"A moçambicanidade está em construção", entrevista a José de Sousa Miguel Lopes

José de Sousa Miguel Lopes é doutor em História e Filosofia da Educação e coorganizador da coleção Cinema, Cultura e Educação. Possui o blog Navegações nas fronteiras do pensamento, que está prestes a celebrar dez anos de existência. Esta entrevista surgiu a propósito do lançamento do seu livro Formação de Professores Primários e Identidade Nacional: Moçambique em Tempos de Mudança”.


Recentemente lançou o livro Formação de professores Primários e Identidade Nacional: Moçambique em tempos de mudança no qual partilha com o público o seu estudo das políticas da Frelimo. Na sua opinião, quais dessas políticas tiveram maior repercussão na educação ao longo dos tempos e no moçambicano de hoje?

As políticas pós-independência visavam criar uma sociedade mais igualitária. A taxa de analfabetismo em 1975, data da indepedência, era superior a 95%. A educação foi considerada prioritária pela Frelimo. Era necessário começar praticamante do zero. Era preciso abrir escolas, criar centros de formação de professores, elaborar livros didáticos, criar currículos, desencadear campanhas massivas de alfabetização… O país transformou-se numa grande escola em que aqueles que sabiam mais ensinavam os que sabiam menos. Os índices de analfabetismo nos primeiros dez anos de independência foram significativamente reduzidos. Esse processo foi interrompido devido à guerra desenvolvida contra Moçambique pelo então regime do “apartheid” sul-africano. No entanto, em vários domínios, sobretudo o campo das políticas educacionais e da saúde acabaram repercutindo no processo de desenvolvimento da sociedade moçambicana. Podem constatar-se como essas políticas deram início à emergência de uma cultura urbana, em grande parte popular. Pintura, escultura, música, dança, teatro, literatura, revelaram a sua pujança e criatividade profundamente enraizados no universo moçambicano. Duas forças sociais cheias de promessas surgiram: os jovens e as mulheres. Uns e outros não eram visíveis na antiga sociedade moçambicana. Os jovens porque a maioridade ligada à sabedoria era o único valor reconhecido; as mulheres porque, embora meros instrumentos de produção, ficavam dependentes dos homens. A juventude está fortemente implantada nas cidades onde ela constitui a esmagadora maioria da população urbana – o que representa também o risco de gerar uma cultura de violência diante da miséria cada vez mais crescente. Mas como essa juventude tem cada vez menos escolha comparativamente às gerações precedentes, ela para não sucumbir, terá de atacar de frente os problemas que fazem dela a grande vítima da sociedade. O papel da mulher conhece também um grande desenvolvimento porque são elas que investem maciçamente no setor informal da economia. Embora sua posição seja ainda delicada numa sociedade em que é grande o domínio dos homens, trata-se de uma mudança social promissora.

Enquanto professor como encara o conceito de identidade nacional? De que modo o transmite, em que se baseia, e como gostava que fosse ensinado?

O espaço nacional é ainda o único em que se pode praticar a democracia, ou seja, em que os cidadãos podem exercer o direito de escolher seus representantes para, em seu nome, exercerem poderes e, assim, regularem os interesses coletivos. Numa socidade onde o colonialismo adotou sempre uma política de “dividir para reinar”, não havia a consciência de identidade nacional entre os moçambicanso. À semelhnaça do que se fez em outros países era necessário criar a consciência de pertença a um espaço comum.

Para mim a questão crucial que se coloca em uma nação ainda em construção, como a moçambicana, é como criar uma identidade nacional que se sobreponha às identidades étnicas existentes e capazes de conter e de canalizar essas últimas, no sentido de favorecer a unidade e a formação da consciência nacional. Por outras palavras, como criar uma identidade nacional sem prejudicar as identidades étnicas e regionais que são fontes de diversidades e, portanto, de riqueza cultural e, ao mesmo tempo, ameaçadoras da unidade nacional, desde que manipuladas política e ideologicamente na luta pelo poder?

Gostaria que a formação da identidade nacional fosse trabalhada tendo em atenção dois aspectos: por um lado, valorizar as tradições e conquistas sociais dos nossos antepassados, sentindo orgulho nesse esforço realizado pelos ancestrais, mas por outro lado, estar sempre atento para que essas tomadas de posição não evoluíssem para aquilo que alguns estudiosos chamam de “nacionalismo estreito”, do tipo “o meu país tem a melhor comida, a melhor religião, a melhor cultura, enfim, o meu pais é o melhor do mundo”. Estes posicionamentos são bastante perigosos, pois sem se dar conta, as pessoas que foram submetidas a uma espécie de lavagem cerebral são conduzidas, invitavelente, a desqualificar o “outro”, o diferente, o estrangeiro, etc. Quantas guerras já ocorreram na história da humanidade, porque é fácil forjar inimigos e instalar nas conciências que a pátria está em perigo? Isso ocorre muitas vezes quando para afastar a população dos problemas internos, dirigentes políticos lançam mão dessas manobras espúrias, e desgatam a palavra “pátria” pela forma tão intensa e sistemática como ela é utilizada. O escritor inglês Samuel Johnson, que viveu no século XVIII, chegou a afirmar que “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”. Johnson não se referia ao amor real e generoso pela pátria, mas ao pretenso patriotismo que tantos, em todas as épocas e países, têm usado como um manto para os próprios interesses.

