Contra a Mudez das Paredes

Situada à beira do rio Tejo, no MAAT (Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia) que fica na freguesia mais marcadamente colonial que é Belém, encontramos a exposição Interferências: Culturas Urbanas Emergentes. Inserida nas celebrações dos 50 anos do 25 de abril, pretende comemorar “os 48 anos de democracia e de construção da Área Metropolitana de Lisboa”.1

Assim, e integrando o cenário cultural lisboeta, as obras dos muitos artistas e coletivos convidados a participar são abraçadas por diferentes públicos. Um dos propósitos será o de garantir a visibilidade e o apoio a culturas urbanas de onde advêm “projetos com um potencial transformador, uma vez que gestados nas/pelas comunidades, em especial nas chamadas periferias”.2

Numa tentativa de “expor diversidades” e “desocultar corpos e as suas histórias”3, os curadores Alexandre Farto (Vhils), António Brito Guterres, e Carla Cardoso procuraram integrar neste projeto jovens artistas a expressarem e mostrarem o seu trabalho além-fronteiras do bairro onde residem juntamente com artistas firmados no circuito de arte contemporânea, criando e promovendo sinergias, bem como a diversidade de expressões, movimentos e contextos. Esta articulação no que toca ao reconhecimento artístico é proveitosa para ambas as partes. Nutre os jovens artistas que começam agora as suas conquistas mostrando-lhes que não estão cingidos à periferia. Durante a montagem da exposição, António Brito Guterres foi recebendo vários convidados, um dos quais proferiu em conversa com o jornal A Mensagem que o seu bairro nunca estivera no museu.4 Trata-se pois de dar e criar alento, apoiando os novos talentos e urgências de transmissão.

Torna-se, portanto, imperativo colocar algumas questões: Qual é o objeto causador da interferência? Interferimos na cidade ou, pelo contrário, esta interfere no nosso desenvolvimento? Será a cidade um espaço seguro para todos, que nos permite explorar conforme as nossas vontades, ou esta definição não passa de um mito? E, ainda, como e porque é que existem pessoas que não se apercebem destas interferências?

Arte e Política de mãos dadas

Entramos na exposição pelo piso inferior do museu, e somos imediatamente confrontados com pedaços de tecido pendurados no teto, que pairam sobre nós como o fantasma do colonialismo que atualmente marca parte da cultura portuguesa. Os panos não estão em branco, têm faces duplas. De um lado observam-se fotografias de momentos, dir-se-iam memórias do coletivo Unidigrazz, do seu dia-a-dia e dos quilómetros que percorrem para chegar ao “centro”, está exposta a descentralização e a escuridão associada à mesma, a divisão notória entre classes sociais, umas que conseguem suportar o custo de vida exigido em Lisboa, e outras que se espalham por entre as periferias, todas unidas por uma linha, um comboio, um motivo: o de ser visto.

Entre viagens, ouvimos ecos do Hinu Digra de Tristany, adaptação do hino português, tendo em consideração as experiências e vivências bairristas e uma cultura suburbana, por vezes marginalizada, apenas compreendida por aqueles que a experienciam.

 

Heróis da linha, povo dread
Digras valentes e imortais
Levantai hoje de novo
Sem do custo ilegal
Entre as macumbas da memória
Rapazes, obi kel voz
Dos bongós vindo a nós
Nhoz manti coragi fitchado
Às lágrimas, às almas
Sobre a terra, sobre o mar
Às armas, às armas
Pela zona e vamos lutar
Depos de noz ainda é noz

— Tristany, Hinu Digra5

Com versos em crioulo de Cabo Verde, o hinu digra encontra-se escrito por detrás dos panos que expõe as fotografias, a dar-nos a mão, introduzindo-nos às restantes obras presentes na exposição.

Vista da exposição 'Interferências. Culturas Urbanas Emergentes', MAAT, 2022. Cortesia da Fundação EDP/MAAT. Foto de Bruno Lopes.Vista da exposição 'Interferências. Culturas Urbanas Emergentes', MAAT, 2022. Cortesia da Fundação EDP/MAAT. Foto de Bruno Lopes.

Encontramo-nos agora num espaço amplo e branco, prestes a ser preenchido com histórias e perspetivas e inundado por um público ansioso por decifrar que interferências são estas. Interferências pelas quais passamos e com as quais lidamos direta, ou indiretamente todos os dias na nossa cidade, talvez sem nunca termos parado para prestar a devida atenção e refletir sobre as mesmas. Neste espaço, o tempo pára, e somos convidados a tomar um lugar de escuta e discussão naquela que é a exposição mais politizada apresentada até hoje no MAAT.

