O Turista

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O turista sai do avião, respira o ar morno e húmido e prepara-se para conhecer a terra que a agência de viagens promete paradisíaca. Repleta de vegetação luxuriante, pessoas acolhedoras e de sorriso pronto, praias cálidas e semi-desertas, gastronomia criativa e uma paz interior garantidamente alcançada em dias não pautados pelo trabalho. 

O turista transporta na mala um saco cheio de rebuçados para dar aos pobres que hão de gritar “doce, doce” à sua passagem. Não repara no facto de que, dez minutos depois, nem uns nem outros irão lembrar-se dos rostos que procederam à troca de mimos. 

— Bem vindo à terra do leve-leve! – repete pela milésima vez Nelson, com rosas de porcelana e bicos de papagaio nas mãos quase adolescentes. A saudação de boas-vindas instigava o turista a entusiasmar-se com a terra onde aterrava. Logo surge outro menino a oferecer serviços:

— Sou o Jéjé, comprovado guia turístico, mãos especiais para fazer colares e tudo o mais preciso. 

O turista ainda sorri mas não o rapaz é enxotado enquanto as malas são pesadamente atiradas para o transfer que o leva, juntamente com os outros turistas, diretamente para o Ilhéu das Rolas. No caminho, goza de breves deleites sensoriais: a tal da vegetação luxuriante, corpos serpenteando nas estradas com fruta-pão, mandioca, banana ou peixes enormes de nomes para si desconhecidos à cabeça, mulheres de panos coloridos, feixes de luz nas folhas espessas, casinhas sob palafitas em aldeias perdidas e encantadas, o adensar verde da paisagem ao aproximar-se o sul. Arrepia-se ligeiramente com as catanas que avista na estrada, ferramenta laboral fundamental para ilhéus, lembrando-se de imagens de um dvd sobre revoltas de hutus e tutsis, e sabia lá mais que gente tão selvagem. 

Uma vez no embarcadouro de Ponta Baleia, o novo grupo segue no semirrígido em direção ao ilhéu. À medida que o barco se distancia, desconhecendo as maravilhas e mistérios ali guardados, a praia Jalé e a praia Piscina são, para o turista, somente difusos contornos entre a floresta e o mar. Nesses pontos difusos que ele não virá a conhecer, escapou-lhe Waldemar, de catana em punho pela madrugada fora, a caminho da floresta para derrubar o ocá e construir uma canoa. Leva 4 dias para moldar a árvore e arrastá-la já navegável até à praia. Ficou por conhecer o empenho de Josué que vai para o mar alto pescar garoupa, peixe-andala, tubarão, a ser vendidos por tostões na praça. Fugiram-lhe os quilómetros e quilómetros calcorreados pela Aissata a carregar banana e fruta-pão. Talvez o telemóvel do turista venha a tirar muitas selfies com o Pico Cão em fundo mas ignorará a destruição da floresta para exploração de óleo de palma. Ou não se importe que o ilhéu das rolas onde ficará hospedado tenha sido comprado por um grupo hoteleiro que expulsou os seus habitantes ficando com as chaves do farol. 

A visão de relance para a costa produz no turista um certo mal-estar e tontura. Seria a rapidez da chegada, ter atravessado parte da ilha sem nada afinal ter apreendido? Nem fotografias que confiram veracidade à sua memória? Mas logo regressa ao lugar vago que concretiza a vontade de toda uma vida: poder dizer, a si próprio e aos demais, que esteve em África, terra imensa, doce e violenta, de histórias mirabolantes, aventuras prodigiosas e mundos invisíveis. Terra de tal modo generosa que tudo oferece. Antes sequer de se adaptar àquelas cores ou de trocar palavra com os companheiros de viagem, não se coíbe de fotografar tudo aquilo que vê. O imprevisível podia acontecer a qualquer momento, afinal estava em África, onde acontecem coisas suspeitas, era preciso documentar. Apontando a câmara para os braços musculosos do barqueiro, como se de objectos se tratassem, surpreende-se pelo súbito respeito que a figura lhe inspira. A sua excitação vai sendo lentamente ameaçada. Talvez não aceda verdadeiramente àquela ilha, talvez tudo o que carrega não de nada lhe sirva.    

2. 

Acresce ao seu cansaço europeu, a viagem de avião e a fila a conta-gotas para carimbar o passaporte. Merece descanso, aquele descanso que se segue a dois anos de trabalho, casa, centro comercial, visitas aos sogros, escola dos filhos, almoço com o casal amigo, bricolage, angústia das contas e endividamentos. E, sobretudo, o enfado de um casamento sem tesão. Sexo, de três em três meses e de olho no relógio.

