41 migrantes perderam a vida ao tentar entrar nos EUA, na fronteira com o México, segundo a Organização Internacional para as Migrações. Entre eles, duas crianças. Os números aumentam se formos mais para baixo na geografia – 183 migrantes mortos nas rotas que vão da América do Sul até ao limite norte mexicano desde o início do ano, nas estatísticas da Organização Pan-Americana da Saúde. As causas não mudam: afogamentos, desidratação, condições ambientais extremas, acidentes, violência, falta de cuidados médicos. E os habituais “fatores desconhecidos”.

As rotas de migração são cada vez mais perigosas e expostas ao crime organizado (DR)As rotas de migração são cada vez mais perigosas e expostas ao crime organizado (DR)

É uma tendência em ascenso, contada em números frios e cortantes que são, nos últimos meses, a arma letal da Casa Branca. Tal como as estatísticas dos “encontros com migrantes” na fronteira, que Trump usa como a prova provada de que tem razão e que está no caminho certo. Os dados são da Guarda Fronteiriça dos EUA (Customs and Border Protection): 61.448 “encontros” em janeiro (com parte do mês ainda sob administração de Biden); 11.709 em fevereiro; 11.017 em março; e 8.400 em abril. É a queda mais acentuada (propagandeada e manipulada) em décadas.

As contas estendem-se ao âmbito legislativo. No primeiro trimestre do ano, o governo norte-americano implementou 181 ordens executivas específicas sobre migração, quase o dobro das 94 assinadas por Biden nos seus primeiros 100 dias, segundo o Instituto de Política Migratória. 

Caça ao homem

O clima de medo e terror entre migrantes, inclusivamente os que vivem há décadas no país, é crescente. No início do governo de Trump, indicou-se que o alvo das redadas seriam imigrantes com algum registo ou passado criminal. Mas não é assim. Todos os que “vêm de fora” ou que aparentam vir estão sob ataque. Há inclusivamente norte-americanos detidos na rua sem qualquer justificação senão a sua cor, “aspeto latino” ou modo de vestir.

Entretanto, replicam-se nas redes histórias de migrantes que votaram em Trump e apoiaram as medidas anti-migratórias, e que estão agora ameaçados de deportação, ou que têm um familiar ou amigo em situação de risco ou expulsado do país. Estão arrependidos, admitem, mas a verdade é que o presidente não está a fazer nada que não tenha prometido durante a campanha. Onde já vimos esta história?

Neste turbilhão, já não há lugares seguros. Há quem já não vá à escola ou ao médico. O Serviço de Controlo de Imigração e Fronteiras (ICE, sugestiva sigla em inglês) faz rusgas em qualquer lugar possível e imaginário. Desde escolas a igrejas, estádios, bairros residenciais e até tribunais de imigração. A lógica dos agentes é que quem ali vai é porque violou as leis de imigração, e como tal, já cometeu um crime. A pressão sobre o ICE para cumprir a meta de 3000 deportados por dia e 1 milhão por ano que Trump lhes exige, não dá tempo para julgamentos.

Deportação de migrantes venezuelanos para El Salvador (DR)Deportação de migrantes venezuelanos para El Salvador (DR)

A cidadania resiste a esta loucura. Todos os dias surgem histórias de vizinhos que alertam para a presença do ICE nos bairros e gritam a todo o pulmão para ninguém sair de casa. Muitos expulsam literalmente aos gritos e pontapés os “agentes do gelo” das suas comunidades. Há semanas, as manifestações em Los Angeles contra as políticas migratórias paralisaram a cidade e replicaram-se por todo o país, impulsionadas pela comunidade latina, à qual se juntaram norte-americanos de todas as cores, origens e estratos sociais.

Os imigrantes construíram a América, cartaz nos protestos de Los Angeles (DR)Os imigrantes construíram a América, cartaz nos protestos de Los Angeles (DR)

Pelo menos nas sondagens, o apoio popular à política migratória de Trump parece começar a esmorecer. Uma investigação da CNN/SSRS em Abril mostrou que 52% dos americanos considera que Trump foi longe demais nas deportações e 57% acreditam que as suas medidas não tornam o país mais seguro. Agentes económicos e patrões também pressionam o governo, ante a debandada da mão-de-obra migrante barata dos campos, serviços e unidades industriais, por medo de serem presos no local de trabalho e deportados para o fim do mundo.

