“Viver dentro de um corpo negro, num país perdido no Sonho”, a partir do livro de Ta-Nehisi Coates

Achille Mbembe (e tantos outros) reflectiu bastante sobre esta espécie de crença que, ao longo dos séculos, vem fundamentando a desigualdade entre as pessoas, e da qual não parece fácil libertarmo-nos: a raça. Violência, crueldade, escravatura, tráfico de escravos, colonialismo, apartheid, mortos sem sepultura. A grande noite da História dos povos de cultura negra. Apesar das manobras de camuflagem e da pretensão universal, sempre tão enganadora, de que somos cegos à raça, o racismo regressa quotidianamente. Os não-brancos continuam, hoje como ontem, a ser pensados, recriados e circunscritos às suas misteriosas origens como uma falta.

Pergunta o autor, na Crítica da Razão Negra, o que é o Negro? «É aquele (ou ainda aquilo) que se vê quando nada se vê, quando nada se compreende e, sobretudo, quando nada se quer compreender» (p.10). Sem memória, nenhuma democracia se pode desenvolver, sequer existir. Daí a importância de reconstruir a história da redução do Negro: uma efabulação, um relato imaginário de inferiorização que, desde a Antiguidade, legitima a violência sistemática, tendo o auge na implantação da empresa colonial. Em paralelo, vários autores abordam as questões negras pela procura, também ela imaginária e plena de contradições, de um desejo de comunidade, declaração de identidade, baseado na denúncia e contra-narrativas de resistência. 

A propósito do assassinato de mais um corpo negro nos EUA, George Floyd, parece-me oportuno relembrar o livro de Ta-Nehisi Coates, Entre Mim e o Mundo, publicado pela Ítaca, em 2016. Na altura, a jornalista Isabel Coutinho enquadrava-o na atualidade do discurso político, pelo contexto que se vivia, referindo-se ao movimento Black Life Maters, criado na sequência de mortes de negros nos EUA que se tornavam mais visíveis, simbólicas e mobilizadoras de indignação alargada. Mortes resultantes da violência cega da polícia, mas também executadas por civis que as justificavam enquanto proteção e defesa pessoal.

O autor Ta-Nehisi Coates gozava então de  popularidade como opinador e jornalista (da revista cultural de Boston Atlantic). O título Entre mim e o mundo fora retirado de um poema de Richard Wright (1908-1960), escritor norte-americano activista dos direitos  negros. Ta-Nehisi é um nome egípcio atribuído pelo pai que quer dizer Nubia, e pode ser traduzido por “terra do negro”. 

O livro conta a história de Prince Jones, colega de Coates na Universidade de Howard, um aluno brilhante que conseguira furar a bolha do que seria expectável para uma pessoa da sua condição racial e social. Jones fora assassinado em 2000 na Virgínia, por um polícia do condado de Prince George (PG). Situado à saída de Washington DC, o bairro PG, nome pelo qual é conhecido, tornou-se um dos mais violentos e brutais dos Estados Unidos, um “grande enclave de pessoas negras”, como descreve o autor. “Os seus residentes tinham as mesmas casas, os mesmos jardins nas traseiras, as mesmas casas de banho” que se via na televisão, “eram pessoas negras que elegiam os seus próprios políticos, mas esses políticos, como fiquei a saber, superintendiam uma força policial tão maligna como todas as outras na América.” 

Coates conta que a perda da sua inocência, à época jovem estudante universitário de História, se deu com o assassinato do seu colega e a impunidade do crime cometido por um polícia (que também era negro). Este acontecimento desencadeava em si toda uma revolta muda que, mais tarde, o seu filho Samori, de 15 anos, a quem dirige a narração em tom de carta, viria a sentir quando a história se repetia. Em 2014, o polícia que matou Michael Brown em Ferguson, Missouri, igualmente não seria penalizado, arquivando-se mais um caso de impunidade policial. Qualquer semelhança com o que acontece diariamente nas nossas periferias de população maioritariamente afro-descendente, não será pura coincidência.

