Cochinilha, o vermelho-mexicano que expos o sistema colonial e revolucionou a arte europeia
- Um inseto dos catos do México colonial uniu durante séculos a arte, a economia imperialista e o poder europeu na sua forma mais ostentosa. Fonte de um pigmento forte e revolucionário, a cochinilla é uma metáfora mais dos sistemas que antes e hoje moldam as dinâmicas globais de exploração. Este pequeno inseto enriqueceu impérios, vestiu reis, militares e cardeais, inspirou artistas. Vermelho vivo reduzido a produto de luxo, despido sem pudor do valor simbólico que representava para a espiritualidade e cultura dos povos mesoamericanos.
Desenho das cochinillas (José Antonio de Álzate y Ramírez)
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O vermelho intenso da cochinilha atravessou continentes e séculos. Foi a cor que vestiu os tronos e as cortes da Europa, ligando com um elo invisível antigas civilizações mesoamericanas aos impérios coloniais europeus que as subjugavam. Num contexto adverso, foi um símbolo da opressão, da riqueza e da transformação da arte. Uma cor carregada de significados profundos que envolvem o poder, a exploração e o controlo dos saberes e dos recursos do “Novo Mundo”.
Para as civilizações mexicas, zapotecas e mixtecas, no que hoje é o México, a cochinilha tinha um valor espiritual imenso. O pigmento vermelho extraído do inseto Dactylopius coccus, conhecido pelos locais como nocheztli (“sangue de tuna” ou “sangue de nopal”), era uma manifestação do sagrado, uma ligação entre o mundo visível e o mundo espiritual. Representava a vitalidade da terra e a força dos deuses e era utilizado para tingir corpos em rituais, vestes cerimoniais, códices, cerâmicas e murais, integrando-se à cosmologia e ao entendimento do universo dos povos daquelas terras. A sua extração e uso eram guardados com respeito e sigilo.
A chegada dos colonizadores espanhóis no século XVI transformou esta prática sagrada em mercadoria. Em 1526, os primeiros carregamentos de cochinilha chegaram a Sevilha. Rapidamente a cidade tornou-se no principal centro de distribuição do pigmento para as capitais europeias e para os mercados de Amsterdão, Florença e Londres, que o vendiam como produto de luxo. Sevilha transformou-se também num ponto crucial para a produção e comércio de tecidos tingidos com a nova cor, especialmente lã e seda.
A cochinilla era um elemento cultural e espiritual de alta relevância para os povos mesoamericanos (DR)
O vermelho carmim, saturado e estável, tornou-se símbolo de status, prestígio, poder e domínio. Era desejado por nobres e cortes europeias, entre as quais a de Luís XIV de França. Ambicionavam-na cardeais e militares, como os famosos “casacas vermelhas”. Os soldados do exército inglês desses tempos devem o seu nome à tonalidade da cochinilla que tingia as suas fardas.
O pigmento que representava originalmente a conexão entre natureza, cultura e espiritualidade dos povos mesoamericanos converteu-se em pouco tempo num ativo financeiro altamente valorizado. Passou a competir com metais preciosos, tornando-se por muito tempo uma das principais exportações da Nova Espanha logo após a prata (segundo alguns historiadores, chegou a valer mais do que o ouro). Era uma das maiores fontes de receita para o império espanhol, que o levou, inclusivamente, da Nova Espanha até aos campos das ilhas Canárias para dar resposta à demanda extrema.
Para manter o monopólio de 300 anos no mercado europeu, a Coroa Espanhola controlou rigorosamente a produção. Tal implicou guardar o segredo sobre a sua origem. Contam algumas fontes que os espanhóis, aproveitando o facto de o pigmento ser obtido das fêmeas adultas secas do inseto, que se assemelham a sementes, espalharam o boato de que eram produtos vegetais. Ainda hoje se usa o termo “semear” e “colher” para se referir à produção deste inseto.
A colheita das cochinillas (José Antonio de Álzate y Ramírez)
Revolução da arte
A febre da cochinilla não demorou muito a chegar aos ateliers dos grandes mestres da pintura renascentista e barroca. O inseto mexicano não só mudou a paleta de cores, como transformou a própria arte, dizem os entendidos na matéria. Libertou a pintura europeia dos limites dos pigmentos tradicionais e possibilitou-lhe o que chamavam de “nova dimensão emocional e estética”.