Identificar as pequenas saturações que o vêm afastando de quem julgava poder ter sido ajuda-o a libertar-se da sua pele de animal domesticado.

Refastelado numa espreguiçadeira à beira da piscina no resort, o turista sente a tal agradável impressão de que, por um momento, a terra pára de girar. O apelo do Equador, localização nem a norte nem a sul, a hibridez hemisférica e o vento brando, propiciam uma vontade indómita de se perder em sensualidades nas ilhas tropicais. Um clima apropriado à preguiça, “confortável até na Gravana”, avisava o folheto da agência de viagens. 

Assim, suspendendo a memória romantizada das roças de cacau de Sousa Tavares, adormece com o livro ao colo, naquele ambiente de férias. Com ponto final, mas férias.

Na cidade, à mesa do bar onde as ondas do mar se fundem com kizomba e tarraxinha das colunas, dois angolanos e três portugueses falam assertivamente sobre os destinos do país. 

— Aquele vai ser o próximo autarca.

— Fulano tal vai receber uma comissão para acolher um resort. 

— O ministro que feche os olhos a mais uns hectares de floresta abatida. 

Um dos angolanos é optimista. Acredita que o país necessita de homens vigorosos, operativos, e põe objetivos em marcha de acordo com o seu plano bem montado. A sua presença perturba: em vez de falar, discursa, e é tarefa árdua interrompê-lo para “dizer alguma coisinha”. Como se tudo fosse confidencial e altamente empolgante, discursa com o mesmo espírito conspirativo de quem está a criar obra ou a derrubar regimes, a tratar tu cá tu lá os poderosos, a desenhar a estratégia política e o progresso da nação, dois países carne da mesma carne, sangue do mesmo sangue, atravessados pelo colonialismo e agora fraternos na reconstrução, unidos na glória do futuro. E celebra com champanhe, contagiando os demais.

— À auto-estima e à promessa de dinheiro, ao leve-leve, à senhora da Muxima, chin-chin!

O jornalista, involuntariamente encaixado naquela mesa de negócios, ouve a conversa cabisbaixo. De cada vez que lhe está prestes a sair um “ai” da boca, tem direito a um pontapé discreto debaixo da mesa vindo da portuguesa que o trouxe. Resta-lhe ingerir mais um gole de whisky para não colocar questões obtusas. A prepotência daqueles homens, quais reis da Pérsia no xadrez de vida alheia, desagua diretamente no whisky que furiosamente emborca, em mudez conspirativa.

Terra frágil onde o fresco cheiro do dólar se incute na pele… pensa o jornalista. Possivelmente seria frase de arranque para a sua história. Na realidade, a viagem a São Tomé destinava-se a produzir uma reportagem sobre questões culturais, especificamente um evento grandioso. Estava incumbido de dar notícia da ilha, de ampliar aquele ponto minúsculo no mapa, alargar a família do parente pobre da lusofonia, de entreposto de escravos a entreposto cultural. A sua amiga, a trabalhar em São Tomé como consultora de uma petrolífera, relaciona-se com altas instâncias e tem traquejo para refrear ânimos opinativos para não prejudicar o negócio. Convidou-o para um copo e “conhecer o meio”, ou seja, uma certa elite. De súbiti, o jornalista via-se metido naquele caldeirão, abudantemente inteirado das coordenadas em conjectura. 

Por todo o lado, os interesses privados são o motor da vida pública, isso o jornalista sabe. A política não é a sua área e nunca lhe arranca mais do que um monumental bocejo. Mas ver assim de perto o acontecer subterrâneo do jogo político causa-lhe algum impacto. Esforça-se para não se esquecer que o delírio das elites não tem qualquer relação com o mundo paralelo dos filhos da terra e das suas vidas diretamente dependentes dos recursos. Pessoas atravessando tempos e regimes, enchendo a cara com vinho de palma, a rir desacreditados dos políticos, apesar de votarem neles para no dia de eleições celebrarem com aguardente a angústia histórica ou a ilusão de mudança.