O livro de Ta-Nehisi Coates descreve como é ser negro, nascido em Baltimore ocidental, em 1975, e crescer exposto às armas, crack, violações, entre o medo persistente (polícia, família, bairro, futuro). O livro baliza duas mortes percecionadas por duas gerações, mas poderia ter ido muito mais atrás e mais à frente, porque esta é uma história sem princípio e, infelizmente, sem fim à vista, em que a opressão e o medo se atualiza – numa linha contínua de tempos e lugares – África, Caribe, Américas, Europa, cada qual com as suas histórias e agendas políticas.  

Esta carta de um pai para o filho, que cresceram, ainda assim, com referências diferentes (o filho teve a sorte de assistir a dois mandatos de um presidente negro, exemplo para a comunidade afro-americana em termos de representatividade e ambição), transparece essa continuidade. Unidos pelo medo e pela raiva, alicerçam a ideia de comunidade imaginada, uma vez que o corpo negro deita por terra qualquer teoria ou história de superação e sucesso pessoal (estudos, dinheiro, estatuto), enquanto for marcado pela descriminação. 

Ta-Nehisi CoatesTa-Nehisi Coates

O autor explica o seu propósito, ironizando com a ideia do sonho americano e o mito do progresso: “A questão de saber como se deve viver dentro de um corpo negro, dentro de um país perdido no Sonho, é a questão da minha vida, e descobri que a busca incitada por esta questão em última instância se responde a si mesma”. Ta-Nehisi Coates, quando acordou para a vontade de contrariar o mistério e a invisibilidade da sua “comunidade”, pesquisou mitos, histórias contraditórias, entusiasmado com inúmeros autores e perspetivas, várias fações, perseguindo uma ideia de dignidade e de superioridade moral em se ser negro num país que tradicionalmente o subjuga. Percebeu-se ligado a um grupo de pessoas pelo “sofrimento sob o peso do Sonho”, e que aquilo que as unia “eram todas as coisas bonitas, toda a linguagem e maneirismos, toda a comida e música, toda a literatura e filosofia, toda a língua comum que elas lapidavam como diamantes sob o peso do Sonho.”

Este texto de Coates continua central na discussão sobre o que é ser negro na América, ontem e hoje, desafiando a nossa compreensão da complexidade de um país que, perante outras realidades, é dado como exemplo de ascensão sócio-económica dos afro-americanos, por outro, vive diariamente a violência contra os negros. Coates debruça-se sobre o modo como os políticos e a sociedade abordam o racismo, felizmente com maior mediatização (nos EUA e no mundo), mas que, apesar dessa visibilidade, os crimes aleatórios —como a asfixia de George Floyd brutalmente revela— não deixa de acontecer. Continua muito indignante a propensão do senso-comum para ver no conjunto de população negra um a priori de maior agressividade e perigo.

A sua escrita reclama a herança literária do escritor e activista James Baldwin (1924-1987) –paralelo inclusive reiterado pela escritora Toni Morrison— nomeadamente do ensaio My Dungeon Shook - Letter to my Nephew on the One Hundredth Anniversary of Emancipation (1963), no qual Baldwin aconselha o sobrinho de 15 anos a não se acomodar à concepção branca do mundo que lhe reserva um futuro limitado. “You were born where you were born and faced the future that you faced because you were black and for no other reason….Please try to be clear, dear James, about the reality which lies behind the word acceptance and integration. There is no reason for you to become like white people and there is no basis whatever for their impertinent assumption that they must accept you.” Baldwin lembra a ideologia de Malcolm X, mas sem a fé religiosa do fundador da Organização para a Unidade Afro-Americana, outro corpo negro assassinado em Nova Iorque em 1965. 

Além do legado de Baldwin, ecoam também outros autores que afirmaram a humanidade do negro, como Ida B Wells (jornalista e socióloga americana, 1862-1931), W. Du Bois (sociólogo, historiador e activista pelos direitos dos negros, 1868-1963), Luther King, Malcolm X, Audre Lourde, e tantos nomes da tradição literária chamada afro-americana que expressaram frustração e raiva.

O lado autobiográfico e confessional, entre a crónica e o ensaio, ajuda a ver o mundo a partir dos seus olhos, do lugar onde cresceu, as dores e hesitações que o perseguiram. O modo de narrar é próximo da oralidade de um contador de histórias, e da tradição do testemunho pessoal em que a primeira pessoa ganha a força da vivência e da experiência na pele, uma implicação política, tal como  os registos de Kendrick Lamar, Kara Walker ou o livro de memórias de Barack Obama, Dreams from My Father: A Story of Race and Inheritance.

