“Tornei-me quem sou pela relação de amor com a transgeneridade”, entrevista a Gaya de Medeiros
Gaya de Medeiros é artista, mais concretamente é bailarina, coreógrafa, produtora e dragqueen. Os seus trabalhos mais conhecidos são “É o amor outra vez, Proteína Desnaturada e After Party”. A Gaya é imigrante, brasileira, dirige o Atlas da Boca e fundou a plataforma BRABA para apoiar a comunidade Trans/ Não binária a diversos níveis, é também a primeira mulher trans a exibir um projeto no Teatro Nacional D. Maria II no âmbito do Alkantara Festival.
Parte da Gaya está “exposta” nesta entrevista através das suas palavras, pensamentos e desabafos.
Gaya, se tivesse de se descrever utilizando três palavras quais seriam?
Eu acho que… curiosa, curiosa pra caramba. Cara, tem umas palavras que dá vergonha de falar numa entrevista que vai ser lida por muitas pessoas… Eu gosto de jogar, jogadora, vamos botar jogadora porque amplia mais as áreas do jogo (risos), e digamos também que eu sou…confusa.
Confusa, interessante adjetivo…
Eu sou muito indecisa, sempre sou muito diplomática, sabe? Eu vejo um lado, depois vejo o outro e, às vezes, para me decidir por um lado ou por outro é difícil. Então eu sou confusa.
Encontramos essas três características na sua peça, Atlas da Boca?
Um bocado delas, mas a confusa é a que eu consigo manipular porque até lá eu já consegui decidir tudo o que tinha pra decidir. Digamos que a parte do jogo e a parte da curiosidade estão bem presentes. (risos)
Como é ser mulher trans em Portugal?
Eu não me considero muito puramente mulher trans porque no Brasil a gente costuma se chamar de travesti, algumas pessoas se chamam de transvesti, não tem o mesmo contexto que aqui em Portugal, de falar que é um homem vestido de mulher. No Brasil travesti é mesmo uma mulher trans, mas também envolve um contexto político e é uma palavra muito mais generalizada.
Assim como aqui “paneleiro” é uma palavra muito marginal, digamos que não é a palavra ideal pra chamar a um homossexual, no Brasil travesti também tem essa carga, então a gente usa um pouco dessa palavra para reafirmar novas travestilidades e transgeneridades. Às vezes, vê-se a palavra “mulher trans” como um termo que é um pouquinho mais higienizado, embranquecido, mas que é igualmente válido para muitas, tem muitas que se denominam como mulheres trans. Eu gosto de me denominar uma travesti porque para mim eu não sou homem, eu não sou mulher, eu sou uma travesti, e isso já é um complexo de coisas que acontecem internamente.
Hoje em dia, ser uma mulher trans, uma travesti em Portugal é um bocado privilegiado porque se fosse no Brasil eu estaria correndo muito mais risco na rua. As condições políticas no Brasil exacerbaram o ódio e a manifestação de violência, então para mim é um lugar seguro transicionar aqui em Portugal. Portugal já me recebeu no meu feminino, como minha drag queen, poucas pessoas me conhecem pelo meu nome morto. Eu me vejo como privilegiada transicionando aqui nesse país.
Não estou falando que é maravilhoso! É lógico que os machistas e os conservadores estão em todo o canto, né? Mas aqui existe um contexto político e social que me preserva um pouco mais.
Em que ano chegou a Portugal?
Eu vim para cá em fevereiro de 2019.
Que mudanças na sociedade identifica como mais visíveis tendo em conta esse tempo?
É muito complicado porque eu cheguei aqui ainda sendo lida como um menino, cheguei num contexto ainda antes da pandemia, e hoje depois de ter passado esse período todo de enclausuramento e agora de volta à vida, eu ainda não consigo identificar muito os padrões. Acho que em geral, não só aqui, eu sinto que é muito mais mediático o tema da transgeneridade.
É muito mais conversado e ao mesmo tempo que sinto que é uma temática um pouco cansada, um pouco desgastada nas mesmas narrativas, e o meu trabalho aqui em Portugal e no Atlas da Boca é tentar renovar essas narrativas, é falar assim: nem todas as travesti, nem toda mulher trans vai se identificar pela dor, pelo problema com o corpo, pela não aceitação, pela disforia.
Eu me tornei a pessoa que sou hoje pela relação de amor com a transgeneridade, com a possibilidade de ser uma outra coisa do que ser mais um homem, branco, cis, gay, com uma série de privilégios. Se tornou muito mais rico e diverso poder existir dessa forma do que da forma antiga. Foi essa a minha razão de apaixonamento, mais do que falar assim: “Ah eu sou uma menina que nasceu no corpo de um menino”, essa não é a minha narrativa, não é isso que me identifica enquanto travesti.
O seu background consiste fortemente no amor e na construção do mesmo, nesse aspecto ele difere fortemente das histórias graves que ouvimos. Pretende abordar o Atlas da Boca através dessa emoção, mostrando que existem outras experiências?