Na sua profissão, familiarizada com as categorias de compaixão “negro”, “faminto” ou “imigrante”, não há espaço para grandes espantos. No entanto, o jornalista regressa agora combalido ao hotel, encabolado com as realidades incomunicáveis que povoam e colidem no mesmo mundo. A sua inquietação interior e réstia de ingenuidade talvez se tenham para sempre dissipado. À medida que se sente chocado, vai retendo palavras caras que posicionam moralmente a sua história, tais como impunidade e corrupção, democracia e neocolonialismo. 

Aquele país, laboratório de experiências humanas e paisagísticas, começa a despertar-lhe interesse.

4

Enquanto isso, no resort, o turista aborrece-se com a vida de papo para o ar, entre mulheres flácidas fazendo selfies, famílias empertigadas, comida monótona, piscina o tempo todo. A zona de animação oferece apenas o desinteresse de casais entediados, ou um grupo de colegas bancários embebedando-se ruidosamente. O ilhéu pouco tem da África com que ele tanto sonhara (à exceção da paisagem impressionante, mas essa  assemelhava-se a algum recanto do Brasil). Dos habitantes locais, todos expulsos por um trocos para construirem casinhas e libertarem o ilhéu para os turistas. Uns quantos jovens santomenses que vão e vêm em barquinhos de borracha vender artesanato aos turistas e peixe ao restaurante. Se consegue arrancar informações sobre a vida dos “locais”, como lhe disseram ser o trato, as mesmas são perfeitamente condicionadas pela relação comercial que os mediava.

Decide então desobedecer parcialmente ao pacote turístico. Pede para passear dois dias em carro alugado pela ilha-mãe, pois tem curiosidade pelo tour das roças coloniais. Cedem-lhe um guia jovem, conhecedor da história do país, e lá seguem num carro alugado. Já lhe constava que a memória física do antigo império colonial caminhava para vertiginosa deterioração, mas ao visitar as roças Agua Izé e a Agostinho Neto, fica duplamente impressionado. Primeiro com a imponência daquelas estruturas arquitetónicas que deixam adivinhar o que aquilo terá sido. Depois pelo seu estado devastador e pelos guardiães dos edifícios: crianças, persistentes agricultores, forros descendentes ou representantes dos que vieram arrastados no penoso caminho do contratado. Falta de trabalho remunerado, habituação ao fio da navalha, o desenrascanço reina, nunca arrepiando caminho. Podem sempre contar com umas quantas lavras e abastadas árvores de fruto.

O turista comove-se com a decadência das ruínas roceiras e com a “resiliência” humana. Palavras na sua cabeça, não na minha. De novo, apetece fotografar tudo à sua volta, vivendo, por momentos, a crença de que é o único homem a ter acesso a um segredo da história bem guardado. Com a mesma rapidez com que inicia o disparo de fotografias, faz perguntas soltas sobre as roças. A sua precipitação revela mais interesse nas perguntas do que nas respostas do acompanhante.

O guia Mariano tentava explicar algumas curiosidades sobre os forros, os angolares que recusam trabalhar nas plantações, os contratados das outras colónias, as revoltas, a Guerra da Trindade ou o Massacre de Batepá, depende a quem conta. Mariano aponta as convulsões e alegrias da independência, de como à arquitetura económica do colonialismo sucedera a exploração ineficiente da terra, os cabo-verdianos que perderam as lavras, a nacionalização das roças, a divisão das terras, a queda da produção e a grave crise económica, a virada do regime socialista, o multipartidarismo, a liberalização do Banco Mundial, a ajuda internacional até à expectativa furada do turismo.

O turista impressiona-se com a sabedoria do guia, e ainda tenta vislumbrar todos esses cenários políticos e culturais do passado, mas a sua visão prende-se antes ao descascar da tinta da parede, às varandas de madeira com roupas a secar, às pernas grossas e firmes das mulheres, ao apelo “branco, branco” da criançada a cada cara nova. 

Regista no seu caderninho: Casa do administrador, hospital, casa grande, a sanzala a perder de vista. E esta gente a cirandar, moram aqui neste destempero, a dançar e a fazer grogue, a colher cacau, alheios ao mundo. Bandos de crianças estendem constantemente a mão, a pedir doce ou caderno e eu já não tenho mais rebuçados. Etiquetaria devidamente o seu álbum digital, com comentários esclarecedores como viajante organizado que era.

Passados uns minutos, a fome ganha à curiosidade do turista. Já viu e soube mais do que suficiente sobre aquela “desgraça”, dispensa a visita às outras roças. Deseja afastar-se da miséria, regressar de imediato para as suas férias no resort: retemperar os ares, beber uns copos e pensar na vida, mas uma vida em pleno, com contemplação, prazer e tudo aquilo que um cidadão como ele tinha direito. Se não é para todos, temos pena, pensa. 