Porque defende a construção de uma identidade nacional nos jovens? Em termos concretos em que esta contribui para uma melhoria nas suas vidas? 

O sentimento de pertença a uma comunidade é um laço muito forte entre os seres humanos. A identidade nacional, veiculando a continuidade entre identidade pessoal e coletiva, constitui um elemento estruturador da própria identidade dos jovens. Em segmentos juvenis mais precarizados — designadamente em termos de emprego, mas também nos jovens provenientes de setores sociais mais desfavorecidos — existe uma visão menos confiante e mais crítica da sociedade moçambicana. No entanto, e mesmo nestes casos, não se pode afirmar que esteja em causa a identidade nacional dos jovens.

Mas em que termos se deve falar de uma identidade nacional, num país caracterizado por notáveis idiossincrasias regionais nos âmbitos histórico, cultural e socieconómico? A construção da identidade nacional deve-se a um processo de integração étnica, local e regional. Quer isto dizer que uma forte vinculação regionalista é incompatível com uma também vincada adesão nacional? Os jovens, incorpram primeiramente uma identidade regionalista, social e familiarmente herdada, sendo a região o horizonte conhecido e, portanto, o mais valorizado do País. A região constituiria assim o referente camuflado da identidade nacional destes jovens. Uma hipótese oponível a esta, mas nem por isso contraditória afirmaria, por sua vez, que a abertura a valores de ordem mais ampla, a aspiração a uma plena integração na sociedade moçambicana e, consequentemente, a recusa de um regionalismo “provinciano” dos progenitores, enfeudado nos estreitos limites da região e dos valores localistas, predispõe estes jovens, mais do que os outros, a declararem a sua identificação com o País.

Entre os jovens, os motivos de orgulho nacional transferem-se para o âmbito dos desafios e conquistas que o País adquire nos domínios esportivo, artístico, científico, mas também político e económico. Todavia, pelo fato de terem perdido importância os símbolos emblemáticos da Pátria (bandeira, hino, desfiles militares), seria absolutamente incorrecto pressupor o abandono dos referenciais nacionais. Assiste-se hoje à emergência de um nacionalismo juvenil de raiz mais pragmática, estreitamente estimulado e articulado com as dinâmicas concretas e quotidianas do País. Talvez seja importante realizar pesquisas que possam revelar ou não que quanto mais os jovens considerem assegurada a notoriedade e a representação externa de Moçambique, conquistando um lugar de reconhecido mérito e prestígio internacionais, também mais frequentes, expressivos e duradouros serão os sentimentos nacionalistas desses jovens.

Uma questão me parece clara. Não podemos pensar nos jovens como um grupo homogênio inserindo-os numa representação unitária. Nesse sentido, não devemos falar em juventude, mas em juventudes moçambicanas. 

Mas essa recusa de uma imagem homogénea, heróica ou triunfalista da juventude é compatível com a igual rejeição de uma visão puramente dispersiva ou casuística da identidade. A meu ver, faz-se necessário dispor e explorar novos instrumentos e perspectivas analíticas para lidar com as identidades juvenis que adquirem uma figuração híbrida e fragmentária. Desta circunstância deriva também uma nova problematicidade para a noção de culturas e subculturas juvenis.

Em suma, nem privados de identidade, nem portadores de um subsistema cultural restrito, as suas identidades sociais e, em decorrência, o sentimento de identidade nacional, forjam-se no quadro de complexas sobreposições, continuidades e descontinuidades com valores, atitudes e comportamentos definitórios da cultura e dos modos de vida da sociedade moçambicana em geral.

Ainda faz sentido falar em moçambicanidade?

O Estado-Nação moçambicano resulta da racionalização da consciência nacionalista que arregimentou as diversidades de toda a natureza para consagrar supostas semelhanças e forjar um sentimento de pertencimento o qual vai ter, na moçambicanidade, a sua matriz representativa da nacionalidade, da cultura e do ser moçambicano na visão holística de identidade nacional, sempre consagrada como um ideal, uma construção, visto que, como refere Stuart Hall, a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.

