"Leio um poema, sinto a sua musicalidade e passados 10 minutos estou a musicar"- entrevista a Ruy Mingas

2006 

Antes da Independência de Angola já Ruy Mingas tinha corrido e cantado imenso.  Deu voz ao poema «Monangamba» de António Jacinto, um dos símbolos da luta anticolonial e seguiu musicando tantos outros poemas que entoamos como memória de alegria, às vezes difícil. Presenteou o país com um hino pacífico e poético, Angola Avante! (música sua e letra de Manuel Rui). Como atleta no Benfica ganhou vários títulos de campeão. Na Angola Independente exerceu funções de direcção no primeiro Ministério da Educação, foi embaixador em Portugal de 1989 a 1995, e vice-ministro da Cultura. 

Em 2006 regressa à música, após três décadas sem gravar. Memória é um disco que remete para um legado cultural que o autor quis recuperar para os dias que correm na vontade de dá-lo a conhecer a uma juventude com outras preocupações pela frente. Com a boa sonorização das gravações actuais, estamos gratos por poder regressar à sua voz madura e doce que reaviva os poemas de luta que tanto contam da história de Angola, numa diversidade rítmica com primazia para o semba. 

Dedicando-se quase exclusivamente à educação, criou o projecto de uma universidade privada, a Lusíada, da qual é hoje administrador. Ruy Mingas sente-se feliz entre os estudantes a consolidar a educação, pilar primordial para o desenvolvimento do país.

 

É um homem com vários interesses. Cantor, investigador e professor, desportista e diplomata, com qual destas identidades se revê mais?

Sempre fui uma pessoa com actividades muito ecléticas. Mas gosto muito do desporto e da educação. Gosto especialmente da música (a minha esposa dizia “a primeira mulher do meu marido é a música”), mas de uma maneira diferente: Ocupa um espaço na minha vida mas não do ponto de vista profissional, eu nunca seria uma profissional na música, já na educação e no desporto sim. São áreas que me estimulam muito, sinto-me bem, gosto de estar aqui com os jovens e estudantes, discutir com eles, como gosto de estar no desporto, são as relações humanas mais tocantes a que me prendo. Já a música é natural, eu cresci com a música, desde os meus avós, faz parte da minha vida como prazer e convívio.

A imagem que tenho de si é, acima de tudo, um grande músico. 

Isso é pela idade que tem. Na minha juventude era mais conhecido como campeão do Benfica, entre finais dos anos 50 e finais de 70, muito antes disso.

Em que pé está o conhecimento da música angolana?

Nós temos de consolidar os nossos estilos, os nossos ritmos. O nosso estilo melódico é importante. Os ritmos das gentes do Cunene são diferentes dos ritmos das povoações de Luanda. Portanto há um enorme trabalho a fazer de identificação de ritmos e de cientificação da música.  

Isso passa por haver escolas de música e musicólogos? 

Absolutamente. Temos necessidade de ter muitas escolas. Porque a música bonita que vemos lá fora, interpretada para muita gente, é reflexo de escola, tal como o futebol, o basquete e a arte também passam por escola.

O disco Memória pode servir de referência para os jovens em termos musicais, pois são músicas que tiveram grande importância durante o colonialismo. Como vê a importância desta retoma de composições de uma determinada época? 

A retoma foi para proporcionar a uma geração - que não existia nessa altura - o conhecimento desta poesia interventiva de grande significado, que suporta um período pré-independência num contexto histórico e político completamente distinto. Quando chamo Memória - e aqui presto homenagem à minha filha Nayma pois ela é que pensou no nome - é para essa juventude que pouco estuda e sabe da literatura angolana, para terem oportunidade de conhecer a poesia bonita que marcou uma época de luta. A última vez que gravei tinha 30 e poucos anos, passaram 32 anos. Agora a geração é outra e o contexto completamente distinto e isto é um disco produzido com uma tecnologia que dá melhor qualidade à mensagem poética, a sonoridade melhorou muito.

Neste disco musicou poemas de escritores angolanos como Manuel Rui Monteiro, Viriato da Cruz, Agostinho Neto e Ernesto Lara Filho. Tem mantido uma intensa relação entre música e literatura angolana. 

Eu gosto de musicar poesia bem elaborada que reflicta algo. Comecei com 18 anos a musicar o Agostinho Neto, o Mário Pinto de Andrade. Para mim o sentido temático e a mensagem são fundamentais, contando que seja algo bem elaborado. 

Gostaria de escrever?

Escrevo alguma coisa mas não publico e acho que temos poetas tão bons que prefiro fazer aquilo que sei fazer bem, compor. Eu crio música com muita facilidade, leio um poema, sinto a sua musicalidade e passados 10 minutos estou a musicar. Farei isso sempre que estiver na presença de um grande poema.   

Ao dar a conhecer esses poetas ligados a uma geração de luta está a tentar despertar neles uma consciência crítica e política?

Claro que sim. Tenho um carinho muito grande pelos jovens e às vezes uma certa preocupação com a sua qualidade. 

Como e quando surgiu a ideia de criar uma universidade privada em Angola? 

A ideia surgiu logo quando a sociedade angolana liberalizou o seu sistema para instituições privadas, universitárias e comércio. Concebemos este projecto em 1998. 

O balanço é positivo em termos de resultados e de assimilação no mercado de trabalho dos estudantes que saem da Lusíada?

