Uma piscina vazia de corpos cheios

A 8ª edição do Arquiteturas Film Festival, que ocorre de 1 a 6 de Junho, estreou ontem no Cinema São Jorge. Para lá dos meus passos, documentário realizado por Kamy Lara e produzido por Paula Agostinho (também co-realizadora) foi o filme que fez a abertura do festival de cinema, que este ano tem como país convidado Angola – representado através de uma seleção de filmes que procuram mostrar e valorizar o cinema angolano.

Arquiteturas Film Festival

A cultura é segura, e necessária, foi também esta a mensagem que o Arquiteturas Film Festival conseguiu transmitir. O evento foi dirigido e programado por Sofia Mourato, fundadora e diretora, e Paulo Moreira co-diretor da 8ª direção. Quando subiram ao palco e falaram com o público revelaram que as incertezas eram muitas devido à situação pandémica que atravessamos mas, enquanto equipa, persistiram na idealização e planificação do festival.

Bodies out of Space foi uma “feliz coincidência”, pois quando começou a ser imaginada a temática do festival não se sabia que seria tão coincidente com as vivências diárias de 2020/2021. 

Marta Lança, Sofia Mourato e Paulo MoreiraMarta Lança, Sofia Mourato e Paulo Moreira“A 8ª edição da Arquiteturas tem como objetivo refletir sobre a construção social do espaço conectado a um fio que circula dentro de suas próprias narrativas de dominação. Narrativas também sobre identidade que muitas vezes é retirada ou forçada a representar o nosso corpo. Contra algumas suposições atuais, vemos este paradigma perceptivo — um epítome da visão de nossos tempos — como fundamentalmente social, espacial e corporal.”

Angola é o país convidado, e Marta Lança fez a curadoria dos filmes angolanos: Para Lá dos Meus Passos, Elinga Teatro 1988/2018, Uma Festa Para Viver, Afectos de Betão — Zopo Lady, Luanda: A Fábrica da Música, O Herói, A Ilha dos Cães, Do Outro Lado do Mundo, Mulheres, Cartas de Angola e Ar Condicionado.

Para Lá dos Meus Passos

Tal como nos foi dito por Sofia, Paulo e Marta no início da sessão de abertura, todos estes filmes têm algo para nos ensinar. No caso de Para Lá dos Meus Passos, a aprendizagem foi feita através dos movimentos e da disparidade urbanística demonstrada nas filmagens. Comoção foi o que mais o filme me transmitiu. Não pelas  expectáveis diferenças sociais originadas pelo colonialismo ainda não derrotado na mentalidade e economia mundial, mas sim pela vivacidade de cada movimento dos dançarinos, da força e da história que nos é contada através da dança contemporânea. 

Os bailarinos

O documentário acompanha a preparação da temporada de 2017 da Companhia de Dança Contemporânea de Angola, dirigida por Ana Claro Guerra Marques, onde podemos atentamente seguir os passos dos bailarinos, que se impõem no ecrã como palavras de uma história vivida por eles próprios com toda a potência dos seus antepassados. Na peça “(Des)construção”1, coreografia por Mónica Anapaz, as danças tradicionais são aprendidas e reinterpretadas para reactivar elementos trazidos das províncias. Interligando assim os movimentos com as sensações urbanísticas que a cidade lhes transmite, um dos bailarinos disse que o caos de Luanda o destabiliza e que “temos de aprender a focar-nos”. 

Cortesia Geração 80Cortesia Geração 80

Cortesia Geração 80Cortesia Geração 80

Como se conta na sinopse do filme, “os sete bailarinos são levados a viajar sobre um conjunto de danças tradicionais de Angola e a transforma-las, dando-lhes novos significados”. Cada pessoa tem o seu modo de interpretar os movimentos e nada é impedimento, até porque uma das palavras-chave é inclusão, dando espaço para todos se expressarem incluindo um dançarino com deficiências motoras que acompanhava os colegas nas mais elaboradas coreografias, na cadeira de rodas e também com o recurso aos braços. 

