Amor em tempos de cólera - recensão a "O Planalto e a Estepe" de Pepetela

“A minha vida se resume a uma larga e sinuosa curva para o amor”, assim começa a viagem do livro O Planalto e a Estepe de Pepetela. Na infância prodigiosa na Huíla, um protagonista angolano de nome Júlio, branco e de olhos azuis, descendente de colonos madeirenses, começa a aperceber-se das estranhas categorias que sustentavam as mentalidades do tempo colonial. De como, onde ele via apenas pessoas, amigos, sem distinção de cor, as questões raciais eram predominantes. Assim como a diferença entre colono e colonialista evidenciada nos “que querem que os africanos sejam sempre inferiores, sem direitos de gente na sua própria terra.” Bom aluno, prossegue estudos para “doutor” numa Coimbra húmida e aborrecida. É-lhe atribuída posteriormente uma bolsa para Moscovo onde estuda economia lutando pela “emancipação dos povos do mundo”, imbuído no espírito de solidariedade afro-asiática, internacionalista e anti-imperialista, fortalecendo amizades entre camaradas africanos, na projeção de um mundo socialista e uma Angola livre.

fotografia de Bambafotografia de Bamba

É quando cai perdido de amores por uma estudante mongol, Sarangerel, filha do Ministro da Defesa da República da Mongólia, cuja vida é vigiada por uma suposta colega que informa o severo pai com relatórios pormenorizados, que os problemas iniciam. O regime tem rigorosas normas que impossibilitam relacionamentos com estrangeiros, quanto mais sendo o caso de um africano provindo de um país colonizado. No entanto, a rapariga engravida e o casal acha-se numa tal complicação, lutando em vão por todos os meios para poderem ficar juntos.

Na sequência de uma passagem por Argel e pelo Congo Brazaville, Júlio regressa a Angola para combater contra o colonialismo português, presencia actos com os quais não concorda mas preserva, enquanto pode, os seus princípios. Já o seu amigo congolês Jean-Michel, morre antes de ver ou de participar na degeneração do sonho socialista. Assistimos à vertigem e freqüência com que perde amigos, por várias e tristes razões. O narrador não se priva de apontamentos críticos, como a fuga dos cérebros e o esvaziamento da dignidade que sociedades oprimidas implicam. Males diagnosticados em reflexões como esta: “poucos hoje em dia viveram as experiências de colonizados ou de escravos, que significa exatamente a não existência, o terem sido de repente apagados da vida, da memória, transmutados em não-seres humanos.”

Pepetela refere em entrevistas que há coincidências auto-biográficas, avançando que a personagem Júlio é baseada num amigo da sua adolescência, com um percurso semelhante ao seu, com quem estudou no Lubango e que o acompanhou para Portugal (Lisboa e Coimbra), tendo o autor partido daí para França e o amigo para Marrocos e Moscovo, dando-se um reencontro entre eles mais tarde em Argel.

Com uma clareza transversal à estrutura narrativa, e a descrição ritmada que não dispensa a habitual ironia, o narrador (o já referido protagonista) põe a nu uma série de incongruências da ideologia da época, na sua componente internacionalista, de se aplicar a martelo a cartilha marxista, as lutas de poder e a pressão psicológica, “em tempos de Guerra Fria paranóica e de espionagem exacerbada”. Revela um olhar implicado, de quem viveu por dentro estes conflitos que geraram muitos sonhos e lutas mas também muitos erros, nem sempre reconhecidos, a par de frases atenuantes de um contexto meio delirante como “as discordâncias não existem em certo tipo de sociedades ou regimes”.

Se o romance poderá parecer enveredar por caminhos trilhados de desencanto e nostalgia, ressurge a possibilidade do reencontro do amor nunca esquecido. Nisto, parece desenhar-se a defesa de que a felicidade pessoal e os sentimentos pelos outros, em contextos de aceleração e reviravolta da História, são afinal mais perenes do que as flutuações ideológicas e a difícil mas desejada coerência nas práticas políticas. “Quando a pretensa revolução desmoronou, assistindo eu a toda a espécie de oportunismos, de ambições escondidas, de traições, a esperança louca nesse amor me deu força de desejar sobreviver.” Esta é estória de um grande amor em Moscovo, de promessas roubadas a uma geração lutadora e agente da sua própria traição, memórias que merecem ser reavidas para percebermos também as complexidades da História pós-colonial.

por Marta Lança
A ler | 22 Novembro 2011 | literatura angolana, Pepetela, socialismo