Teatro em Angola, uma brevíssima síntese

O director do Colectivo Henrique Artes, Flávio Ferrão, vencedor do Prémio Nacional de Cultura e Artes 2013, anunciava em 2015 ao Jornal de Angola que o grupo iria suspender actividades por problemas financeiros. No activo há 15 anos, o director lamentava que a duração do grupo se desse apenas graças à persistência e esforço dos membros da Companhia, acrescentando: “A maioria dos grupos tem problemas semelhantes, assim como a inexistência de uma sede condigna ou um lugar para actuar. Às vezes o que se gasta na realização de um espectáculo não é compensado”. A estas condicionantes materiais acrescem a frustração, o desgaste emocional, a desmotivação e o descrédito. Consequentemente, vai-se perdendo o profissionalismo, assim como a assiduidade aos ensaios, desembocando em ausências nos festivais internacionais. Tais sintomas não podem ser desvinculados da falta de estratégia concertada das políticas culturais que deveriam contemplar financiamento regular às companhias, de acordo com critérios de qualidade e de distribuição nacional, assim como garantir a profissionalização do meio, estipulando metas de carreira, regularizar aspectos laborais e assegurar infraestruturas. Serve esta introdução para contextualizar que falar de teatro em Angola é quase sinónimo de lamentar a falta de teatro em Angola. Porém, apesar dos pesares, vale a pena fazer um levantamento muito sucinto que dê conta das pontas soltas que têm mantido o teatro angolano vivo nestes 41 anos de Independência.


Do que se conhece, e sabemos que isso pressupõe que o que ficou para a História foi a história dos dominadores, a introdução do teatro (um certo código de ritual performativo que se diferenciava de tantos outros praticados) em Angola deve-se aos missionários. No interesse de evangelizar o pagão africano e torná-lo filho de Deus, a igreja sempre se serviu de representações religiosas, realizadas em escolas de missionários cristãos pelo país afora. A Igreja teve um papel de relevo no contacto inicial com o teatro, mantendo, na actualidade, esse forte ascendente sob vários grupos teatrais: só em Luanda são mais de cem os coletivos ligados a Igrejas.

É disso exemplo o Colectivo Miragens Teatro, fundado em 1995 numa comunidade religiosa (São Luís), no Bairro Rangel, uma das periferias de Luanda de onde surgem muitos kuduristas e talentos espontâneos. No site de apresentação, Miragens refere que pretendem “usar o teatro para informar, formar e recrear com base no trabalho de profunda pesquisa, sobre a história de Angola, o que [o] levou a ser considerado um ‘grupo-escola’, uma vez que traz sempre dados científicos, e não só, nas suas obras.” Trazer “dados científicos” ou “verdadeiros”, uma mensagem de redenção ou de bons costumes. Para estes grupos o teatro tem obrigação de documentar e de agir sobre a realidade, não prescinde de propósitos sociais ou metafísicos. Ensinar “bons” comportamentos (prevenir o HIV, apelar ao estudo, condenar a violência doméstica, divulgar as tradições), defender valores morais e familiares ou resolver questões existenciais, deste tipo teatro espera-se uma função especializada ou a sua instrumentalização (política e outras) para chegar a determinado fim. A ligação à Igreja tem-se feito sentir desde o tempo colonial durante o qual, se foram desenvolvendo parcas e dispersas expressões teatrais. Veja-se que a única peça de autoria angolana publicada antes da independência, que se conheça, aborda, nem mais nem menos, o nascimento de Cristo.

'Louco por mulheres', de José Silveira, Miragens Teatro 'Louco por mulheres', de José Silveira, Miragens Teatro

O teatro praticado nos anos imediatamente a seguir a 1975, num país que renascia do jugo colonial e se dizia socialista, revelava uma tendência institucional e claramente engajada no discurso político. Surgiram alguns grupos de existência efémera e de atividade irregular. Ligados à Secretaria de Estado da Cultura, por exemplo, houve o GAT (Grupo de Animadores de Teatro), o GIT (grupo de Instrutores de Teatro) e o GET (Grupo Experimental de Teatro) que não tinha muita atividade embora o elenco e os técnicos fossem assalariados. Nessa altura, conta-se ainda com o Kapa-Kapa, grupo tutelado pela UNTA (Central Sindical) e, como prelúdio dos grupos independentes, o Tchinganje e o Xilena. Em 1976, a Secretaria de Estado de Educação e Cultura criou uma Escola Nacional de Teatro e Dança, mas sem grande eficácia. Algumas pessoas foram enviadas para o estrangeiro para ter formação na área, por exemplo para o IFICT (Instituto de Formação, Investigação e Criação Teatral) em Lisboa mas poucos voltaram, ou não deram continuidade à actividade teatral. Também se recorreu à contratação de formadores estrangeiros, em especial vindos do Brasil e de Cuba.

