Meirinho Mendes, um actor do excesso

No princípio da quente década de 70, o Meirinho nasce na cidade de Luanda. Aí passa uma infância fantástica pois, na perspectiva de uma criança, aquela “era uma cidade equilibrada, onde se brincava na rua e acreditava que aquele era o lugar onde sempre iria e desejava viver.” Já do ponto de vista familiar e político-social, Luanda era uma cidade conturbada. Então aos 14 anos vai passar seis meses a Portugal. Tal como muitos jovens angolanos cujas famílias desejavam proteger da situação de guerra e instabilidade social que se vivia no país, ia colocando um pé fora de Angola. Mas ainda não era a hora e retorna a casa por cinco anos, e só rumará de novo a Lisboa para ficar já homem feito, com 19 anos. O gosto pela aventura, lançar-se às oportunidades, acreditar e ter talento em potencial, eram as suas ferramentas para agarrar o destino.

Pergunto-lhe como foram essas primeiras experiências no estrangeiro. “Da primeira vez foi difícil pois era muito jovem e vim para um território desconhecido que me separava da família. Da segunda, já foi por vontade própria. Vim em busca dos meus sonhos, o que acabou por se concretizar.”

Que sonho era esse? Seguir teatro. E para isso Meirinho transformou o que a vida lhe foi proporcionando em experiências interessantes. Apesar de se considerar sempre em formação, esta foi-se dando em diferentes etapas, num vértice entre Angola, Portugal e Espanha. O início da carreira de teatro acontece ao entrar para o elenco do grupo de teatro infantil BÁBÁ que actuava na Barraca, em Lisboa. Ali ficou cerca de quatro anos a representar peças infantis. Depois passou por teatros clássicos como o D. Maria II, o São Carlos ou o Teatro São João, no Porto. Quanto a trabalhos marcantes destacam-se “Edmond” de David Mamet, com encenação de Adriano Luz, “La Isola Desabitata” de Joseph Haiden, com encenação de Luís Miguel Cintra, na grande escola de representação e dramaturgia que é a Cornucópia. Uma experiência na revista no Maria Vitória, Parque Mayer e outra com um dos mais dinâmicos e ousados grupos de teatro português, o Bando. Entrou em algumas séries televisivas (com Jorge Queiroga), para perceber que gosta mais de teatro. Depois foi para Espanha, onde também fez séries, e trabalhou muito como contador de histórias. Em terras castelhanas ampliou horizontes e dedicou-se à formação: entrou para o curso de teatro e cinema da faculdade autónoma de Madrid, frequentou cursos de coreografia, clown e de contador de histórias na Accion Educativa de Madrid. Trabalhou com alguns encenadores e realizadores espanhóis. Em cinema entra nos filmes angolanos “O Comboio da Canhoca” de Orlando Fortunato e “A Cidade Vazia” de Maria João Nganga.

Recentemente uma nova experiência nos áudio-visuais: empenhou-se activamente na criação do primeiro canal privado de televisão em Angola, a T.V. ZIMBO, como director de actores, casting e selecção, na revisão dos guiões e como actor.

Mas foi mesmo na sua terra natal que toda a aventura de representação começou. Elinga Teatro, início de muitos sonhos, ponto de encontro de talentos e expectativas, reencontro de angolanos que, como Meirinho, viajaram e colheram no estrangeiro instrumentos para os seus ofícios artísticos. Na sua persistente veia cultural, numa cidade que escasseia de ofertas culturais e escolas de arte, este espaço da baixa luandense é a plataforma estratégica para o desempenho de alguns jovens angolanos. Além do grupo de teatro que vai sempre formando novas pessoas, há um contágio saudável e informal de conhecimentos,  iniciativa e experimentação por todos os que lá passam.

“Aproximei-me deste espaço por intermédio de um actor, o ‘Válvula’, que era meu professor de natação e descobriu em mim potencial para esse universo artístico, o do teatro.” Meirinho conta este facto, corroborando a velha história que reza assim: se não houver alguém na hora certa atento aos nossos sinais, bem que se pode passar toda uma vida à margem da uma verdadeira paixão, destino ou vocação. Os outros serão sempre o nosso melhor espelho. E ao longo deste percurso teatral, o contacto e trabalho intenso com alguns homens de teatro foram fundamentais para o seu desenvolvimento como pessoa e actor. José Mena Abrantes, Rogério de Carvalho, Federico Martin Nebras, Rui Pisco, João Brites, Maria João N´ganga, Eleonore Didier são alguns nomes. “E todos aqueles que directa ou indirectamente contribuíram para que a minha comunhão com o teatro fosse um facto”, acrescenta.