Tiziano, por exemplo, usou a cochinilha na sua famosa “Vénus de Urbino”, conferindo à figura uma “sensação de calor e vitalidade que não poderia ser alcançada com outros pigmentos”, opinam críticos de arte. A importância da cochinilha na pintura barroca é igualmente evidente em artistas como Rubens. As cenas dramáticas e exuberantes de batalhas e mitos das suas obras ganharam uma “intensidade sem igual” com o uso do “vermelho mexicano”, “intensificando a força e a energia das figuras representadas”. Rembrandt, por sua vez, explorava a cochinilha para “aprimorar a sua manipulação da luz e sombra”, com “contrastes profundos que intensificavam a expressão emocional de suas cenas”.
Outros pintores como Maerten de Vos, Van Dyck e Gerard ter Borch, imersos numa tradição de representação de tecidos luxuosos, também recorriam à cochinilha para criar obras de arte mais realistas, especialmente nas representações do veludo e brocado.
Nesta louca lógica extractivista de boomerang, também no México colonial pintores como Cristóbal de Villalpando seguiram a onda da velha Europa e exploraram as propriedades da cochinilha, criando efeitos dramáticos em figuras religiosas. A “Virgem de Guadalupe” é um dos exemplos.
Mesmo com o advento dos corantes sintéticos no século XIX, a cochinilha não perdeu o seu significado na história da arte, como símbolo da transformação da arte pela expressão individual e intensidade emocional. Van Gogh, por exemplo, associava a cor ao “poder vibrante da vida”.
Para dar resposta à procura, no século XVI os espanhóis começaram a produzir cochinilla nas Ilhas Canárias, (DR)
De volta à terra, pela independência
O brilho europeu do inseto mexicano desconsiderava e opacava o que representava lá longe, em terras americanas. Um descaso que reflete as dinâmicas de exploração que marcaram a época colonial e o seu sistema económico fundado na apropriação de recursos naturais e no trabalho indígena.
Nos loucos anos da cochinilla na Europa, a extração e o cultivo do pigmento dependiam da experiência ancestral de comunidades indígenas, especialmente nas regiões de Oaxaca, Tlaxcala e Puebla, no México atual. A produção exigia cuidado meticuloso: os insetos fêmeas eram recolhidos dos catos, secos ao sol ou em fornos tradicionais e processados para extrair o ácido carmínico, a substância responsável pelo vermelho intenso. O método era aplicado de maneira artesanal, envolvendo uma habilidade acumulada ao longo de gerações, que permaneceu invisível para os consumidores europeus. O trabalho das comunidades indígenas era reduzido a mão de obra barata, enquanto os lucros e o prestígio eram apropriados pelas potências coloniais. Nada de novo.
Este catalisador de uma revolução estética que permitiu aos artistas explorarem novas profundidades emocionais, sociais e políticas e fazer brilhar os poderes coloniais da altura, acabou também por influenciar a libertação do México colonial. Conta a história que durante a guerra de independência contra Espanha, as forças libertadoras apropriavam-se imediatamente da cochinilha quando ocupavam áreas de produção. Isto terá acontecido quando o exército insurgente, comandado por Morelos, libertou a cidade de Oaxaca. A venda da cochinilla apreendida aos colonos espanhóis permitiu-lhe equipar o seu exército e continuar, com sucesso, a guerra por um México independente.
A Revolução Industrial acabou com a era da cochinilla. Temporariamente, pelo menos. Nos anos 80, as provas de que os corantes artificiais podem causar danos à saúde, como toxicidade e alguns tipos de alergias, explodiu de novo a procura pelo pigmento natural. Perú, sobretudo, e o Chile, em menor escala, aproveitaram a vaga e tornaram-se os principais produtores mundiais. No México, a cochinilla limita-se hoje a uns poucos e pequenos lotes, sendo usada essencialmente para fins artesanais.
A cochinilla revolucionu a indústria têxtil europeia a partir do sécúlo XVI, sendo a cor associada à nobreza e luxo (UNAM)
Tratamento das cochinillas ((José Antonio de Álzate y Ramírez)
Vénus de Urbino, do pintor Tiziano, é uma das obras referente do uso do pigmento da cochinilla na pintura europeia (DR)