Agressões e racismo, todos passaram por isso

Quinta do Mocho Quinta do Mocho O comboio da linha de Sintra transporta diariamente muitos trabalhadores e trabalhadoras. Usam-no para dar expediente de manhã cedo à noitinha. Dos 67 milhões de passageiros frequentes por ano, uma vasta fatia é de origem africana e/ou negros portugueses. O vínculo de toda esta periferia a Lisboa-cidade-centro é, na maior parte das vezes, apenas de natureza laboral. A sensação de exaustão daqueles que não têm tempo para ver os filhos crescer nem desfrutar da cidade que ajudam a construir, e a garantir a cada dia, é constante. E a frustração também.

Existe uma evidente cisão cultural, mas sobre isso falaremos noutra altura. Aqui queríamos apenas reforçar o que tantos, mas são ainda poucos, - já alertaram sobre quanto a violência se banalizou, e sobre como viver no “gueto” implica conhecer o racismo de perto e aprender a resistir-lhe. A violência e a segregação em alguns bairros são o pão-nosso-de-cada-dia. A população mais flagelada é negra (alguns são africanos, outros descendentes nascidos cá mas a verem a nacionalidade portuguesa recusada por demasiadas gerações).

Nos bairros suburbanos de Lisboa, os episódios de violência policial têm uma tal regularidade que a sua narração não caberia em páginas e páginas de jornais, se os jornais não escolhessem, na maioria das vezes, dar visibilidade exclusiva ao ponto de vista da polícia, deturpando acontecimentos e diabolizando ou criminalizando os habitantes dos bairros pobres, de realojamento ou de auto-construção, estigmatizados como bairros problemáticos onde “verdadeiros barris de pólvora” e “focos de tensão” estão sempre prontos a explodir. 

Visitámos alguns destes bairros para recolher depoimentos: Quinta do Mocho, Sacavém (Loures), com cerca de 2.800 moradores, a maioria de origem africana; Cova da Moura e Damaia, no concelho da Amadora, com 175 135 habitantes, muitos deles africanos. Os entrevistados apontaram algumas situações de racismo que protagonizaram ou assistiram, quase todas causadas por abuso de autoridade por parte de agentes da polícia. A indignação com o grau de intimidação e de stress que é preciso gerir surgiu como consensual.

Veja a reportagem-video com os depoimentos (autoria João Ana e Marta Lança):

As histórias contam-se na primeira pessoa. Fala-se de agressões gratuitas, da falta de respeito, de não se sentirem cidadãos de direito: “antes de se identificar já foi vítima”, “queremos ser tratados como cidadãos”; polícias à paisana com conversas ordinárias, insultos repetidos “pretos de me***”, “volta para a tua terra”; saídas à noite que se transformam em tragédias, rusgas quando se está calmamente no café a ver a bola e se acaba deitado no chão, à chuva, humilhado a ouvir insultos, festas de aniversário ou modestos convívios que subitamente são invadidos com balas, e ops, “foram danos colaterais”…

Quando questinamos sobre racismo há uma inevitável associação ao comportamento da polícia que, supostamente, devia “proteger e defender os cidadãos” e acaba por deixar as comunidades inseguras e aterrorizadas – “ficamos a tremer”. “A polícia vem contra nós, da maneira como agem, começam logo a agredir as pessoas, até agridem as mães que vêm defender os filhos”.

Maria Sala, na Damaia, detalhara-nos como foi violentada em pleno local de trabalho, a 27 de Abril de 2015: uma brutal sucessão de agressões violentas, de choques eléctricos a pontapés, até ser forçosamente algemada pelo polícia, em conivência com o segurança, e detida.

 

Associar moradores de bairros suburbanos à criminalidade e ao tráfico de drogas não é novidade na imagem que se construiu sobre os bairros e na língua corrente. Nas conversas que tivemos, ninguém negou a existência de problemas de droga, de pequena ou média criminalidade. E é esse suposto tráfico de droga o pretexto para as constantes visitas surpresa da polícia, com as suas operações e rusgas musculadas. Ainda quarta-feira passada, numa operação de combate ao tráfico na Cova da Moura da PSP, por venda directa de heroína e cocaína ao consumidor, prendeu dez moradores. Mas o que mais indigna a população é que “por uns pagam todos”, acentuando o facto da maoria serem árduos trabalhadores, com vidas em nada facilitadas, ou empurrados para o desemprego ou para uma marginalização total.