Para o autor, o problema central da América ainda é racial. O progresso da nação, no que toca à igualdade racial, foi interrompido devido à reação e apatia brancas, que gerou um tenso ajuste de contas moral. “A América vê-se como obra de Deus, mas o corpo negro é a prova mais clara de que a América é obra dos homens”. Ser branco é esquecer-se de si e inventar o outro. É possível associar esta ideia de superioridade à ideia de império que, como “todos os impérios humanos, assenta na destruição do corpo.” Para ganhar e ocupar  territórios, os impérios implicaram “macular a sua nobreza, torná-los  [aos corpos] vulneráveis, falíveis, quebráveis”. E, nisto, não é a fé que resolve o que quer que seja, “…não tenho um Deus que me ampare. E acredito que, quando eles destroem o corpo, destroem tudo, e sei que todos nós – cristãos, muçulmanos, ateus – vivemos com medo desta verdade. A perda do corpo é uma espécie de terrorismo, e essa ameaça altera a órbita das nossas vidas, e, como no terrorismo, esta distorção é intencional.” 

Coates explica a fragilidade a um filho que a está a descobrir a tradição trágica e o peso da  sua herança. É pessimista quando, olhando para o presente do seu filho e das gerações vindouras, não consegue vislumbrar senão uma verdade agreste: a vulnerabilidade de crescer nos EUA sendo negro, o medo inscrito na pele da experiência. Isto tem algo de intraduzível, mas é naturalizado por crianças e adolescentes e fá-los navegar em perigosos lodos (física, mental e emocionalmente). Fá-los incorporar a negritude (pelo lado positivo, enquanto ferramenta de luta) mas também a lógica da supremacia branca e no racismo interiorizado que Fanon tão bem diagnosticou. E o mais assustador é que essa cadeia aprisiona infinitas  histórias, de um passado remoto aos nossos dias.

O livro questiona também o projecto neoliberal que tem desviado a análise da desigualdade dos processos de exploração económica para o campo do comportamento psicológico e moral. Pergunta-se como funciona a raça, enquanto discurso que legitima a diferença, no neoliberalismo? Uma das formas de combate propostas é garantir o acesso justo e equitativo às oportunidades e bens que o mercado oferece e, nesse sentido, fortalecer o combate em qualquer lugar em que a discriminação se der. Mas sabemos que a justiça não é idónea e não tem ajudado a determinar quem é ou não merecedor de uma vida digna. Se a vida dos negros na América é enformada pelos efeitos da violência psíquica e física na experiência diária dos afro-americanos, não pode ser reduzida à dor. 

O que mais guardo deste livro é precisamente a ferida do racismo como algo sempre presente e a nitidez da descrição de Coates, revelando a ilusão do Sonho, na rejeição dos mitos americanos que perpetuam a supremacia branca e os seus imensos constrangimentos, mas abrindo a possibilidade de imaginar um país novo.

O que se pode fazer? Pergunta esse livro. Interrogar e lutar. A sua viagem à universidade Howard, que ele chama Mecca, fá-lo interrogar o mundo à sua volta. E explica ao filho que a luta é a única coisa que tem para lhe transmitir. A luta é aquilo que se pode controlar, ainda que numa estranha forma de controlo. Os negros podem controlar o seu lugar na batalha sem saber se algum dia poderão vencer. Mas, apesar de viverem e terem de gerir quotidianamente inúmeras tensões e justificações, não vale incentivar o desespero. As coisas terão de mudar. 

Uma pequena nota biográfica do autor. O seu pai, William Paul Coates, é o fundador de Black Classic Press, uma editora com enfoque na black life e autores e livros siginificativos  sobre afro-descendentes. A sua mãe, Cheryl Waters, foi o suporte financeiro da família e incentivou o pequeno Coates a escrever desde pequeno. Portanto, ele cresceu num meio com possibilidades de ascensão social. Esse arranque ajudou-o a reflectir sobre a condição de negro para lá da estreita leitura classista, porém, a descriminação continua lá. 

por Marta Lança
A ler | 2 Junho 2020 | afro-americanos, EUA, George Floyd, racismo, Ta-Nehisi Coates, violência policial