5

No hotel, o jornalista tenta apanhar wifi para pesquisar dados do país que enquadrem na reportagem das manifestações culturais. Chama-lhe particularmente a atenção um episódio da História:

Durante o século XVI, São Tomé tornou-se um grande produtor de açúcar que necessitava cada vez mais da mão-de-obra escrava. Com o incremento da população escrava aumentou também o número de escravos que fugiram para a inacessível floresta densa no interior montanhoso da ilha. Inicialmente os escravos auto-libertados no interior de São Tomé eram conhecidos por macambos. Desde o século XIX, os seus descendentes são conhecidos por angolares, que ainda hoje constituem um grupo cultural e linguisticamente distinto em São Tomé.

Em 1595, São Tomé foi abalado por uma revolta dos escravos, liderados por Amador, que mobilizou cerca de 5.000 escravos contra as tropas do governador. Depois de três semanas a revolta terminou com a derrota dos revoltosos.

Pensativo por momentos, desloca o olhar do ecrã para o manto negro do mar em frente ao hotel de 4 estrelas. Não passando de mais um jornalista com aspirações a escritor e, ao invés da reportagem, apetece-lhe escrever antes um conto. Pôs-se a imaginar que todos os oprimidos das plantações, de cana-de-açúcar às de café, e mais tarde de cacau, os oprimidos de todos os tempos, mandados ou já nascidos nas ilhas se tinham escondido no interior da floresta, para lá do Caminho do Fugido. Ali haviam criado uma comunidade com regras de parentesco, organização económica, língua, guerra e honradez muito próprias. Como nos palenques e quilombos, chegavam escravos fugidos, perseguidos por animais selvagens e por antigos senhores, e escravos libertados por grupos quilombolas que iam às roças resgatá-los. Afinal, era a violência que tinha suscitado os tais encontros culturais.

Eu quero ver… lá onde estão os homens… Veio-lhe à cabeça a música de Jorge Ben Jorge, Zumbi, os senhores sentados vendo a colheita do algodão branco a ser colhida por mãos negras, escravos angariados no Congo, Benguela, Monjolo, Cabinda, Minas, Quiloa, Rebolo para o Brasil. Porém, na história do jornalista, Zumbi de Palmares, senhor das guerras e das demandas, fazia uma aparição em São Tomé onde engendrara uma aliança com o rei Amador e, com as suas gentes, sinalizaram no acampamento guerreiro na floresta o lugar perfeito para os espíritos conspirarem revolta, renovada, combativa. Para calar o menino que repete “doce doce” a cada branco que passa, e exigir futuro sem depender dos fundos que hão-de vir. E em cada encanto com o leve-leve e a amabilidade das pessoas, o vento faz sentir a sua sonsice. Em cada elogio à amabilidade e ao ritmo leve-leve, gritam contra a precariedade das vidas, enfeitiçando os sonâmbulos com perfume de Micócó.

O jornalista viaja para altas zonas da imaginação, reunindo protagonistas de revoltas contra as grilhetas, exploração da mão de obra, evangelizações à força. Mistura imagens do Django Libertado com António Conselheiro, entusiasma-o a liberdade da escrita e do seu conto utópico mais do distópico, a força de uma resistência secreta na floresta primária envolta em lianas, fetos e musgos que mal deixam vislumbrar os pinheiros e afrocarpus onde ninguém se atreve a ir, à exceção de uns esporádicos curandeiros que nem reparam naqueles entes, espectros dos antepassados escravos, destabilizadoras promessas olhando a realidade tão longe de ser livre. E com a ética de não se meterem em assuntos sagrados a não ser para o seu ofício, os curandeiros também não dariam notícia de tal comunidade aos governantes do país.

Poucos sabiam, portanto, da existência desses homens e mulheres, macambos, angolares, guerreiros de remotas origens africanas, que ali desenvolviam, há gerações e gerações, as sementes da sua vingança. Sem desconhecer o devir atual do mundo, dispunham de aparelhos de comunicação e mandavam de quando em quando infiltrados à cidade para acompanhar o que se passava. Mas a matéria que os unia, a poderosa raiva ancestral, não se compadecia com uma existência medíocre de funcionários públicos, de vendedores no mercado ou mesmo de governantes. Eles preferiam distância dessa gente que se matava a trabalhar para alimentar o seu inimigo número um: a exploração. Absorviam as purificadoras e rizomáticas virtudes botânicas da floresta, a sagacidade do tempo, o aguçar do som e a luz disputada por todos os seres vivos. Era um processo de empoderamento em curso até que chegasse o dia da desforra dos revoltosos unidos.