Ainda assim, a administração quer ir mais fundo e ataca em várias frentes. Trump e companhia preparam um megapaquete orçamental de 60 mil milhões de dólares. Destes, 46,5 mil milhões irão para muros e barreiras físicas. Outros milhões serão usados para contratar agentes do ICE, ampliar centros de detenção e acelerar deportações, inclusive de menores desacompanhados. O National Immigration Forum e outras organizações norte-americana de defesa dos direitos dos imigrantes denunciam que o dinheiro será usado para suprimir direitos e aumentar a máquina de expulsão sumária.

Nesta ofensiva, junta-se o escárnio de Trump pela justiça, com inúmeros descasos a proibições de tribunais relacionadas com deportações. Para ele, a solução é simples: há que substituir os juízes de migração por perfis mais alinhados com a sua agenda, menos propensos a conceder asilo. Ironicamente, o próprio governo contribuiu para o congestionamento dos tribunais ao despedir magistrados no início do ano. Agora propõe 1.300 milhões de dólares para contratar novos. Não para fazer justiça. Para acelerar decisões.

Coincidência ou não, esta semana, o Tribunal Supremo dos EUA autorizou a suspensão parcial do direito incondicional à cidadania por nascimento e limitou a possibilidade dos juízes federais de bloquearam medidas do governo, muitas delas de carácter racista, misógino, homofóbico, autoritário, ditatorial – criminoso.

Todo este vórtice louco de números, medidas, estratégias e decretos não reflete o fim da migração, mas apenas o aumento da repressão. Nos primeiros dias do segundo mandato, Trump bloqueou o acesso à aplicação CBP One, essencial para pedidos legais de asilo. Mandou deportar cerca de 140 mil pessoas desde janeiro. Alguns migrantes foram enviados para o pesadelo de Guantánamo ou para prisões em El Salvador, onde permanecem em condições obscuras, numa negociata de umas poucas moedas com o governo do presidente salvadorenho Bukele. O objetivo é simples: tornar a migração impossível, mesmo que isso implique atropelar o devido processo, suspender audiências e invocar normas ultrapassadas como a Lei de Inimigos Estrangeiros, de 1798.

Esta perseguição sem precedentes empurra agora os migrantes para caminhos mais perigosos. Sandra Hernández, diretora da ONG Sin Fronteras, tem alertado à imprensa uma e outra vez que que as novas políticas forçam-nos a recorrer a redes de tráfico e a percorrer zonas mais remotas e fatais. A novidade não é o perigo, mas o aumento do risco. A UNODC - Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, estima que entre 200 mil e 400 mil pessoas sejam traficadas por ano da América Central para os Estados Unidos. O crime organizado lucra e mata.

Javier Urbano, académico da Universidade Iberoamericana, descreveu por seu lado à CNN o que chama de “efeito boomerang”: quando a repressão aumenta, a pressão acumula-se e a migração explode. Já aconteceu. Em 2017, os EUA registaram 415 mil detenções. Em 2019, sob Trump, esse número disparou para quase um milhão. A redução atual pode ser temporária. O que é permanente é a instabilidade que ela gera.

Manifestação em Nova York contra Trump em Junho deste ano. (DR)Manifestação em Nova York contra Trump em Junho deste ano. (DR)

A história repetida

A fronteira dos EUA com o México está agora militarizada. E coberta de silêncio. Os números que Trump mostra ao mundo são apenas uma parte da equação. A outra está enterrada no deserto ou no fundo do Rio Bravo. O controlo migratório de Trump não é política. É violência institucionalizada.

Os mortos, escrevia no início, continuam a acumular-se e despertam com ruido incómodo fantasmas de outros tempos. Por estes dias, tem ressurgido uma história que em 2019, durante o primeiro mandato de Trump, atirou-nos à cara o drama dos afogamentos de migrantes no Rio Bravo.