Havia um texto por exemplo, que eu não incluo no espetáculo, mas que ele falava um pouco disso: “Eu vou aproveitar que eu não tive que fazer sexo por dinheiro pra te oferecer uma dança alegre hoje; eu vou aproveitar que eu nunca fui queimada viva pra olhar no seu olho e sorrir; eu vou aproveitar que ninguém nunca jogou um copo de mijo na minha cara pra te dar a mão com afeto”. Assim, eu vou aproveitar o meu privilégio de ter podido estar cercada de amor para oferecer outras escutas e outras falas, para poder diversificar também o ouvido de quem escuta, da nossa interlocução.
Parece que já não faz muita diferença ouvir uma história x ou y porque as narrativas se repetem um pouco e as pessoas comentam: “Ah já sei; já ouvi; ah já entendi”, então, o que ainda não foi ouvido? O que ainda não foi entendido? O que ainda não foi absorvido? Qual é a subtileza nesse tipo de resistência que ainda não foi comunicada? Este espetáculo e tudo o que eu crio vai um pouco nessa direção.
No seu blog refere a artista Linn da Quebrada como inspiração. Lembrei-me de imediato da canção “Bixa Preta” na qual ela canta: “A minha pele preta é o meu manto de coragem. Impulsiona o movimento”. Enquanto bailarina, coreógrafa, produtora e diretora que analisa e trabalha diretamente com questões identitárias e o corpo, acha importante existirem mais mensagens de apoio aos corpos negros?
Acho que a gente ainda não entendeu o racismo. A gente ainda não entendeu aonde ele se instala, a gente ainda não entendeu o tanto que nós repetimos o racismo sem perceber. Não é o meu lugar de fala por ser uma travesti branca, mas eu tenho muitos amigos com que eu já conversei sobre isso e eu preferi sempre escutar. A gente precisa escutar. A gente precisa baixar a guarda, da necessidade de mostrar que não é racista para tentar entender as micro-ações e as micro opressões que acontecem no quotidiano. Aqui em Portugal eu noto muito isso, até através de uma aula de balé, eu sinto que a relação espacial das pessoas com um outro corpo negro não é igual à da menina branca de lacinho e bonitinha, não é igual, não é.
Aí as pessoas falam: “Ah não, mas isso não é verdade”. Eu acho que o meu trabalho principalmente ele tenta não se focar na defesa numa bandeira à cega: “Eu vou defender aqui a minha bandeira x e y”, ele faz o contrário disso, ele fala assim: “Olha, tudo o que são as minhas bandeiras estão estampadas na minha testa, agora eu quero que você veja que eu sou como você e naquilo que eu não sou igual a você, a minha raiz é de uma humanidade tão frágil como a sua”.
Se a gente partisse disso, das nossas sensações de abandono, de sentir que não cabe nos espaços, da nossa sensação de não ser amadas, a gente conseguiria se identificar com a dor de qualquer pessoa. Só que as vezes falta isso, queremos falar assim: “Tenho um amigo que já passou por isso; já li sobre isso”, não ouvimos as dores das pessoas.
Claro que a gente já sabe as dores das pessoas, mas finge que você é burro, finge que você nunca ouviu alguém falar sobre isso e ouve, e ouve o que está por trás da palavra também. O “Atlas da Boca” fala um pouco disso, também, sobre as lacunas, a gente tenta não falar a palavra travesti, trans, transexual, transgénero pra exatamente tentar deixar essa lacuna. Não é sobre isso.
Porque há tanta resistência a entender essas comunidades?
Eu acho que nem é não entender, é não conviver. O convívio pode gerar afeto, pode gerar identificação, pode gerar familiaridade. Eu acho que não há familiaridade suficiente ainda para ter um bocado de compaixão, não no sentido da ajuda, mas a compaixão de se colocar no lugar do outro, e de saber que há lugares que você, por mais que tente, nunca vai conseguir se colocar neles porque é uma conjuntura muito diferente da que você vive, uma estrutura de pensamento, de elaboração do sujeito.
Para uma pessoa que sempre se sentiu amada pelos pais, uma pessoa que sempre teve acesso a tudo, vai ser muito difícil entender o que seria nunca caber numa turma, numa escola, não ser a primeira escolha dos amiguinhos, não ser a primeira escolha para um time de futebol.
Por exemplo, ser uma mulher negra desde criança, é algo que não dá para comentar “Consigo imaginar o que seria”, porque isso muda a sua estrutura de relação com o mundo, muda como você se vê. É um tema complicado, são muitas subtilezas, muita subjetividade envolvida.
Sabe qual é a atual dinâmica das comunidades trans e não binárias no Brasil? Existem espaços 100% seguros e onde seja respeitada a liberdade de expressão, ou foram comprometidos? Como sobrevivem as associações de apoio a estas comunidades?