Suspendendo a narração, o jornalista bebe mais um whisky do minibar e deixa o conto inacabado. Seria útil deslocar-se ao Parque Obô, como um colega do ambiente sugeriu, para dar concretidão às suas palpitações literárias. Mas a organização do evento no qual vinha integrado, interessada mais em networking do que propriamente no património rural, agendara para o dia seguinte um passeio ao Ilhéu das Rolas. Olhou para o programa. Constava um almoço com os senhores do patrocínio. Imprimiu o texto que tinha para ir acrescentando pormenores. Desce e encontra a amiga na receção. Quer contar-lhe um pouco sobre a comunidade insurgente que acabara de escrever, mas ela vem afogueada anunciando que os tais empresários com quem tinham conversado na véspera fugiam de avião à pressa sem explicação. Havia rumores de uma espécie de golpe de Estado, ou algo de amedrontar.

“O medo está por todo o lado”, disse o jornalista. “O medo não vai ter tudo”, responde a amiga, espirituosa. Deixam cair a incógnita da resposta, caminham pela marginal de São Tomé, ao longo da baía de Ana Chaves onde a espuma das pequenas ondas se torna florescente no denso escuro. Conheciam-se de Lisboa dos tempos da faculdade mas aquela situação constrange-o, a sua relação com gente endinheirada e influente. A amiga tem dificuldade em transmitir as suas humildes avaliações sobre assuntos da terra quando algum português recém chegava. Era tudo demasiado superficial nas apreciações e nos juízos de valor de quem não estava tempo suficiente na ilha para perceber certas subtilezas. Então escuda-se a grandes pensamentos, prefere concordar ou acrescentar informações àquelas banalidades da visão turística, que vai alternando entre o tom idílico ou reprovador.

6

De novo na piscina com o seu livro, o turista repara que há mais gente a ler o Equador também em frente à piscina. Fica frustrado com isso pois ele gosta de ser diferente dos demais. Ainda se sente a recuperar da pobreza e dos sorrisos das crianças nas roças. Endiabradas, a quererem fazer-lhe sentir-se culpado pelo bitoque e caipirinha que mandou vir. E ainda lhe oferecem orgulhosamente um cacau, coitadinhos, olha que bela riqueza geradora de tanto conflito.

Acreedita já ter acumuladas centenas de fotos de crianças, sorrisos rasgados, olhos inocentes, barrigas nuas, t-shirts da caridade rotas, brinquedos construídos pelos próprios. Mostraria as fotografias como um troféu aos amigos. Sem conseguir formular dessa maneira, sentia o potencial da pobreza e de como esses registos enternecedores funcionam sempre. As crianças são o mais fácil rosto para esse nome gasto, pobreza.

Porém, sente-se ligeiramente desiludido com as suas férias. Pensa em dar uma volta pelo ilhéu.

— Além da linha do Equador e das praias, que há para fazer por aqui? - pergunta na receção.

— Pode fazer mergulho.

— Hmmmm… E não há nenhum ponto alto para tirar fotografias?

— A grande atração do ilhéu, a linha do Equador, é alta. Também há um farol lá em cima, mas sem acesso a turistas.

Depois de um “obrigado” contrariado, o turista pôs-se a andar. No seu passo vai pisando as folhas maduras da encosta até ao farol cismando que era um turista diferente e ia a sítios onde os turistas não põem os pés, e devia ler livros que os outros turistas não liam. Que raio de ideia ler o Equador do Sousa Tavares em São Tomé… Estas pequenas desobediências correspondem à sua grande adrenalina. Segue por um ziguezague a pique, distraído a pensar que as botas de montanha agora estreadas eram mesmo de qualidade. 

Dá de caras com o farol. Um silêncio toma logo conta do ar.

O turista está convencido que ia entrar na casa do farol e subir as escadinhas em caracol para poder ganhar a amplitude de vista que as suas fotografias pediam. Sentia que merecia essa panorâmica. Ficou por uns momentos a rondar a entrada. Fizeram-se ouvir os passos do faroleiro.

— Boa tarde, não se importa que suba só por uns minutos para tirar umas fotografias?