À medida que avançamos somos levados a recordar um passado doloroso, fruto de ideologias e práticas colonialistas, através das muitas obras ali presentes, como é o caso da réplica de páginas do antigo jornal Independente. Lê-se na capa do jornal: “ALTA TENSÃO. Os serviços secretos investigaram os gangs negros e violentos em Portugal. O relatório é assustador”, as difamações e incitações ao ódio são acompanhadas de ilustrações de cariz racista e xenófobo. O relatório divide as pessoas racializadas em três grupos: zulus, raps e black boys. Dois anos depois da divulgação desta notícia, Alcindo Monteiro6 é assassinado, vítima de um crime de ódio, os advogados de defesa alegaram que Alcindo pertencia a um gangue, era violento e que ia atacar os seus homicidas. Até hoje não foi feita justiça. No entanto, muitos artistas escolhem homenagear a sua pessoa, como foi o caso de Fidel Évora e a sua obra a Dispidida. Composta por três molduras que albergam duas pinturas de um rosto negro imaginado pelo artista, Fidel “procura retratar a solidão sentida na noite do homicídio”7. A instalação é composta por um vídeo que se situa entre as duas pinturas, no qual observamos diferentes imagens complementadas por som, sendo o público levado numa experiência única e imersiva, por entre momentos de consciência e de incerteza.

Uma representação emotiva da vida na periferia

Passamos pelas obras de Ana Aragão, Carlos Bunga, Herberto Smith, G Fema, Kiluanji Kia Henda, Petra Preta, Tony Cassanelli (dos Aurora Negra), Wasted Rita, Xullaji, Julinho KSD e muitos outros artistas contemporâneos8. Artistas estes que nos vão preenchendo o quotidiano com os seus projetos e formas de comunicar cultura. Que estudam e aperfeiçoam os seus trabalhos para que o público possa retirar destes a informação necessária por forma a promover e efetuar mudanças na sociedade. Indo assim ao encontro de uma das premissas do projeto, “(…) refletir sobre que cidade, espaços urbanos e instituições artísticas e culturais podem ser construídas (…)9. Porque afinal, podemos e devemos educar-nos de diversas maneiras.

Até que notamos um padrão: os projetos do coletivo Unidigrazz espalham-se por entre vários planos da sala e cativam o olhar curioso. Tal como com os panos fantasmagóricos à entrada, que aludem à vida na periferia de um lado e o hino do outro, agora surge-nos uma réplica em miniatura da linha de Sintra sob duas perspetivas, diferentes mas complementares. O sol incide e ilumina esta ao nascer do dia, relembrando-nos que para os moradores da periferia o dia começa com o sol ainda escondido para que consigam chegar a Lisboa a tempo dos seus trabalhos. E a lua que se faz notar nos hipotéticos vidros do comboio, não fosse a instalação feita de cartão. Perfaz-se a travessia dos moradores da periferia, uma viagem repleta de ecos do hinu digra, que questionamos agora se os versos não estarão também grafitados numa das estações. É este recurso dual que se complementa e permite que a vida lisboeta funcione na perfeição, uma vez que os trabalhadores da periferia abrem as portas da cidade.

Composta por nove núcleos: Preâmbulo, Contra a Mudez das Paredes, Coerção, Resistência e Identidades, Desenho de Cidade: Comum, Nós por Nós, Cidade Rede, Direito ao Imaginário, e Padrão, a exposição consegue reunir num só espaço as dinâmicas promovidas por, e na cidade. Apesar do “lugar da arte em Portugal ainda ser circunscrito a um pequeno grupo de pessoas brancas”10, ao percepcionarmos as diferentes perspetivas e obras reunidas em torno de um só sentido, o de realçar as culturas urbanas, torna-se claro que também estas reclamam para si um espaço de fala. É, assim, de toda a pertinência que os museus e os curadores se adequem aos tempos e realidades, “encarando o seu próprio desconforto”11. É resultado desta adequação e trabalho com e para a comunidade o projeto Interferências. De modo a promover o envolvimento do público num espaço artístico regulamentado, diferente da experimentação urbana, foi também desenvolvida uma aliança com o Festival Iminente, e vários artistas, que em conjunto com a equipa do MAAT propuseram a organização de workshops12.

