“O cinema para uma luta anti-racista”, entrevista a Joseph da Silva

Como surgiu o projeto “O cinema para uma luta Anti-Racista?” 

O SOS, ao longo dos seus 30 anos, já teve parcerias com várias associações, com vários coletivos, com várias organizações e eventos conjuntos com instituições como a “Cinemateca” ao “Instituto Francês”. Com o Doclisboa realizámos em novembro uma conversa no cinema São Jorge. O projeto em si surgiu da necessidade de discutir questões políticas e raciais e, sobretudo, do modo como é percepcionado o sujeito racializado na sociedade portuguesa através do olhar cinematográfico, ao mesmo tempo que procura questionar e trazer ao debate o significado dos símbolos nacionais e o modo como estes continuam a influenciar narrativas e olhares sobre sujeitos racializados em Portugal.

Porque é que elegeram a produção cinematográfica enquanto veículo e instrumento de combate à normalização do racismo? 

Das várias artes que existem, o cinema consegue ser uma arte que retrata a realidade de modo impactante, até porque o nosso olhar é o sentido que mais impacto tem em nós e, portanto, a força das imagens consegue tocar as pessoas para as levar a pensar em questões que de uma outra forma dificilmente fariam. 

A escolha do cinema como instrumento para os debates, que a partir dos filmes queremos lançar, é precisamente porque o cinema tem a vantagem de poder alcançar muita gente, ao mesmo tempo que esse alcance tem impacto no modo como as pessoas veem essas questões retratadas nos filmes, logo, achamos que é um instrumento viável e muitíssimo eficaz para aquilo que pretendemos.

Queremos que os filmes, as imagens, a representação da realidade, seja visionado, aquilo que está mais visível ou menos visível. A partir daí o espectador levanta questões e procura soluções para ultrapassar o problema do racismo na sociedade portuguesa.

Quais as características que consideras mais relevantes num documentário no intuito de atinjir o propósito de contribuir para a luta antirracista? 

Os documentários por norma não são ficionais, são narrativas reais e comunicam de diretamente com o espectador, não há um outro meio para além da linguagem documental direcionada ao espectador para pôr patente aquilo que o documentário visa. Assim, estar associado a um festival de cinema, sobretudo a um festival de cinema documental faz todo o sentido para a questão que se está a tratar e para os debates que queremos ter a partir dos filmes. 

Em vários casos dos filmes que temos, pomos os artistas e as testemunhas a falarem diretamente para a audiência sem uma narrativa ou drama por trás, o que também é importante. Esta é outra forma de aprofundar o debate, um outro género, para o que nós pretendemos, é o que faz mais sentido na medida em que queremos, a partir dos filmes relacionados com questões políticas e raciais discutir diretamente com os espectadores que irão ao ciclo e apelar que esse debate se abra para toda a sociedade portuguesa.

Uma vez que estamos a tratar de tema sensível como o racismo, a emoção transmitida através do documentário é importante para captar a audiência 

Sim, sem dúvida que é relevante. O cinema tem essa capacidade e essa força, de visualizarmos as coisas e não simplesmente imaginá-las, tem essa força de audiência, dos espectadores confrontarem-se com as situações e, no limite, colocarem-se no lugar da história. Portanto, sem dúvida nenhuma que para se ter uma discussão aberta que o meio idealizado é o cinema, pois possui força para suscitar esse lado às pessoas, o lado emocional e intelectual.

É também importante tendo em conta as temáticas que são levantadas nos filmes porque a dimensão do debate torna-se outra, não fica um debate meramente teórico, e portanto, as questões, os problemas que são focados adquirem uma outra dimensão e isso é importante, porque assim podemos também procurar soluções na justa medida para ultrapassar os problemas.  

'Racismo à Portuguesa', de Joana Gorjão Henriques e Frederico Baptista'Racismo à Portuguesa', de Joana Gorjão Henriques e Frederico Baptista'Há uma preferência 'óbvia' dos senhorios em arrendarem casa a brancos' de Joana Gorjão Henriques e Frederico Baptista'Há uma preferência 'óbvia' dos senhorios em arrendarem casa a brancos' de Joana Gorjão Henriques e Frederico BaptistaA justiça em Portugal é 'mais dura' para os negros de Joana Gorjão Henriques e Frederico Batista - José Semedo Fernandes recorda uma das muitas situações em que, à saída do Bairro de Santa Filomena, onde cresceu, foi mandado parar por um políciaA justiça em Portugal é 'mais dura' para os negros de Joana Gorjão Henriques e Frederico Batista - José Semedo Fernandes recorda uma das muitas situações em que, à saída do Bairro de Santa Filomena, onde cresceu, foi mandado parar por um polícia

Qual o papel do cinema no que toca à representação de uma comunidade marginalizada? 