Esta memória que hoje se recorda é a da pequena Valeria e do seu pai Oscar, migrantes salvadorenhos. Morreram afogados ao tentar “cruzar”. Foram captados numa foto que comoveu o mundo, na altura.

Aqui a reportagem “A fotografia de um pesadelo”, publicada no semanário Expresso, que já então alertava para perigos que se tornaram realidade. Hoje, estas linhas apontam para tragédias que continuam a acontecer, mas que estão mais silenciadas que nunca, sufocadas pela propaganda e insanidade de Trump e pelos números frios do ICE.

A fotografia de um pesadelo

A foto. Valeria e Oscar, pai e filha, migrantes, salvadorenhos, corpos afogados no rio Bravo. E o disparo da máquina de Julia Le Duc – impulsivo, rápido, onda de choque que destapou um cenário de “miséria, abandono e desespero que acompanha os migrantes”, descreve a jornalista mexicana em conversa com o Expresso. O futuro dos migrantes que passam pelo México é incerto. Julia Le Duc conta estar lá, sempre, para contar as suas histórias.

A foto de migrantes salvadorenhos afogados no Rio Bravo correu o mundo em 2019 (Julia le Duc)A foto de migrantes salvadorenhos afogados no Rio Bravo correu o mundo em 2019 (Julia le Duc)

Só ontem à noite Julia Le Duc soube que o Papa Francisco “ficou muito triste com a fotografia” dos migrantes afogados no Rio Bravo. E que Trump lançou um “Odeio-a!”, quando os jornalistas o confrontaram com a imagem que a repórter mexicana captou. “Espero que sirva para mudar alguma coisa…”, diz, vagamente, como quem pensa em voz alta. 

A voz de Julia Le Duc é rouca. Fala com uma velocidade impressionante, com o tom característico do norte do México, “cantadito”. Está cansada, são 10 da noite e “só agora” está “a almoçar”. Andou “numa correria” o dia todo a acompanhar a entrega dos corpos dos salvadorenhos, pai e filha. “Estão a ser embalsamados. Vão levá-los para a cidade de Monterrey e daí vão ser trasladados para El Salvador”. A viagem está prevista para hoje, quinta-feira. Tania, a única sobrevivente da família de migrantes, também regressa ao país centro-americano. “Não imagino o difícil que vai ser para ela. Vai viajar com os caixões do marido e da filha no porão”, lamenta a jornalista.

Em Alta Vista, em El Salvador, a família de Oscar, Vanesa e Tania aguarda. O Expresso ligou para a casa dos Martínez. Do outro lado da linha, uma familiar foi firme: “Neste momento os pais do Oscar não se sentem bem e não podem falar”. Não insistimos. 

Numa reportagem da televisão salvadorenha Canal 33, Rosa Ramírez conta como tentou dissuadir o filho Oscar de fazer a viagem. “Uma mãe não quer que os filhos estejam tão longe, mas eles meteram essa ideia de ir”. “Eles viviam aqui comigo”, continua, “e queriam ter uma casa para eles, isso foi o que os motivou”. Abraça um macaco de peluche vermelho e branco, que a neta de dois anos deixou para trás e desfaz-se em pranto. Ao lado, José Martinez, pai de Oscar, aprofunda ainda mais a dor: “Quando a pequenita viu que já estava a ser arrastada pela corrente, começou a dizer adeus com as mãozinhas à mãe, que estava a gritar por eles”.

Colapso

A imagem é forte, como forte é “o cenário que vemos todos os dias nas margens do Rio Bravo”, comenta Julia Le Duc. “A fronteira colapsou. Do sul, chegam a Matamoros milhares de migrantes de El Salvador, Cuba, Honduras, Guatemala, Nicarágua, para pedir asilo aos Estados Unidos; do norte, chegam cada vez mais deportados, a quem Trump diz ‘adeus’ e abandona no meio da ponte entre os dois países, muitas vezes sem um tostão no bolso”. 