Vive Angola com a maior naturalidade, e numa ligação constante. A ela regressa regularmente para trabalhar e rever as pessoas de quem gosta. Sente responsabilidade social pelo país. “Tenho necessidade de dar o meu contributo na reconstrução da identidade cultural angolana, apesar de muitas vezes não ser fácil por falta de uma maior consciência e apoio às artes em geral e ao teatro e cinema em particular.” Assim se posiciona.

Meirinho gostava de continuar a fazer o seu trabalho de uma forma mais activa e engajada,  “contribuindo para a construção de uma sociedade pluricultural e dinâmica do ponto de vista da actividade criativa.” É deste modo que se oferece para partilhar a sua experiência com Angola. Considera o teatro mais vulgarmente praticado em Angola – o dos grupos de bairro, auto-didactas e amadores – um ponto de partida importante, mas lembra que os passos seguintes são fundamentais. “É preciso algum investimento a nível da pesquisa, direcção, formação, produção e uma política que enquadre e apoie essas coisas.” Talento é o que não falta!

No mundo cultural angolano, Merinho Mendes acha prioritário o “resgate, análise e divulgação da história cultural angolana e africana que se tem perdido ao longo dos tempos, por consequência das várias guerras e processos de colonização que o continente tem sofrido, e em particular Angola.” Toda esta violentação e dificuldades que Angola teve em mãos “leva a que exista um fosso de mais ou menos quatro décadas em que parte da nossa identidade cultural foi fortemente abalada, e abordada como algo secundário.” A cultura é de uma importância vital para harmonizar a sociedade e criar valores sólidos. “Um povo que não preserva a sua cultura perde, consequentemente, a identidade, base dos valores, e acabamos por recorrer apenas ao lado material e ao consumismo desmesurado”, diagnostica o actor numa sociedade angolana actual que vive um certo desnorte, devido ao capitalismo voraz.

Nos últimos tempos, o projecto da peça “Formigas”, com encenação do Rogério Carvalho e texto de Boris Vian, significou uma viagem imensa aos princípios e intenções do teatro, através de todo o processo de concepção, ensaios, e culminando nas intervenções. “Tem sido um processo bastante exigente, desde a montagem, pelas características do texto e pelo conceito de teatro do Rogério, que me obriga a pensar no teatro muito para além daquele trabalho. Por outro lado, é bastante compensador pela relação de partilha de conhecimentos e de amizade profunda que estabelecemos entre os três, eu, ele e a Dulce Baptista.” Este projecto foi produzido pela Fundação Sindika Dokolo, com quem Meirinho Mendes tem colaborado, desde a 1ª Trienal de Luanda, actualmente em curso 2ª edição. Actualmente, Meirinho ocupa-se da digressão de “As Formigas” por alguns países, tendo já representado em França, Portugal, no Brasil, e por províncias de Angola. Mas projectos não faltam: está a montar duas peças novas, com o Miguel Sermão e outra com o Rogério de Carvalho, e estreia-se na produção do seu primeiro filme.

Meirinho tem convicção na voz, um olhar forte, um corpo seco que se impõe e uma impetuosidade às vezes provocadora. Não atura o que não gosta. É um actor com muita vitalidade: a sua energia, transbordante, tem de ser trabalhada em sintonia, às vezes difícil, com a disciplina que o teatro exige. Porque Meirinho é uma pessoa do excesso. Mas isso, canalizado para o teatro, pode ser algo genial. Há uma frase de Stanislavski, escolhida por ele, que simboliza bem como o acto de representar se aproxima da vida: “Em nossa arte é preciso viver o papel a cada instante que o representamos e em todas as vezes. Cada vez que é recriado tem de ser vivido de novo e de novo encarnado.” Numa profissão de risco permanente que é a do actor, dependente da força que transmite nos gestos e palavras, emocionalmente exigente, a insegurança às vezes assola. Põe-se muita intensidade na vida e no palco, o que consome as pessoas que levam a sério esse risco. Para as angústias, todos temos os refúgios que nos socorrem. Meirinho reconhece que aquilo que mais lhe dá estabilidade, é “o amor e confiança da família, companheira, filho, irmãs e irmãos, pai e mãe e aqueles amigos de verdade que nunca puseram em causa o valor da minha amizade por eles.” E assim prossegue a sua luta.

 

in AUSTRAL nº 81, artigo gentilmente cedido pela TAAG - Linhas Aéreas de Angola

por Marta Lança
Cara a cara | 29 Novembro 2010 | Elinga Teatro, Rogério de Carvalho, Teatro em Angola