O cinema é uma arte fundamental na nossa sociedade hoje em dia e tem uma força brutal precisamente pelo impacto com quem se confronta com ela. Devido à ideologia dominante à qual o cinema não é alheio, este acaba por sofrer essas influências com mais ou menos resistência, influências essas baseadas no preconceito, no pressuposto de quem é o outro e o modo como o cinema retrata personagens ou comunidades marginalizadas acaba por se refletir, porque acaba muitas vezes por reforçar os estereótipos existentes sobre ela. 

No entanto, o cinema militante tem precisamente o objetivo de, através da força das imagens, mostrar a realidade sem a suavizar para que se tenha em conta a real dimensão dos problemas e a partir daí suscitar o espírito crítico, em última instância para procurar soluções, mas em primeira instância para possibilitar abrir portas à consciencialização da existência desse problema. 

O cinema tem esse papel e tem essa importância de, através da força das suas imagens, da força da sua linguagem, retratar realidades, retratar personagens que dão a dimensão que nos falta no nosso dia a dia para entendermos o real problema que as comunidades marginalizadas enfrentam diariamente. 

Projetos semelhantes a “O cinema para uma luta antirracista” deveriam fazer parte do currículo escolar, de modo a abranger uma faixa etária mais jovem da população? 

No plano escolar deve haver espaço para a discussão de problemas na sociedade, discutidos de várias formas e instrumentos. Desde o cinema à música, desde a literatura ao teatro. Portanto o importante é que na esfera de discussão da vida escolar haja espaço para a discussão dos problemas que dizem respeito à sociedade e que, através de cada escola, bem como de cada turma, se procure aquela que lhes é mais eficaz para abordar os problemas e consequentes soluções. 

Mas sim, claramente que sim, deve haver espaço para que um ciclo de cinema antirracista ou um ciclo de cinema anti-discriminatório possa fazer parte dos currículos escolares de todas as escolas. 

Consideras que existindo oportunidade de os jovens acederem a este tipo de conteúdos mais cedo no seu percurso social iriam promover mudanças na sociedade?  

Sim, sem dúvida nenhuma. O contacto com a arte tem essa possibilidade de nos sensibilizar, de permitir criar uma consciência crítica e para que as sociedades possam ser justas e plurais, livres e iguais é sem dúvida nenhuma um fator importante. Devem ser criadas oportunidades para trabalhar a construção do espírito crítico para que possamos olhar para os problemas, ver a sua dimensão e ter a capacidade de questionar e propor alternativas. 

O contacto dos jovens e de qualquer pessoa com este tipo de arte contribuirá para pensar sobre um assunto que até então não pensou, e se pensou viu de outro modo e ângulo, a arte possibilita-lhe aprofundar esse questionamento e, portanto, sem dúvida nenhuma que acrescenta. 

Que medidas políticas podem ser criadas ou melhoradas para fomentar a aceitação da multiculturalidade na sociedade portuguesa? 

As medidas políticas devem ser tomadas em várias áreas, desde a educação à saúde, da habitação aos transportes, até ao planeamento da cidade de modo que os indivíduos pertencentes a todas as culturas possam ter o seu lugar na sociedade portuguesa e possam sentir-se livres e ter condições para serem aquilo que são sem qualquer tipo de opressão. 

Nas escolas isso passa pela alteração dos manuais e currículos escolares, sobretudo como é ensinada a História portuguesa, para que mais do que nunca se ouça o outro lado, o outro lado que também está envolvido nessa História, não se conte só uma perspetiva, como se isso representasse de facto aquilo que realmente aconteceu, e isto é importante porque se existir essa possibilidade e abertura de ouvir o outro lado está a criar-se espaço para que pessoas que não pertencem ou que não se revêem na História que é contada possam ter voz e possibilidade de contribuir com o seu testemunho e perspetiva. 

Esta forma de inserir as pessoas num todo, e continuar a contar as coisas de uma só perspetiva acaba por marginalizar grande parte da sociedade portuguesa. Portanto, se queremos uma sociedade intercultural tem de haver essa abertura, em que de facto se elimine de uma vez por todas o pensamento de que determinadas culturas são inferiores a outras por não terem certos padrões e modos de sentir e exteriorizar os seus sentimentos, e sim enformar como todas elas são dignas, válidas e devem ser escutadas e vistas sem que uma se sinta superior ou mais rica que a outra. Só assim podemos viver livremente e em pleno. Em que cada um tem a possibilidade de poder expressar aquilo que é, como se sente e da maneira como entende. Nenhuma forma de expressão cultural é superior à outra, é necessário ter abertura para chegarmos a essas culturas e ao outro e não continuarmos em posições estanques em que estamos em certas posições para com os outros a partir de pressupostos e preconceitos.

De que maneira o passado colonial português influencia a atual sociedade?

O passado colonial continua a influenciar a sociedade portuguesa no seu todo, nas leis, nas artes, nas narrativas, na forma como se olha o outro, sobretudo sujeitos racializados cujos países foram colonizados, a matriz continua presente na vida da sociedade portuguesa. 