A partir dos anos 80, o movimento teatral ganha fôlego muito pela mão de estudantes, com a criação dos grupos: Os Makotes, da Escola 1º de Maio, da Faculdade de Medicina, o Horizonte Nzinga Bande (1986), da escola homónima, o Oásis e o Elinga Teatro, que provinha da filiação de Tchinganje e do Xilena.

Desde então, na conjuntura difícil e prolongada da guerra civil, inacessibilidade e recursos nulos, foram poucos, mas resistentes, os grupos que conseguiram manter a actividade, apresentando espectáculos, incentivando acções de formação e procurando, sempre que possível, o intercâmbio internacional. A maioria são auto-empreendedores e de bairros periféricos, encenam-se a si próprios sem meios técnicos nem formação, com um imenso voluntarismo. Da década de 1990 até hoje podemos destacar o trabalho de Júlu (1992), Etu-Lene (1993) com a peça O Feiticeiro e o Inteligente, Miragens (1995) com a peça 4:30, Henrique Artes (2000) com a peça Hotel Komarca, o Pitabel (2001) e Nguizane Tuxicane.

O Elinga Teatro de Luanda é, no contexto geral, uma excepção de persistência num determinado tipo de teatro mais de autor. Apesar das carências regulares em Luanda, como a falta de energia, transporte, um elenco intermitente, já apresentou mais de 40 produções (em 28 anos), sendo a maioria peças da autoria de Mena Abrantes, encenador do grupo, mas também de outros angolanos como Pepetela, Ondjaki e Manuel Rui, ou estrangeiros como Jean Anouilh, Amin Maalouf, José Saramago, os brasileiros Plínio Marcos, João Cabral de Melo Neto e Alcione Araújo; os espanhóis Garcia Lorca e Alfonso Castelao; o inglês Peter Shaffer; o norueguês Henrik Ibsen e o sul-africano Percy Mtwa.

Não falta teatro nas escolas, nas empresas e nas (omnipresentes em África) ONG com as suas peças de sensibilização para as causas que também as alimentam. Existe uma imensa proliferação de grupos (só em Luanda há 125 grupos amadores) que se apresentam quase diariamente. O entusiasmo e vontade de fazer teatro, em salas improvisadas e clubes de bairro, são arrebatadores. Numa fórmula que só vinga se arrancar da plateia muitas gargalhadas com cenas de pancadaria se a mulher não cozinhou o funge ou com as trapalhices durante o Comba (óbito), ou piadas sobre as meninas de programa em troca de saldo para o telemóvel, as manobras do feitiço, juntamente com algumas críticas não muito mordazes aos poderosos, acusação à delinquência juvenil, violência doméstica, álcool, droga e outros problemas-hábitos sociais, insistindo nos mesmos temas… este é o tipo de enfoque dos grupos que compõem a maior parte do panorama. Sem meios técnicos nem formação, mostram uma impressionante persistência em fazer teatro mas, na falta de referências, o desconhecimento da história universal do teatro, o facto de não terem estudado ou raramente poderem assistir a outro tipo de peças, os modelos ficam numa espiral que os impossibilita de sair daquele imbróglio. As mesmas técnicas, personagens-tipo e fórmulas de sucesso repetem-se até à exaustão. Muitas vezes são os próprios que escrevem os seus textos dramáticos, vivem muito da improvisação e da auto-encenação, quase sem cenários e sem obedecer às mínimas convenções teatrais de tempo e espaço.

Lembremos ainda a falta de infra-estruturas. As salas de teatro contam-se pelos dedos de uma mão e muitas padecem de falta de manutenção e de equipamento técnico. Sem o Cine Teatro Nacional do espaço Chá de Caxinde, uma das principais atualmente interditada pelo MINCULT, ficamos com a LAASP e o Elinga Teatro, que a qualquer momento pode ter o mesmo triste destino do saudoso Teatro Avenida e o Auditório Pepetela do Centro Cultural Português. Recentemente foi recuperado o hotel Luanda, onde se instalou o Centro Cultural Brasil/Angola. Nos últimos tempos, foram deslocados alguns espetáculos para fora do centro, e assim algumas apresentações decorrem no Hotel Plaza (em Talatona) ou no Hotel Belas-Shopping.  

José Mena AbrantesJosé Mena AbrantesEm termos de dramaturgia, Mena Abrantes, Henrique Guerra, Pepetela, Domingos Van-Dunnem, Agualusa, Fragata de Morais são autores de textos explicitamente teatrais. Com a riqueza e potencial dramatúrgico da literatura angolana, têm sido feitas adaptações de Uanhenga Xitu, Pepetela, Manuel Rui, Ondjaki, Óscar Ribas, João Maimona, Botelho de Vasconcelos, Roderick, Albino Carlos e Boaventura Cardoso.

 

Dois nomes incontornáveis da encenação, cuja longa carreira acompanhou várias gerações de atores: o incansável Mena Abrantes (dramaturgo, encenador, e estudioso do teatro, fiel à sua companhia Elinga Teatro) e o imenso Rogério de Carvalho, que tem trabalhado mais em Portugal, sem companhia fixa, original e exigente no seu método de trabalho, de ousada abordagem estética e atravessado por uma profunda reflexão sobre teatro.