É durante a luta pela emancipação que o conceito de moçambicanidade subjugado aos ideais da revolução primeiro aparece numa literatura politicamente engajada. A nação que emerge do movimento emancipador combina o “eu” moçambicano com o próprio “eu” revolucionário. A arte legitima a revolução e os seus agentes, e o discurso literário restringe-se aos parâmetros estabelecidos pelo novo poder instituído.

Defendo a disseminação do português em Moçambique, mas de um português apropriado, adaptado, e recriado que vive na diferença e que, na verdade, já está ocorrendo.

Em resumo, falar da moçambicanidade é ao mesmo tempo falar do Estado e da Nação, na medida em que ela constitui o seu complemento, vértice de suporte, enquanto estereótipo representativo de base hegemônica da diversidade étnica, racial, linguística, cultural, religiosa, identitária, etc., que foi construído para gerar o sentimento de semelhanças e a partir das quais se pode pensar Moçambique e sentir-se moçambicano.

A moçambicanidade está em construção. Nesse sentido, afirmar a moçambicanidade no contexto contemporâneo equivale a afirmar, por identificação ou mapeamento, uma cultura que represente o mosaico nacional não apenas no seu elemento racial, como também nas dimensões multiculturais iniciadas pela empresa colonizadora e que formam o mosaico de culturas, raças e línguas que constituem o Moçambique atual.

Quão importante é a apreender uma sólida base cultural para a aprendizagem e difusão da moçambicanidade? Considera essa base atualmente valorizada e integrada nos planos políticos do país?

Com a filosofia de (re) produção em larga escala de semelhanças para consolidar a moçambicanidade, o Estado-Nação em Moçambique aprofundou o seu emparelhamento ideológico e consolidou as suas políticas linguísticas hegemônicas na perspectiva de unificar na diversidade. Assim, combater em defesa da cultura nacional é combater pela libertação da nação, já que não existe um combate cultural que se desenvolve literalmente à margem do combate popular. Portanto, a moçambicanidade, como projeto político-ideológico da Frelimo, nasce da resistência e negação à portugalidade e funda-se na base da “representatividade” sociocultural e étnico-linguística da diversidade do país e revigora-se no processo de unidade na diversidade.

Não acreditamos ser possível, a curto e talvez mesmo em médio prazo, a recuperação de um país que viveu cinco séculos de pilhagem e de destruição sistemática (homens, riquezas naturais, culturas), agravada ainda pelos efeitos da guerra que eclodiu no pós-independência e que colocou o país numa situação precária. A recuperação e reconstrução são questões demoradas, e vão depender em primeiro lugar da seriedade e do trabalho dos próprios moçambicanos, do seu gênio criador em buscar novos caminhos. O modelo de desenvolvimento importado do Ocidente está falido, pois é incapaz de contemplar a grande maioria da população, por seu preço muito alto.

Por meio da língua portuguesa e das línguas moçambicanas, da história, da arte e da literatura, a mitologia política e simbólica da nova nação (mitos, memórias, valores e símbolos da luta contra o colonialismo, heróis) poderá servir de inspiração para os sacrifícios que cada um precisa enfrentar, sem amarras a processos de legitimação do grupo no poder.

Não deixa de ser importante, começar a questionar uma concepção que se vem acentuando ultimamente, na qual a escola tende a especializar-se na transmissão de conhecimentos pontuais, necessários à atuação dos indivíduos no mercado de trabalho, abandonando a formação integral da criança ou a sua educação moral. Esse é, a meu ver, o principal desafio que se coloca ao sitema educacioanl, que nos últimos anos parece estar perdendo estes valores que referi.

O autor José de Sousa Miguel LopesO autor José de Sousa Miguel LopesAs lutas nacionalistas, pela independência (embora fundamental) e a guerra civil  afetaram o crescimento do país. Quais foram os setores que sofreram mais com os conflitos?

Os setores que mais sofreram foram os da educação e da economia como um todo. Para se ter uma ideia, na guerra movida pela África do Sul contra Moçambique, milhões de pessoas perderam as suas vidas ou ficaram desalojadas dos seus lares. A desestabilização militar e econômica de que Moçambique foi alvo dirigiu-se especialmente contra as estruturas físicas e sociais do país e afetou gravemente as populações das zonas rurais. Mais de um terço da população rural foi sucessivamente obrigada a abandonar as suas terras, a procurar refúgio nas cidades, a se mudar para os países vizinhos. Professores foram raptados e/ou mortos, escolas e postos de saúde foram destruídos. Os efeitos dessa guerra fazem-se sentir até hoje.

