"Strangers Abroad" - Uma análise aos crimes de colonização na Austrália

No primeiro episódio do documentário “Strangers Abroad” de seis partes, escrito e apresentado por Bruce Dakowski, ilustra-se e discute-se a importância da antropologia na desmistificação das representações dos povos aborígenes, através dos estudos de Sir Walter Baldwin Spencer em conjunto com Francis James Gillen.

Sir Walter Baldwin Spencer e Francis James GillenSir Walter Baldwin Spencer e Francis James Gillen

Entre 1875 e 1912, os estudiosos fizeram um importante trabalho de campo na Austrália central, pesquisas etnográficas documentadas no seu livro.“ As tribos nativas com as quais estamos a lidar ocupam uma área no centro do Continente australiano que, grosso modo, tem um comprimento não inferior a 700 milhas de norte a sul, e estende-se de leste a oeste da transcontinental linha telegráfica, cobrindo uma extensão desconhecida do país em qualquer direcção.”1

Para melhor compreenderem os povos e a sua cultura, adoptaram a metodologia do envolvimento com a comunidade, introduzindo-se entre os mesmos, segundo o lema: “ir, ficar e a seguir observar e escutar”. Este recurso metodológico permitiu descobertas e avanços no escasso conhecimento desta população, como por exemplo: distinções entre a aparência das pessoas, no modo de comunicar, nos rituais, e até mesmo na maneira de praticar caça. Como notam os autores: “Se for necessária comida, então as mulheres sairão acompanhadas pelas crianças e armadas com paus de escavação e pitchis, e o dia será passado no mato em busca de pequenos animais escavadores como lagartos e pequenos marsupiais. Os homens sairão talvez armados com lanças, lança-lanças, bumerangues e escudos em busca de uma presa maior, como emas e cangurus.”2 Estas singularidades eram não só notórias entre géneros (feminino e masculino), como também entre várias tribos.

Povo aborígene ao redor de uma fogueira, um dos seus rituaisPovo aborígene ao redor de uma fogueira, um dos seus rituais

Como nos é relatado ao longo por Dakowski do documentário, e na vasta informação no livro dos autores, a comunicação entre as etnias aborígenes era maioritariamente não-verbal. Os membros da comunidade comunicavam estabelecendo previamente a que sub-grupo pertenciam, “Quando descobrimos, por exemplo, que entre os nativos Arunta um homem chama um grande número de homens pertencentes a um grupo particular com o nome “Oknia” (termo que inclui a nossa relação de pai), que ele chama a todas as esposas destes homens com o nome comum de “Mia” (mãe), e que ele chama todos os seus filhos pelo nome de “Okilia” (irmão mais velho) ou “Itia” (irmão mais novo), conforme o caso, não podemos chegar a outra conclusão que não seja a de que isto é expressivo do seu reconhecimento do que se pode chamar uma relação de grupo. Todos os “pais” são homens que pertencem ao grupo particular a que pertence o seu próprio pai actual; todas as “mães pertencem ao mesmo grupo a que pertence a sua mãe real, e todos os “irmãos” pertencem ao seu próprio grupo.”3,  tornando assim exequível a sua organização.

Todas as expedições dos autores, que resultaram em inúmeros estudos e documentos científicos, permitiram mudar a natureza de certos preconceitos estabelecidos sobre os povos aborígenes, bem como provar que estes eram de facto evoluídos à sua maneira.

No entanto, a mentalidade em voga na cultura ocidental, mais concretamente europeia era a de que aqueles povos seriam de uma raça inferior, atrasada no tempo e, como tal, merecia ser erradicada. Naturalmente que esta forma supremacista de pensar advinha da ignorância cultural e resultante do auto-convencimento de superioridade europeia que proveio da cultura iluminista e do humanismo. Toda a informação que era divulgada, bastante escassa, passava a ideia de que a superioridade ocidental era uma evidência e deveria ser perpetuada.

            “os aborígenes estavam relegados a um estatuto “inferior àquele mais baixo dos homens brancos” no seio da hierarquia social. De fato, o pertencimento ao grupo “aborígene” não estava ligado à cor ou à suposta “casta” dos indivíduos, nem à sua “cultura” ou “tradição”, mas sim diretamente associado a uma experiência histórica comum de segregação e despossessão.””4

Perante esta campanha de ódio contra outras culturas, foi-se tornando cada vez mais imperativo difundir conhecimentos concretos e documentados, de modo a que, as pessoas que de nada verídico conheciam acerca dos povos pudessem ver que também estes são constituídos por pessoas normais, que praticam as mesmas atividades que os demais, apenas se expressam de maneira diferente.

Embora tenha existido um esforço por parte dos autores para defender os povos aborígenes, estes sempre foram mal compreendidos, e algumas tribos chegaram mesmo a ser erradicadas por homens brancos que sentiam o seu privilégio racial posto em causa. 

Membros do povo aborígene vítimas de escravaturaMembros do povo aborígene vítimas de escravatura

Alguns povos conseguiram subsistir e manter a sua cultura viva, passá-la aos seus descendentes e assim sucessivamente de geração em geração. No entanto, estas pessoas, que sempre possuíram uma riqueza cultural profunda continuam a ser vítimas dos mais variados tipos de crueldade por serem tidas como racial e culturalmente inferiores.

São obrigadas a viver entre duas culturas, a sua e a que chamam “cultura dos brancos”, que forçosamente tiveram de aprender.

Mantém a sua cultura viva e ensinam-na aos seus filhos e aos mais jovens para que esta se perpetue, até porque algo intrínseco ao ser-humano é o orgulho que este sente pela sua cultura e pelos seus costumes, que desde jovem aprendeu, e foi cultivando ao longo da sua vida, é algo que partilha com a sua comunidade e que lhe confere consequentemente uma sensação de pertença e bagagem centenária.

O documentário ilustra perfeitamente o estudo realizado pelos autores, enquanto expõe as difíceis adversidades intemporais de aculturação, pelas quais estes povos passaram para lutar pela sua sobrevivência, e atualmente passam para manter a sua continuidade.

por Alícia Gaspar
A ler | 16 Outubro 2020 | aculturação, colonização, cultura, documentário, francis james gillen, povos aborígenes, sir walter baldwin spencer