“Ser mulher é como correr a maratona no deserto mas o chão é revestido de arame farpado, está em chamas e seguimos descalças”

Com a idade passei a olhar-me com outros olhos. Olhos traidores, por vezes. Explico, cresci numa sociedade que, também ela, cresceu com a introdução da tecnologia, também graças à contracultura. Uma sociedade “virada do avesso” em que quase tudo o que existia está extinto e inventam-se coisas novas para substituir as que foram destruídas, em que é difícil ser respeitada e, na qual, ser mulher é como correr descalça a maratona no deserto mas num chão revestido de arame farpado, em chamas. How nice!  

Arte Full Time Feminist.Arte Full Time Feminist.

Os Loucos Anos 2000

Aproveitei os meus anos de criança para fazer o que mais gostava - ver filmes. Podia ver o mesmo filme várias vezes porque era pirateado, apesar de os meus pais correrem o risco de ir parar à prisão por comprarem um DVD ilegal na feira da ladra. Eu estava ok com essas condições. No entanto, a alegria de ser menina numa sociedade para mim desconhecida, rapidamente apresentou os seus contras quando entrei na escola e os meus colegas ou me queriam roubar beijos ou o lanche. Golden age! 

Já mais tarde, com 13 anos, e ao entrar numa nova escola e ciclo comecei a deparar-me com padrões de beleza femininos irrealistas. No entanto, para mim e para a maioria das raparigas, não eram irrealistas. Ter uma pele perfeita, olhos verdes num dia e no outro roxos, o cabelo loiro puro e umas ancas largas mantendo uma cintura de 3cm era possível! E sem as tretas do Ómega 3. Claro que não eram precisos os milagrosos produtos por apenas 49,99€ o comprimido, existia algo ainda melhor e - atenção, atenção - gratuito! O photoshop. 

Desconhecíamos ainda a ferramenta que viria alterar tudo. 

Em alguns momentos da minha vida questionei-me porque me sentia diferente de todas as mulheres e raparigas que via online, tentava de certo modo adequar-me àquela realidade momentaneamente, felizmente não passei por graves “crises” em que sentia que tinha que mudar o meu verdadeiro eu, talvez devido à minha preguicite aguda… Mas a realidade é que a exposição de uma jovem adolescente a este tipo de conteúdo pode alterar em muito a sua mentalidade, a maneira como se vê, a maneira como se permite ser tratada, e a maneira como irá desenhar o seu futuro. 

De novo, olhos traidores, e porquê? Porquê atribuir uma conotação negativa à minha visão, se a culpa reside na sociedade e na maneira como esta cria e fortifica desigualdades? 

Queridos Media, Por favor Parem

A música sempre fez parte da minha vida, foi, e é através dela que me identifico e encontro paz. É na música que procuro consolo e é com ela que celebro quando me sinto alegre, então tento estar sempre a par do que alguns dos meus artistas favoritos gravam. 

Recordo-me do álbum (DAMN.) de Kendrick Lamar, lançado em 2017 e de uma música em particular intitulada “HUMBLE.”. Nesta track Kendrick fala sobre a questão do photoshop com uma simplicidade que marcou a sociedade ao desafiar os media a enfrentarem a realidade:

I’m so fuckin’ sick and tired of the Photoshop

Show me somethin’ natural like afro on Richard Pryor

Show me somethin’ natural like ass with some stretch marks.  

Imagem capturada do videoclip de Kendrick Lamar.Imagem capturada do videoclip de Kendrick Lamar.

Quando esta situação foi abordada por alguém com o reconhecimento mundial deste rapper, o assunto passou a ser finalmente endereçado com mais naturalidade nos media, ao invés de se tratar de um “bicho de sete cabeças”, ou de se fingir que não existia e que corpos irrealistas eram possíveis de atingir, levando as jovens a modificar o seu corpo natural através de cirurgias ou a limites ainda mais extremos que em alguns casos tiveram final infeliz.

Hoje em dia, apesar do problema se encontrar longe de resolvido, e por vezes parecer que damos 10 passos para trás enquanto sociedade, as mulheres estão a consolidar um espaço que é seu por direito, e encontram cada vez mais abertura, conquistada por si mesmas, para expandirem a voz sobre os mais diversos assuntos e serem agentes de mudança em todos os sectores da sociedade. 