Paixão incompreendida

Dançar é uma profissão, é arte, mas tal como se queixam os bailarinos, a dança como trabalho não é bem entendida por algumas comunidades que, consequentemente, os julgam por se dedicarem inteiramente à sua paixão. É inclusivamente interpretado por alguns como o equivalente a não fazer nada. Na realidade, estes bailarinos percorrem um longo caminho para serem reconhecidos como profissionais, ao longo do documentário vemos o seu percurso nos ensaios até o resultado final de certas coreografias como é o caso da dança na piscina sem água e da dança na casa abandonada em que aparecem escritos nas paredes como “Portugal vs Angola” e “Irão vs México”. 

O corpo, a paisagem, o espaço físico - no caso do cenário da piscina em que a dança era toda ela alegria e os dançarinos sorriam e a música triste e alguns movimentos pareciam  os de um peixe fora de água. Sente-se o desconforto por não haver condições apropriadas para atuar e filmar, e o facto de, sem políticas culturais, e os artistas terem de construir os próprios palcos, muitas vezes demasiado pequenos para todos os participantes. No segundo caso, captei uma mensagem de foro político, não só pelos registo nas paredes, bastante óbvio, mas também pela gravação e formulação sombria da dança dos intervenientes.

 

Falta de apoios 

Existe uma enorme disparidade no que toca aos edifícios e construções arquitetónicas. Por um lado, observamos prédios novos com muitos andares e, por outro lado, casas velhas com condições deploráveis. Esta disparidade foi perfeitamente captada e enfatizada através da música que alterava de tons suaves para tons mais pesados quando somos levados do “novo” para o “velho” e notamos um enorme contraste. 

Faltam estratégias para várias áreas da sociedade angolana e isso inclui o setor cultural que, mais uma vez, apareceu cinematograficamente muito bem retratado, com um dos dançarinos em cima de um palco frente a uma tela enorme (o Cine Karl Marx) perante centenas de cadeiras vazias que podia ser a sala Manoel de Oliveira do Cinema são Jorge ao ar livre. No entanto, esse palco, um potencial anfiteatro para as companhias de dança como a da Companhia de Dança Contemporânea de Angola, estava completamente ao abandono, forçando os bailarinos a terem de procurar recursos para trazer cultura às pessoas. A não abandonar a arte. 

Este documentário valoriza os dançarinos enquanto pessoas e profissionais e reconhece-lhes o devido valor, e das coreógrafas e toda a equipa, enfatizando as dificuldades pelas quais passam para que o seu trabalho seja reconhecido e os esforços que fazem para continuarem a trabalhar na sua paixão. É também um alerta e uma crítica subliminar à falta de apoio aos artistas e ao não investimento no setor cultural.  

Nota da realizadora Kamy Lara 

Em outubro de 2016 estreava, num pequeno auditório no centro da cidade de Luanda, o espetáculo “Ceci N’est Pas Une Porte” da Companhia de Dança Contemporânea de Angola. Nessa altura vivíamos um clima político tenso. Activistas tinham sido presos e condenados. O país parecia estar dentro de uma panela de pressão prestes a explodir a qualquer momento. 

Em palco, os bailarinos dançavam confinados a pequenas caixas fracamente iluminadas, lutando para se expressar dentro de um espaço apertado e sufocante. Foi no final daquela hora de espetáculo que se implantou na minha cabeça a ideia para este documentário. Que caminho percorriam aqueles bailarinos até chegarem ao palco? Como poderia eu, através do cinema, dar continuidade ao debate que se iniciava em palco?

Foi assim que no início de 2017 me propus acompanhar a construção do espetáculo da CDCA para aquela temporada, desde o surgimento da ideia até à sua transformação em movimentos de dança e coreografia. 

“Para Lá dos Meus Passos” usa o espetáculo como ponto de partida para acompanhar a reflexão dos bailarinos sobre os temas explorados ao longo da peça: as suas origens, as suas tradições, a perda de identidade e a construção de uma nova,  imposta pelo tempo e pela mudança de uma zona rural para uma Luanda urbana. Uma história semelhante para tantos angolanos e angolanas.