Com “um único albergue na cidade e sem condições”, não têm onde ficar. “Juntam-se ao lado da ponte internacional, na mais absoluta miséria, totalmente abandonados pelo governo mexicano que não lhes dá nenhum apoio”. Neste acampamento improvisado, relata, “milhares de homens, mulheres, crianças e bebés usam o rio como chuveiro e casa-de-banho”. E esperam, esperam e esperam… “Hoje falei com um cubano que tirou uma senha para pedir asilo nos Estados Unidos. Era o número 2084! Imagina quanto vai ter de esperar”. 

A lentidão de resposta das autoridades migratórias norte-americanas e as condições insalubres do lado mexicano são o detonador de “decisões precipitadas” como as que acabaram com o sonho e a vida da família Martinez, considera a jornalista. “Não os podemos julgar, não sabemos em que circunstâncias estas pessoas chegam aqui, nem os perigos que tiveram de passar. Ao chegar a este lugar e ver este cenário desalentador, facilmente se desesperam”, comenta.

A Cruz do Migrante

No lado mexicano do Rio Bravo, há uma “Cruz do Migrante”. “É um marco que recorda todas as pessoas que morreram ao tentar cruzar o rio”. Os corpos de Oscar e da filha, Vanesa, foram encontrados a poucos metros deste monumento-lápide.

Segundo as autoridades norte-americanas, 283 migrantes morreram em 2018 ao tentar cruzar a fronteira. Já este 2019, até Junho, pelo menos 12 pessoas foram encontradas mortas no Texas. Vítimas, sobretudo, de desidratação e sede. Sucumbiram às altas temperaturas da região árida.

Os números são “altos”, mas “não correspondem à totalidade das mortes de migrantes”, considera Fernanda Rivero, da organização mexicana Sem Fronteiras. “A maioria das mortes não é reportada, e é difícil detetá-las, porque muitos migrantes passam por zonas sem vigilância”.

Manifestações em Los Angeles contra as políticas migratórias de Trump (DR)Manifestações em Los Angeles contra as políticas migratórias de Trump (DR)

Fernanda Rivero realça também que não basta olhar para a fronteira. É necessário, defende, “ter em conta as mortes que ocorrem nos centros de detenção”. “Nos últimos cinco meses, documentámos o falecimento de uma criança migrante num centro do Instituto Nacional Mexicano e de quatro menores que estavam sob custódia da Guarda Fronteiriça dos Estados Unidos”, exemplifica. 

Com a fotografia do pai e filha salvadorenhos de Julia Le Duc no centro de discussão política nos Estados Unidos, e denúncias recentes sobre condições deploráveis de centros de detenção de migrantes no Texas, ontem o Congresso norte-americano aprovou um fundo de 4,5 milhões de dólares para melhorar o atendimento aos migrantes na fronteira sul.

Entretanto, há um novo perigo iminente, alertam em uníssono vários especialistas internacionais: a militarização das fronteiras sul e norte do México, condição expressa dos Estados Unidos para impedir uma guerra comercial com o vizinho. “Esta medida vai forçar as pessoas a procurar outras rotas muito mais arriscadas”, considera Gustavo Gatica. Em conversa com o Expresso, o especialista em temas migratórios da Universidade Estatal Distancia, na Costa Rica, assegura que a nova política migratória mexicana “vai aumentar a vulnerabilidade dos migrantes, expondo-os muito mais às redes criminosas mexicanas, como os grupos de narcotráfico, por exemplo, que há muito se converteram também em redes de extorsão e sequestro de migrantes”.

Com um futuro incerto onde espera “não ter de retratar mais mortes”, Julia Le Duc abre o baú de fotografias – outras, menos trágicas, igualmente tristes – que a marcaram nos últimos 15 anos como jornalista. “Há uma que me comove muito. Tirei-a no albergue da Diocese de Matamoros, onde há uma Virgem da Guadalupe muito grande. Sempre que chegam a esse lugar, os migrantes benzem-se, ajoelham-se e encomendam os filhos pequenitos à ‘Virgencita’. É um gesto simbólico, tão bonito como profundamente triste.”

por Pedro Cardoso
Jogos Sem Fronteiras | 2 Julho 2025 | EUA, fronteira, imigração