There is no such thing as a Macho Man 

Chimamanda Ngozi Adichie nasceu em 1977 na Nigéria. Destaco-a aqui por ser uma das mais conhecidas feministas internacionalmente, e cujo trabalho na área da literatura e realidade cultural a distinguem. Após rever a TedxTalk intitulada “We should all be feminists”, uma das frases que se tornou quase hastag foi gender as it functions today is a great injustice

A palestra data de 2013, e a frase mantém-se - infelizmente - atual. A ideologia de género continua a ser utilizada como entrave para solidificar e promover desigualdades nas oportunidades entre mulheres e homens. Construiu-se na sociedade a ideia de que ser homem é ter um pass free card para o que se quiser fazer e, tal como Adichie nos elucida, os meninos são educados para se tornarem homens másculos e as meninas para serem mulheres submissas, disponíveis para servir o marido, os filhos e todas as tarefas de cuidado. 

Nesta forma de educar as crianças, há falhas que comprometem ambos os géneros e põem em causa o conceito de feminismo e a sua luta, uma vez que o conceito está ainda muito associado apenas a mulheres e bastante mal conotado e equivocado, disseminando-se nas redes sociais a ideia de que as feministas são feminazis - mulheres frígidas, que não conseguem arranjar namorado ou marido e que ambicionam arruinar a vida dos homens. 

Se tomarmos o significado de feminismo, e o que representa na vida de cada uma, e como todas/os o podem (e devem) defender, poder-se-ia, de uma vez por todas, acabar com as calúnias que apenas tentam arruinar o árduo trabalho de muitas décadas, desenvolvido por grandes mulheres que, mesmo não sabendo o que era ser feminista (exemplo da bisavó de Chimamanda Adichie), praticavam o ato de exigir os seus direitos e de lutar pela sua independência. 

Parece até surreal mas no dia depois de terminar a leitura do livro “Dear Ijeawele, or a Feminist Manifesto in Fifteen Suggestions”, também de Chimamanda Adichie, encontro-me à espera num fila e ouço uma conversa entre quatro pessoas sobre como “o lugar das mulheres é na cozinha”, porque elas não sabem trabalhar eficientemente e “demoram muito tempo a atender os clientes porque só sabem falar de cabeleireiros e unhas”, ao que os outros participantes acenavam em sinal de concordância. “Eu se tivesse uma empresa nunca iria contratar uma mulher”, dizia ela. A pessoa que iniciou a conversa com mais três homens era uma mulher negra brasileira. Infelizmente não é espanto para quase ninguém que existam mulheres que odeiam mulheres, e que desprezam as suas conquistas, no entanto tal como Adichie defende no livro mencionado, este problema, ao contrário do que as pessoas pensam não derrota nem invalida o conceito de feminismo, só demonstra o quão enraizado está o patriarcado, ao ponto de levar até mesmo mulheres a pensar que o lugar de outras mulheres (note-se que estamos em 2021) é na cozinha.

Fonte-MediumFonte-Medium

Não Nos Conseguem Silenciar!

Recentemente chegámos ao marco dos mil dias após a morte de Marielle Franco. Marielle era uma mulher negra, bissexual, política, defensora dos direitos das mulheres, mãe, irmã, filha… 

Marielle foi assassinada por ser um símbolo de resistência e porque a queriam calar, mas não a calaram, só ampliaram a sua voz que ecoa agora através de milhares de mulheres pelo mundo fora. O assassinato ordenado por alguém que ainda está em liberdade continua a ser amplamente mediatizado nas redes sociais. E ainda bem, esquecer Marielle é perdoar. Perdoar um crime atroz contra uma mulher que lutava pelos direitos de todas nós, não esquecemos nem perdoamos. 

Nós lutamos para que deixem de existir mais músicas com versos iguais aos do Kendrick, para que Chimamanda não tenha que explicar todos os dias o conceito de feminismo, para que mais nenhuma mulher seja vítima de nenhum crime, e para que se desconstruam pensamentos construídos com base numa educação apoiada em ideais patriarcais. 

Embora possamos sentir que nascemos condicionadas simplesmente por sermos mulheres, e em algumas sociedades a realidade é de facto mais nua e crua do que noutras, a nossa luta não pode nem vai ser travada, porque cada vez que uma de nós sofrer injustiças, lá estaremos para fazer justiça.

Quem não corre a maratona no deserto, descalço, cujo chão ardente é revestido de arame farpado, só pode tentar compreender o que é viver com os pés doridos, com feridas e queimados, mesmo que não lhe doa.

E, sempre que fingirem que não nos ouvem, os nossos direitos soarão mais alto.

Referências 

https://genius.com/Kendrick-lamar-humble-lyrics

https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/marielle-foi-morta-porque-era-negra

por Alícia Gaspar
Corpo | 24 Março 2021 | chimamanda ngozi adichie, corpo, feminismo, ideologia de género, Marielle Franco, mulheres