Este caminho de adaptação pressupõe a mutação incontornável dos seus sonhos, valores e expectativas. Não só como cidadãos, mas também como artistas. A visão de Luanda como um grande palco para a sua arte choca com a constatação de que o reconhecimento da cultura e da dança não depende somente da sua resiliência, disciplina ou capacidade de equilíbrio no caos desta nova realidade urbana e capitalista.

Como realizadora angolana tentando fazer filmes em Angola, é impossível não me identificar com as angústias, sonhos e transformações que fui procurando conhecer nos bailarinos. Através deste filme, junto a minha voz à deles, à da Companhia e aos cidadãos e cidadãs do mundo que têm medo de esquecer quem são, de onde vêm e que reflectem sobre o que poderão já ter perdido pelo caminho.

Kamy Lara e Paula AgostinhoKamy Lara e Paula Agostinho

Companhia de Dança Contemporânea de Angola

Com um percurso inovador e singular, a Companhia de Dança Contemporânea de Angola acumula já 26 anos de história da dança sem deixar de se autorecriar. Num contexto artístico débil em políticas culturais, onde as artes performativas parecem reduzir-se ao teatro não profissional e às danças patrimoniais e recreativas urbanas, a CDCA rompe com uma certa ideia de “tradição” e conservadorismo, construindo um espólio estético com características específicas e de cunho autoral muito vincado.

As suas propostas coreográficas confrontam o público trazendo as histórias e episódios do quotidiano social, urbano e rural, onde o corpo e o movimento constituem o elemento catalisador. A contemporaneidade da Companhia reside nesse olhar atual que cruza a história e a cultura com experiências extremas vividas em Angola, numa tentativa de compreender as questões universais da dor, amor, conflitos, energia e afetos.

Sob direcção da coreógrafa Ana Clara Guerra Marques, a Companhia é composta por 7 bailarinos, um produtor executivo, um fotógrafo para a imagem e um ensaiador e figurinista, convidando, pontualmente, artistas para efectuarem residências. São exemplos a partir de pesquisas em vários territórios, para revitalizar a diversidade cultural de raiz tradicional, A Propósito de Lweji (1991), Uma frase qualquer… e outras (frases) (1997), Peças para uma sombra iniciada e outros rituais mais ou menos (2009), Paisagens Propícias (2012), e Mpemba Nyi Mukundu (2014) e (Des)construção (2017). Mas para a CDCA a dança é, sobretudo, um meio de intervenção social, como evidenciam Mea Culpa (1992), Imagem & Movimento (1993), Palmas, por Favor! (1994); Neste País… (1995), Agora não dá! ‘Tou a Bumbar… (1998), Os Quadros do Verso Vetusto (1999), O Homem que chorava sumo de tomates (2011), Solos para um Dó Maior (2014), Ceci n’est pas une porte (2016) e O monstro está em cena (2018).

Além dos espectáculos, a Companhia promove actividades diversas para contribuir para a educação estética do público. Os espectáculos já viajaram por várias cidades africanas, americanas, europeias e asiáticas. Em 2017 foi-lhes atribuído o Prémio Nacional de Cultura e Artes no seu país.

Referências

http://arquiteturasfilmfestival.com/2021/

https://geracao-80.com/paraladosmeuspassos

https://www.futuroscriativos.org/iniciativas/companhia-de-danca-contempo...

  • 1. De uma forma livre de preconceitos, este trabalho recupera e reorganiza, em diferentes situações cénicas, um património cultural tradicional, sem o esvaziar da sua essência. Estabelecendo um diálogo entre o antigo e o novo, propõem-se outros universos onde a ressignificação é utilizada como proposta para a continuidade. Esta criação é também um alerta para as fragilidades decorrentes da falta de um conhecimento profundo e consequente desvalorização do diversificado património herdado. A obra pretende ainda ser uma reflexão sobre a inevitabilidade de uma África renovada que encontra, nos seus distintos processos de “(des)construção”, o caminho para o progresso.

por Alícia Gaspar
Afroscreen | 2 Junho 2021 | angola, cinema africano, Cinema São Jorge, Companhia de Dança Contemporânea Angolana, cultura, dança, Geração 80, Para lá dos meus passos