Na verdade, há muito tempo que eu estou um bocado desatualizada nessa relação com o Brasil e com as pequenas comunidades, há três anos que eu não volto lá. Apesar disso, no contacto que tenho com amigos e amigas, sei que os pequenos núcleos de arte, eles são sempre um refúgio. Tem os pequenos núcleos de vogue, por exemplo, que montam uma rede de afeto muito importante para as várias bichas pretas, para várias trans pretas que se juntam nessas houses vogue e que se fortalecem enquanto comunidade, enquanto força, não enquanto aquilo que as destaca negativamente na sociedade, mas enquanto aquilo que os une enquanto uma comunidade. É muito importante a gente saber localizar as redes de afeto porque no mundo, no quotidiano, nas relações com as instituições, às vezes o afeto é muito raro. Assim você tem ali um grupo seu que te conecta de novo com o amor pela tua existência, por aquilo que você é. Então, até onde eu sei e falo com minhas amigas, as ‘house vogue’ são um lugar de muita potência, de fortalecimento dessas identidades. Além disso, os grupos de arte, os grupos de teatro, para mim também sempre foram um lugar de refúgio.
Considera que as artes performativas podem ser um escape à dura realidade que os membros das comunidades enfrentam?
Sim, na verdade, tento, e acho que consigo em determinada medida, balancear melhor essa realidade. Antes eu manifestava muito mais na minha produção o sentimento de indignação, de raiva, de destruição, por me sentir não preferida, não amada. Eu aplicava isso na arte. Hoje, tento digerir isso na minha vida pessoal, com as minhas amigas, com as pessoas que me amam e que se importam com o meu bem estar e seleciono muito bem o que levo enquanto discurso para minhas produções artísticas quando vou produzir. Quando crio, tento falar não só pela minha boca, mas ampliar um pouco o discurso, tentando imaginar quem me ouve. Quem me ouve, ouve o quê quando eu digo isso? E se eu disser daquele outro jeito o que essa pessoa ouve? Trabalho mais nessa direção do que naquela via de processar emoções internas. Eu já processei isso tudo, desde a morte da minha mãe às questões da transgeneridade.
Como é que se pode intervir de modo a potenciar o vosso trabalho?
Principalmente financiando, a gente precisa de dinheiro para traduzir, para se escutar, para pagar rendas, para produzir discursos que mudem nossas sociedades. Não querendo fazer de capitalista, mas sendo no mínimo realista, precisamos de mais espaços e condições para produzir e criar pensamentos novos, de criar agenciamentos novos e conhecimentos. Para isso a gente precisa de tempo e, para ter tempo, a gente precisa ser financiadas. Ter dinheiro e não ficar louca pensando tão somente na sobrevivência. Quando cheguei a Portugal não conseguia criar, eu fui direta para a arte drag porque seria mais comercial, mais dinâmica. Não conseguia ter cabeça para criar minha arte contemporânea, porque estava muito obcecada com a sobrevivência e como pagar a renda.
Porque não tinha apoios?
Exato.
Até que ponto a religião é um entrave à transição de género? Encontrou muita relutância?
Eu não transicionei jovem, eu transicionei já na fase adulta, tinha 29 anos, foi todo um outro contexto durante a transição. Na verdade, na igreja eu ainda me via só como um homossexual. Foi exatamente isso que rompeu a minha ligação com a igreja, porque eu era muito dedicada, muito obsessiva no sentido de querer que essa relação minha com a divindade fosse o máximo entregue.
Foi difícil me desconectar da igreja por eu querer levar tudo a sério e na altura fazer muito sentido para mim. Fiquei obcecada numa busca literária na Bíblia para poder encontrar ali algumas respostas que o livro não tinha. Consegui romper e seguir a minha vida sem acreditar muito na espiritualidade, eu precisei romper um pouco minha crença e as relações com aquele espaço para poder amadurecer a minha identidade e a partir daí foi progressivo até eu entender quem eu era. Quer dizer, ainda prossigo tentando entender quem sou, não é? Eu acho que é uma pergunta para ser respondida a cada vez que o despertador toca. Foi um rompimento, assim como a morte da minha mãe foi um rompimento que me ajudou a não querer mais ser uma pessoa tão perfeccionista e me permitir errar e me permitir ser mais quem eu era. Esse rompimento com a igreja também permitiu nascer, uma outra versão, um pouco mais transgressora do que eu tentava ser lá naquele contexto.
Saiu da concha.
Sim, e quando saí de lá comecei a ter aulas de dança e processos de personalização.
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Atlas da boca está em exibição de 20 a 21 de Novembro no TNDNII.
Atlas da Boca é uma investigação de dois corpos trans acerca da boca como lugar de intersecção entre a palavra, a identidade e a voz, o público e o privado, o erotismo e a política. Busca novas narrativas, explorando os verbetes que se abrem da boca para fora e que se leem da boca para dentro.