É de destacar também o trabalho de Adelino Caracol, do Horizonte Njinga Mbande e alguns encenadores da nova geração, que ganharam até o Prémio Nacional de Cultura e Artes. São eles o Walter Cristóvão (do Miragens), Frampénio (do Enigma), Bi Rodrigues (Pitabel) e Flávio Ferrão. No Huambo, o Nhanga, do Vozes de África.

Em termos de actores profissionais de teatro (que podem esporadicamente entrar em telenovelas sendo o teatro a sua actividade principal) falamos de Miguel Hurst, Orlando Sérgio, Daniel Martinho, Meirinho Mendes, Raul Rosário, Dicota, Matamba Joaquim, Giovanni Lourenço – alguns trabalhando entre Angola e Portugal. Podemos observar no boom de produção audiovisual em Angola, especialmente a ficção no formato de telenovelas e séries, um grande impacto na formação de actores e na produção de peças com mais qualidade, pelo rigor, disciplina e importância social conferida ao actor, que acaba por transportar para o teatro. Ultimamente, uma das estratégias é precisamente trazer estrelas de televisão para as peças como recurso para atrair públicos.

É notória a ausência de profissionais do espectáculo no feminino. O projeto “Cena Livre Teatro” fez em 2010 o primeiro monólogo representado por uma actriz. Em “A Vítima”, Marlene Zaide deu corpo a Juci, uma jovem de 25 anos oriunda de uma família humilde que faz das relações com homens bem posicionados social e financeiramente a sua arma. Os conflitos familiares, a violação, a depravação moral e a própria morte são situações que a personagem enfrenta no exercício da prostituição. Outro monólogo feminino foi o Mel Gamboa na peça “Órfã do Rei”, de José Mena Abrantes, dirigida pelo grupo  Henrique Artes.

'Hotel Komarca', grupo Henrique Artes'Hotel Komarca', grupo Henrique Artes

A formação tem-se feito muito através de workshops pontuais, alguns com actores brasileiros ou portugueses. O Complexo das Escolas de Artes, em Camama, dirigido pelo artista Van, oferece a formação de quadros a nível médio nos domínios das Artes Visuais e Plásticas, Dança, Música, Teatro e Cinema e apostou em alguns professores de teatro cubanos.

Para as companhias é muito importante poder levar o seu trabalho além fronteiras, mostrá-lo sem estas referidas condicionantes redutoras e ganhar referências teatrais. Os festivais são assim um estímulo para profissionalizar as companhias. Mesmo que as repercussões não se façam imediatamente sentir no trabalho, com a experiência da circulação vai-se apurando uma série de insuficiências e carências. Essa internacionalização credibiliza, desenvolve uma competição saudável, faz com que as companhias se disciplinem para ensaios regulares, pois integrar o elenco que se desloca a um festival é igualmente uma oportunidade para viajar e conhecer mundo.

Em termos de circuitos de festivais de teatro, em Angola existe o Festival de Teatro e Artes de Luanda (promovido pelo Elinga), o Festival Internacional do Cazenga e o recente  Festival Nacional da Cultura (Fenacult). A duas edições da Trienal de Luanda, produzidas pela Fundação Sindika Dokolo, também têm desenvolvido projectos teatrais de qualidade (nomeadamente com Rogério de Carvalho) e algumas intervenções artísticas próximas da performance. Fora do país temos, no Brasil, o Circuito de Teatro em Língua Portuguesa em S. Paulo, o FESTILUSO do Piauí, o FESTLIP do Rio, o veterano Festival Mindelact, em Cabo Verde, que já vai na 20ª edição. Em Portugal, o FITEI no Porto, o MITO - Mostra Internacional de Teatro de Oeiras, a MITe – Mostra Internacional de Teatro, em Lisboa (com a 1ª edição em 2015) e a importante iniciativa rotativa que foi a Estação da Cena Lusófona. Fora do espaço lusófono o Festival del Sur - festival dos três Continentes, das Canárias, envolvendo companhias da Europa, África e América. Isto só para referir alguns.

Como em todos os sectores culturais, os Festivais não fogem à regra do ciclo vicioso e dos monopólios dos territórios artísticos. As companhias que viajam mais são as que têm mais acesso à oportunidades, ou se dinamizam mais, por sua vez, se são os mais vistos naturalmente terão mais convites, e o ciclo repete-se. Mas trata-se de iniciativas que aprofundam o conhecimento e a troca, artística e cultural, entre a comunidade teatral.

Em Angola, o universo teatral mantem-se naquele estado de potencialmente, precisa de se agarrar com acções concretas que o façam sair de advérbio para substantivo.

 

Publicado originalmente no suplemento Mutamba, Novo Jornal, especial 40 anos de Dipanda (2015).

 

por Marta Lança
Palcos | 18 Julho 2017 | bairros, Dipanda, Elinga Teatro, grupos, Mena Abrantes, Rogério de Carvalho, teatro