Iniciámos em 98, com 4 cursos e o ano propedêutico, hoje temos 8 licenciaturas, nas áreas económicas e nas áreas sociais. Penso que os alunos estão bem enquadrados porque Angola está longe de superar os quadros qualificados que correspondem à procura e, passe a modéstia, temos quadros bem formados. O feed-back que temos encontrado das instituições para onde se destinam tem sido o melhor possível. Temos as melhores referências, ex-alunos a trabalhar na BP, na Sonangol, em empresas privadas, acho que o resultado está a ser muito bom. 

Que perfil de aluno vem estudar para a Lusíada, em termos de extractos sociais?

Os alunos aqui abrangem todo o tipo de extractos sociais. Não se pode identificar as classes sociais em Luanda na medida que há quem não pertença tradicionalmente à classe privilegiada mas tenha poder de compra equivalente ou superior aos que aparentam essa classe. As pessoas têm um poder de compra muito grande. Nós iniciámos os cursos com alunos adultos, de 40 e 50 anos, hoje são predominantemente jovens. A evolução foi a melhor possível. Começámos com 300 alunos, neste momento temos cerca 6 mil em Luanda, mais um pólo em Benguela e em Cabinda, no conjunto das 3 universidades temos cerca de 7500 estudantes.  

Sente que os alunos chegam à universidade preparados? Qual é a principal carência do ensino anterior, pré-universitário?

A carência é muito grande, por isso iniciámos esta universidade com o ano propedêutico, não obrigatório, era opcional. Houve muita recepção na primeira experiência, muita gente queria fazer exame de aptidão directo, mas o índice de reprovação era tão grande que ao fim do primeiro ano os próprios alunos constataram que quem fizesse o ano zero teria melhor solidez nos seus conhecimentos e o curso universitário fluía muito mais facilmente. Hoje em dia temos dois terços dos candidatos a matricularem-se no ano zero. Fomos os primeiros a implementar este sistema pela consciência de que temos de melhorar bastante o ensino.

A frequentação feminina de cursos superiores fará com que haja mais mulheres na liderança do país, com protagonismo em várias áreas?

Isso é extremamente louvável. Eu pertenço a uma geração em que os próprios pais entendiam que era preciso dar mais formação aos homens do que às mulheres.

Já se erradicou essa mentalidade?

Não creio. Nas províncias sim, porque as populações estão muito agarradas a alguns conceitos tradicionais. A nível urbano não se sente. A sociedade angolana até foi muito aberta em relação à mulher. Conheço bem o continente africano, não creio que haja nenhum país com tanta abertura para com as mulheres como Angola. É evidente que à medida que as mulheres forem adquirindo mais capacidade técnica, científica, cultural e outras estarão capacitadas para adquirir mais responsabilidades e é louvável que assim seja. Naturalmente, o crescimento do número de mulheres com formação vai influenciar as sociedades mais tradicionais a procurarem entender a mulher de maneira diferente.

Mas imaginemos que um homem e mulher com a mesma formação procuram emprego, não acha que, além das suas competências e qualificações, o género é tido em conta na escolha do candidato?

Daquilo que constato acho que não há problemas dessa natureza. Não tenho sentido quaisquer preconceito para se fazer a selecção das pessoas em função do género. Se existe é em situações muito menos frequentes do que no tempo dos meus pais. Em Portugal rejeitam as mulheres com aquelas condicionantes de maternidade. Na admissão da mulher nas empresas privadas que não têm nenhum orçamento que cai do céu como nas empresas públicas e que apostam na capacidade de produção dos seus trabalhadores, muitas vezes isso acontece. Eu acho que deve ser tudo feito com base nas capacidades, aqui na Universidade tenho isso presente com várias senhoras responsáveis. 

Fará sentido para si a discussão de cotas para a representação política feminina ou isso terá de acontecer naturalmente sem ser pela descriminação positiva?

O Brasil tem quotas para a entrada de negros na universidade porque aquilo é uma sociedade estratificada, onde esse problema é visível. Aqui não. A mulher angolana não tem maior participação na política porque essa percentagem decorre do número de pessoas que aderiram à luta política. Não era muito comum encontrar mulheres no ativismo político há 40 anos atrás. Hoje felizmente há muito mais, a vossa juventude tem essa participação, também há uma formação que lhes permite uma outra capacidade de intervenção na abordagem e na discussão dos problemas. Isso é paulatino, pratica-se à medida que a sociedade for mais equilibrada e tiver mulheres formadas ao mesmo nível que os homens a participar no sistema de emprego. Não é por acaso que a Inglaterra já teve Primeira-Ministra e a França teve uma candidata à Presidência da República, trata-se de um longo percurso de tradição e participação na vida política. 

BI: 

Nome: Ruy Alberto Vieira Dias Rodrigues Mingas 

Data de nascimento: 12/05/1939 - 4/2/2023

Naturalidade: Luanda 

Cantor preferido: Ray Charles, Nat King Cole

Cantora preferida: Aretha Franklin, Ella Fitzerald 

Filme: Os Dez Mandamentos

Pintor: Salvador Dali

Cor: Azul

Viagem: Roma

O que mais despreza: falsidade

O que mais preza: sinceridade, transparência

Prato preferido: calulu

De que sente mais saudade: dos meus pais

Lema de vida: ser aquilo que sou, apoiar sempre as crianças 

 

por Marta Lança
Cara a cara | 5 Janeiro 2024 | desporto, educação, memória, música, poesia angolana, Ruy Mingas, universidade