Angola e México, deuses de barro

Diz-se que, certa vez, dois deuses de mitologias distantes encontraram-se no que restava de uma floresta extinta. Um, vindo das margens do Zaire, guardava nos olhos os cantos dos espíritos ancestrais. O outro, forjado sob a serpente de luz e pedra, trazia nos ombros a memória do tempo em espiral. Nenhum falava a língua do outro — mas ambos compreendiam que o mundo que os havia separado era o mesmo que agora os obrigava a se reencontrar.

É deste lugar de encruzilhada — real, mística e especulativa que nasce este ensaio criado pelos 2 artistas.

Neste primeiro ciclo, o Estúdio-V abriga o encontro entre Mac-V e Sérgio Garcia, dois artistas cujas investigações orbitam mitologias que foram, historicamente, silenciadas — seja pelo extermínio colonial, seja pelo apagamento epistemológico imposto às espiritualidades não ocidentais. Mac-V convoca os signos e códigos da cosmologia Yaka-Bakongo, enquanto Sérgio aproxima-se da figura de Quetzalcóatl, serpente emplumada que habita os mitos mesoamericanos. Juntos, não propõem uma fusão ou síntese, mas um cruzamento — uma coreografia entre sistemas de mundos que se reconhecem no espelho partido da modernidade.

Ambos escolhem o barro cru como linguagem e matéria. A argila, em seu estado bruto, é aqui menos um material do que uma posição ética e cosmológica. Modelar sem queimar, sem vitrificar, é afirmar a transitoriedade, o risco e a vulnerabilidade como parte do gesto criador. O barro, como a própria memória ancestral, é forma viva — que seca, que racha, que guarda em si o tempo e a terra. Ao recusarem o acabamento definitivo, os artistas devolvem ao processo a sua dignidade ritual, reafirmando o fazer como resistência.

Nesse encontro que se fez entre os dois, a mitologia não assume forma de passado congelado, mas sim de tecnologia espiritual. Um modo de pensar a alteridade, de reactivar o místico como ferramenta crítica diante dos modelos eurocentrados que ainda estruturam os modos de ver, saber e existir. Os trabalhos, na sua pluralidade de formas e gestos, revelam não apenas um desejo de retorno, mas sobretudo de reinvenção. Não se trata de voltar ao antes da queda, mas de reencantar as ruínas com novos mitos, desta vez criados por nós.

Hemak-V

No início de Agosto, o Estúdio-V, centro dedicado à criação e pesquisa artística concebido pelo colectivo angolano Verkron, mostrou em Luanda um diálogo em barro cru entre os universos mitológicos de Angola e México. Durante três semanas, o escultor mexicano Sergio García e o artista angolano Mac Verkron trabalharam a quatro mãos, aproximando artisticamente duas geografias distantes, mas surpreendentemente próximas nas histórias de violência colonial e afirmação cultural e identitária.  

A criação é fluída, assim como foi o processo. O que começou com uma residência artística a solo de Sergio García (a primeira de um artista estrangeiro no Estúdio-V), rapidamente evoluiu numa conexão criativa com Mac Verkron, com a intenção deliberada de refletir em conjunto a crueza e dureza estética de fogo, ar, madeira e de outros elementos naturais, cada um com um significado espiritual. 

As seis esculturas nasceram, assim, da cosmogonia e universos inventados, misturando harmonias entre elementos míticos, sagrados ou naturais de Angola e do México, em diálogo e complemento. Foram criadas como protótipos facilmente escaláveis em tamanho e contextos.

Natural de Querétaro, México, o artista e professor de cerâmica Sergio García desenvolve há vários anos um trabalho escultórico em realce em várias edições do Prémio Nacional de Cerâmica naquele país. Sergio Garcia aplica nas suas obras várias técnicas de escultura, aliando formas antropomórficas a símbolos de civilizações pré-hispânicas (azteca, maia ou olmeca) e elementos míticos e espirituais tão íntimos como universais.

Mac Verkron é um artista multidisciplinar angolano que explora o afro-surrealismo e afro-futurismo através do desenho, neo-muralismo, fotografia, vídeo e instalações. Com formação superior em Artes Visuais e Multimédia, participou em numerosas exposições, incluindo várias edições do Fuckin’Globo. É um dos membros do colectivo Verkron, e caracteriza-se por imergir elementos naturais e sociais em universos figurativos através da imaginação radical, também marcados pela espiritualidade. Mais conhecido pelas suas obras em murais, pintura e ilustração, Mac Verkron tem ingressado também no mundo da modelagem artística em barro, reproduzindo nesta disciplina artística vivências e memórias pessoais. 

Representação estilizada da kianda (Mac Verkron)Representação estilizada da kianda (Mac Verkron)Cabeça olmeca e imbondeiro, representação das raízes dos dois países (Sergio García, Mac Verkron)Cabeça olmeca e imbondeiro, representação das raízes dos dois países (Sergio García, Mac Verkron)Máscara tchokwe com corpo disforme II (Sergio García, Mac Verkron)Máscara tchokwe com corpo disforme II (Sergio García, Mac Verkron)Perspectiva IPerspectiva I

por Pedro Cardoso
Vou lá visitar | 11 Setembro 2025 | angola, escultura, México, Sergio Garcia, Verkton