À porta de uma escola da Damaia, os adolescentes referem que a sua geração já não é tão preconceituosa e está mais sensibilizada para as questões de racismo e de discriminação mas estas ainda ecoam em muitos aspectos da sua vida. O adolescente russo, Yuri, observa o imediatismo com se culpabiliza os “estrangeiros” se algo corre mal.

rapper PM Lyrical, na Amadora, resume: “Enquanto não nos valorizarem enquanto pessoas e reconhecerem as diferenças, haverá sempre preconceitos”.

Eduardo AraújoEduardo AraújoNesta entrevista ao angolano Eduardo Araújo, na altura dirigente do SOS Racismo, o sociólogo avança algumas das razões para a repetida história da marginalização germinada em múltiplas esferas da vida social (da escola aos media; do local de trabalho à habitação). A igualdade para os imigrantes ou descendentes de imigrantes só seria possível se as oportunidades no mercado de trabalho e das escolas fossem as mesmas. E a geografia determina-as logo: “Sabemos que a qualidade do ensino é desigualmente representativa (nos subúrbios há muitos filtros).” E, depois, em termos de visibilidade: Vemos muito poucos nos centros de decisão. “Quantos milhares de jovens negros estudam? A mobilidade das comunidades ou dos grupos descendentes de imigrantes é escassa”.

moradora da Quinta do Mocho moradora da Quinta do Mocho Apesar da população negra, imigrante ou não, ter tido um inegualável contributo para o desenvolvimento de Portugal, o sistema perpetua uma imagem pejorativa, sendo o racismo uma das armas para legitimar a subalternidade e a invisibilidade. “Grande parte dos negros e das negras estão ‘incluídos’ na sociedade portuguesa de uma forma bastante específica: enquanto mão-de-obra precária, barata ou desempregada. Por isso, o racismo só pode ser pensado em associação com a dimensão das classes sociais”, citando o antropólogo Otávio Raposo.

A repressão policial acolhe muitas vezes a conivência dos tribunais que não raramente dão impunidade às actuações violentas e desproporcionais das forças de segurança pública. Lembremos o assassinato do Kuku, de 14 anos, em 2009, por um agente da PSP. Contra todas as evidências (o tiro disparado a dez centímetros da cabeça da vítima), o tribunal decidiu absolver o polícia agressor. São muitos os casos de abuso policial e de mortes pela polícia que não são julgados, como PTB, Angoi, Corvo, Tony, Teti, Snake. Veremos o desenlace do caso mais mediatizado e com apoio internacional, dos activistas do Moinho da Juventude e da Plataforma Gueto, incluindo os rappers LBC e Kromo di Guetto, brutalmente agredidos na esquadra de Alfragide a 5 de Fevereiro por terem ido simplesmente averiguar o que se passava com um morador da Cova da Moura que havia sido levado arbitrariamente.

A Justiça não actua na mesma medida quando se trata de jovens negros e/ou habitantes de bairros pobres. Como referiu Otávio Raposo a propósito dos acontecimentos na Cova da Moura: “Apresentados como ‘bandidos em potencial’ por parte significativa dos media e das instituições políticas, é-lhes atribuída uma moralidade duvidosa que os culpabiliza pelos problemas de violência na cidade. Desta forma, são destituídos de legitimidade para mediar reivindicações sociais ou denúncias de violência policial. Essa criminalização da pobreza tem o intuito de afastar os mais vulneráveis de qualquer acção organizada, o que poderia pôr em risco o brutal acumulo de bens e recursos nas mãos da elite dominante”.

O racismo é uma questão quase silenciada em Portugal, passando-se a imagem de que os portugueses não são racistas, que é um país de brandos costumes, e todos os argumentos de uma narrativa colonial luso-tropicalista. O que se vê na ruas faz prova de um racismo institucionalizado. “Eu classifico a nossa comunidade como uma comunidade colonizada dentro da metrópole onde o racismo, eurocentrismo e a tentativa de desculturação ocorrem com frequência”, palavras de LBC Soldjah numa entrevista (Revista Rap Nacional, 2013).

por Marta Lança
Cidade | 13 Dezembro 2018 | periferia, Quinta do Mocho, racismo, violência policial