A discussão que queremos ter neste ciclo revolve em torno disso, de que modo o passado histórico colonial continua a determinar o modo como os sujeitos racializados são vistos na sociedade portuguesa, se existiram ou não mudanças em relação a esse fator ou se as mudanças que existiram no estrutural não mudaram em nada. No meu entendimento e no de algumas pessoas, a ideia é essa, de que no estrutural não mudou quase nada, pois a ideia colonial continua presente na sociedade portuguesa e danifica e determina as relações que foram estabelecidas com os sujeitos racializados.

A história continua a ser ensinada de forma que unicamente se faça apologia a um ponto de vista e os acontecimentos mais importantes da história da humanidade, nomeadamente a escravatura é ensinada de uma forma trivial sem qualquer tipo de consciência critica.

Em pleno século XXI inauguramos estátuas de figuras que fizeram parte desse passado colonial e tiveram um papel determinante na forma como foram tratadas pessoas racializadas (refiro-me à estátua do Padre António Vieira que foi inaugurada no espaço publico sem qualquer tipo de contexto, ignorando uma parte da história que não pode ser ignorada porque gerou vítimas que continuam a sofrer consequências na sociedade portuguesa), olhamos para os símbolos nacionais sem qualquer tipo de referência e consciência crítica sobre eles, portanto podemos naturalmente presumir que a ideologia colonial continua a fazer parte da vida da sociedade portuguesa. 

Se olharmos para o padrão dos descobrimentos, parece não existir vontade de ter um debate em torno da controvérsia nem em contextualizar esse monumento e outros monumentos que existem no espaço público e que agridem uma outra parte da história que não é contemplada na História. Há uma continuidade histórica da ideologia colonial portuguesa e está presente ainda hoje, porque no essencial ainda não se realizou o debate sobre esse período e não se tiraram as ilações, nem se abriu um espaço para se ouvir precisamente a outra parte da História que é importante ser ouvida. 

Para que possamos ser uma sociedade antirracista e anti discriminatória, é necessário que essa outra parte seja ouvida, para que seja interventiva na construção do espaço público, em que cada um e cada uma possa circular no espaço público sem se sentir alheado ou obrigado a ser alheio a esse espaço público, e muito menos agredido porque continuam a haver símbolos que vangloriam períodos históricos em que uma parte da sociedade portuguesa é vítima desses símbolos e não se sente confortável em frequentar esses espaços.

Existe um significado por detrás do ciclo ser organizado no Padrão dos Descobrimentos. Podes falar-nos sobre isso? 

Sim, a ideia é fazer um ciclo de cinema antirracista no Padrão dos Descobrimentos e ao mesmo tempo também questionar os símbolos nacionais, os seus significados e o modo como determinam a vida das pessoas racializadas na sociedade portuguesa. Queremos suscitar o debate para pensarmos no passado colonial e analisar os símbolos nacionais que resultaram desse período ou que simbolizam esse período. 

Segundo Grada Kilomba, Portugal está em “completa negação” quanto à sua relação com o racismo. Quais consideras serem as medidas a tomar para podermos passar da negação e avançar no processo de confrontação?

Podemos dizer que grande parte da sociedade portuguesa ainda continua em negação sobre o racismo em Portugal, embora o debate nos últimos tempos tenha vindo a ganhar espaço. Estamos cada vez mais em melhores condições de ultrapassar essa etapa e partir para a discussão do problema coletivamente e ao mesmo tempo procurar soluções para eliminar a existência deste problema. 

'Nôs Terra' de Ana Tica'Nôs Terra' de Ana TicaO Canto do Ossobó de Silas TinyO Canto do Ossobó de Silas Tiny

 

Que resultados esperam que o ciclo de cinema produza na sociedade?

Para já é ficar anotado que se realizou um cinema antirracista no Padrão dos Descobrimentos. Durante uma semana houve um ciclo com filmes e questões políticas relacionadas com a questão racial em que se discutiu precisamente a existência desse problema. Quanto àquilo que nós esperamos que possa resultar depois dessa iniciativa, é difícil medir, mas se em cada sessão tivermos uma pessoa já seria significativo porque mostraria que existiu mobilização o que significaria que houve algum interesse e curiosidade em saber o que se pretende que se passe nesse ciclo de cinema. Para nós o objetivo é precisamente convocar as pessoas para coletivamente discutirmos este problema, se tivermos pessoas presentes para essa discussão e com vontade para tal, ver-se-ão os resultados a longo prazo, mas certamente já muito frutífero. 

'Era uma vez um arrastão' de Diana Andringa, Mamadou Ba, Bruno Cabral, Joana Lucas, Jorge Costa, Pedro Rodrigues Portugal 'Era uma vez um arrastão' de Diana Andringa, Mamadou Ba, Bruno Cabral, Joana Lucas, Jorge Costa, Pedro Rodrigues Portugal

Ciclo de filmes e debates

 

19 a 25 de julho no Padrão dos Descobrimentos 

Mais info sobre o programa aqui .

por Alícia Gaspar
Cara a cara | 19 Julho 2021 | África, antirracismo, cinema, colonialismo, DocLisboa, documentários, monumentos, Padrão dos Descobrimentos, Portugal, SOSRacismo