Vista da exposição “Interferências. Culturas Urbanas Emergentes”, MAAT, 2022. Cortesia Fundação EDP/MAAT. Fotografia de Diana Tinoco.Vista da exposição “Interferências. Culturas Urbanas Emergentes”, MAAT, 2022. Cortesia Fundação EDP/MAAT. Fotografia de Diana Tinoco.

Com a riqueza visual e auditiva presente no espaço, seguimos caminho com a atenção presa ao mais ínfimo detalhe, não deixando escapar qualquer pormenor, até que nos encontramos no meio de uma sala de família. Uma família que podia ser a nossa. Uma televisão acesa a rodar uma curta-metragem em loop, convida-nos a sentar na poltrona perfeitamente posicionada apenas a alguns metros. Sentamo-nos sem saber que estamos prestes a assistir ao testemunho de uma mãe cujo filho foi assassinado, aquela que é a infeliz realidade da família cuja sala invadimos… É esta proximidade com as instalações, neste caso do coletivo Unidigrazz, e a possibilidade de fazermos parte delas, que torna impossível equacionar o esquecimento de tudo aquilo que absorvemos.

Os efeitos críticos da montagem

Poder-se-ia dizer que a montagem da exposição chega a ser claustrofóbica e assoberbada de informação, no entanto, talvez fosse essa a intenção. A de deixar o público sem espaço para refletir no que via no momento, criar cacofonia e sincretismos vários. Talvez o desejo de que as peças fossem tanto observadas como sentidas, tocadas e ouvidas. Impõe-se também a questão da transposição de linguagens de rua para um espaço museológico. As dimensões da sala e as obras ali expostas, normalmente estariam pintadas e exibidas numa parede fora de um espaço institucional. É a montagem que sofre uma readaptação ao espaço, e não as obras que são condicionadas ao mesmo. Em momento algum foi retirada liberdade criativa, pelo contrário, acolheram-se as iniciativas dos artistas a propósito do enriquecimento do projeto. Se temos instalações de Ana Hatherly e de Kiluanji Kia Henda, dois nomes conhecidos na cena literária e artística, temos também o coletivo Unidigrazz e Diogo VII. Porque, tal como António Brito Guterres anuncia, “(…) isto não é uma cena comunitária, é contar a história de uma cidade a partir de várias vozes e quero que essas vozes sejam referenciadas como tal”13.

O olhar final

Encontramos vestígios de histórias contadas e outras por contar, que ainda agora iniciaram. Para terminar em grande, uma bandeira rosa-choque, com a frase Não foi descobrimento foi matança, obra do artista ROD. Saímos com sensação de termos aprendido mais sobre quem partilha a cidade connosco e o modo de o expressar. Infelizmente, nem todos sentimos as interferências. Algumas pessoas sentiram-se ofendidas com a exposição e criticaram a escolha das obras, nomeadamente a bandeira de ROD. Entre as explicações para a ofensa, existe um testemunho em comum, o da integridade do passado e respeito pelo país… Assim se entendem os efeitos duradouros do colonialismo, a importância da politização da arte e do debate sobre a cidade.

Vista da exposição “Interferências. Culturas Urbanas Emergentes”, MAAT, 2022. Cortesia Fundação EDP/MAAT. Fotografia de Pedro PinaVista da exposição “Interferências. Culturas Urbanas Emergentes”, MAAT, 2022. Cortesia Fundação EDP/MAAT. Fotografia de Pedro Pina

Merecedora de toda a atenção e visitas por ser imensamente relevante e intensa a nível cultural, político e social, esta não é uma exposição qualquer. É um lugar de encontro e reencontro com as nossas memórias e história dispostas… Após a visita não podemos deixar de explorar as temáticas abordadas e retornar ao espaço já com outro entendimento, para assim nos reunir-nos em torno do debate sobre a vida na periferia, o pós-colonialismo, o anti-racismo e a interligação entre todos estes temas. Temas estes que parecem estar finalmente a ser abordados e analisados na esfera mediática.

*Esta exposição esteve em exibição no MAAT entre 30 de março e 5 de setembro de 2022.*

Artigo originalmente publicado em WAAU a 2.11.2022

por Alícia Gaspar
A ler | 17 Fevereiro 2023 | arte, arte contemporânea, cultura, exposição, interferências, MAAT