Cabo Delgado tem sofrido constantes ataques terroristas e a população que consegue sobreviver tem sido forçada a emigrar. Sobreviventes da guerra vivem com quase nada e com os traumas que sobraram da fuga. Considera que a Frelimo em parte tem responsabilidade nomeadamente pela incapacidade, aquando chegada ao poder, de unir a população?

No pós-independência a Frelimo teve a capacidade de unir a população. Passados 10 anos a situação política e econômica do país começou a deteriorar-se, sobretudo em função da guerra movida pelo regime da Rodésia do Sul, depois a guerra continuou com o regime do apartheid sul-africano em conluio com forças internas. Nestas condições, uma parcela da população passou a ter certo descrédito em relação ao Estado moçambicano e fica evidente que no atual momento não se consegue manter unida a população. 

Gostaria de abordar, ainda que de forma bastante sumária, as narrativas sobre o que ocorre há cerca de três anos na província de Cabo Delgado e que, a meu ver, assentam, basicamente, em três pontos. 

Para alguns, a violência provocada pelos terroristas tem causas endógenas: nivel baixíssimo de emprego, que afeta, sobretudo, os jovens que não veem futuro em suas vidas e descaso do poder estatal.

Para outros, ela é resultante de causas exôgenas: a intervenção de forças estrangeiras assentes numa matriz de caráter religioso islâmico, que pretende controlar e se apoderar, em escala mais elevada, das riquezas existentes nesta província, como o gás, o petróleo e os rubis. 

Para um terceiro grupo de analistas a violência decorre de uma combinaçao de causas endógenas e exôgenas.

A explicaçao que combina as causas endôgenas e exogenas me parece mais factível. No entanto, nesta combinação julgo que as duas causas não têm a mesma importância. Acredito que a ênfase deverá ser colocada nas causas exôgenas. Isto implica analisar como tem operado nas últimas décadas a chamada “Guerra ao terror” desencadeada pelos Estados Unidos se seus aliados. Com efeito, após quase 20 anos de “guerra ao terror”, existem agora extensas pesquisas sobre o que leva as pessoas a se juntarem a grupos armados islâmicos, para lutar contra forças governamentais ou invasores ocidentais. Os políticos norte-americanos ainda fazem malabarismos para entender que motivos contribuem para tal comportamento incompreensível, mas não é assim tão complicado. Uma grande parte dos integrantes não é motivada pela ideologia islâmica, mas sim pelo desejo de proteger a si, suas famílias ou suas comunidades de forças militares de “contraterrorismo”.

Alguns estudos mostram que o contraterrorismo militarizado norte-americano é uma política autorrealizável que alimenta um ciclo irremediável de violência, ao gerar e realimentar um grupo cada vez maior de “terroristas” à medida que destrói famílias, comunidades e países.

A Al Qaeda e o Estado Islâmico foram expulsos de lugares que EUA bombardearam e invadiram, mas reapareceram continuamente em novos países e regiões. O Estado Islâmico agora ocupa uma faixa no norte de Moçambique, e também criou raizes no Afeganistão. Outros afiliados da Al Qaeda agora estão ativos em vastas partes da África, desde a Somália e o Quênia, da África Oriental a onze países na África Ocidental. Portanto, ganham relevância especial as redes internacionais de islamitas radicais, aos quais se têm juntado moçambicanos radicalizados, principalmente em madraças e mesquitas da Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Qatar e outros países em África que vivem conflitos similares.

As crianças têm sido alvo de recrutamento por lhes serem prometidas melhores condições de vida. Encara a educação como “arma de destruição” destes recrutamentos? Como promover a educação e torná-la mais apelativa?

A educação, não deve ser encarada como “arma de destruição”. Educar pressupõe criar condições para uma vida melhor. As poucas pequisas até agora realizadas não conseguiram mostrar que os terroristas estão a criar uma “nova sociedade”, uma nova educação para os jovens que são raptados. Os jovens estão recebendo armamento para que possam participar em atos terroristas contra a população e alvos estatais, incluindo escolas e postos de saúde. Algo que ainda precisa ser entendido é o fato surpreendente de terroristas que se apresentam como islâmicos, estarem a destruir não apenas os templos católicos, mas também as mesquitas, como afirmou, recentemente o ex-Bispo de Pemba, Luiz Fernando Lisboa.

O poder estatal moçambicano precisa retomar, de forma cabal, um território que, aos poucos, está fugindo ao seu controle. Nestas condiçoes, me parece muito difícil, não só fazer funcionar uma educação mais atraente para os jovens, mas, mais importante, fazer funcionar a sociedade como um todo, com efetiva segurança e com real promoção da melhoria das condições políticas e econômicas das populações de Cabo Delgado.

por Alícia Gaspar
Cara a cara | 4 Maio 2021 | cabo delgado, educação, frelimo, moçambicanidade, moçambique