O faroleiro, homem de poucas palavras como todas as pessoas dos fins-de-mundo, acedeu, e abriu-lhe a sua casa. Não gostava de visitas mas olhava com indiferença para o turista franzino, todo equipado com máquinas, chapéu e botas de aventura.

— O senhor mora aqui sozinho?

O faroleiro já esperava essa pergunta, habituado ao pasmo das pessoas com a sua resistência à solidão. Na realidade, o turista sentiu essa necessidade de perguntar qualquer coisa ao homem, fingindo-se interessado enquanto faz as suas panorâmicas.

— Sim, há 19 anos. E gosto. - avança logo pois sabia que essa era a resposta à pergunta seguinte. — Tenho um rádio, vou-me informando, os meus filhos vivem na capital. Tenho tudo o que preciso: paz e sossego.

O silêncio em que aquela pessoa vive perturba o turista. É-lhe impossível perceber o valor daquele silêncio que possibilita pensar em tudo o que há para pensar quando não há nada para pensar.

— Valente! - E desce as escadinhas, acena um seco “adeus” ao faroleiro, decidido a voltar para as águas plácidas da piscina.

7

No regresso para o bungalow, o turista cruza-se com o grupo que acaba de aportar num barco fretado só para eles. Têm ar de quem não estava necessariamente a fazer férias mas de quem usa a realidade que observam para: documentar, criar e exibir. Dirigem-se ao restaurante onde os espera lagosta e conversas sobre as particularidades dos países lusófonos. São santomenses, portugueses e angolanos, gente seleta sem deixar de ser espalhafatosos.

— Parece que são mais do sector de turismo cultural.-  confidenciou-lhe o chefe de sala.

O turista vai à casa de banho do restaurante e apercebe-se de umas folhas com uns escritos a computador dentro de uma pastinha junto à porta. Ainda dá uma vista de olhos a ver se é de alguém acabado de sair da casa de banho. Está quase a entregá-las ao chefe de sala mas fica curioso e, pelo sim pelo não, guarda as folhas. Vislumbra ao fundo um rapaz de óculos que remexe na mochila à procura de qualquer coisa. Deve er ele o dono das folhas mas não vai perguntar-lhe. Mais tarde le-as, na apetitosa cama de lençóis diariamente mudados pelas simpáticas empregadas que ganham um décimo do salário mínimo do seu país.

Nessa noite, talvez por causa do peixe-andala ou porque a mulher não atende as suas chamadas, tem um estranho sonho. Uns escravos fujões naufragam no ilhéu, jogam capoeira, dançam bulauê, exibem escarificações e caras raivosas. Tudo se mistura nas parcas referências culturais do turista. Alguns deles usam até fato, gravata e óculos de marca cara, devem ser empresários e políticos. Aterrorizam os turistas com raiva e sátira. No meio do motim, um deles chama o empregado do resort e ordena efusivamente que encha a piscina com champanhe. O empregado cumpre a demanda, sem qualquer estranheza. Despejadas, uma a uma, as centenas de garrafas de espumante para dentro da piscina, as pessoas são para lá atiradas boiando nas bolinhas espirituosas do champanhe. Os revoltosos deixam o resort e entram pelo ilhéu a dentro, subem ao farol para um estridente grito de vitória.

No dia seguinte, o turista acorda estremunhado. O pacote da agência concedia apenas uma semana na isla bonita. O regresso ao aeroporto não deixa nada de assinalável na cabeça do turista.

Não reparou em Waldemar, de catana em punho de madrugada, a caminho da floresta para derrubar o ocá e construir uma canoa. Leva quatro dias para moldar a árvore e arrastá-la, navegável, até à praia. Impossível saber do cansaço de Josué no mar alto a pescar garoupa, peixe-andala, tubarão, a ser vendidos por tostões na praça. Desconhece quilómetros e quilómetros calcorreados pela Aissata a carregar banana e fruta-pão. O telemóvel do turista tirou muitas selfies com o Pico Cão em fundo mas ignorou a destruição da floresta para exploração de óleo de palma. Também não se importou que o ilhéu das rolas tenha sido comprado por um grupo hoteleiro que expulsou os seus habitantes, guardando as chaves do farol. 

in Roça Língua, Coletânea de Contos, editorial Novembro, 2014.

 

por Marta Lança
Mukanda | 1 Setembro 2022 | Amador, angolares, ilhéu das rolas, jornalista, resort, roças, São Tomé e Príncipe, turista