6ª Edição do "Chá de Beleza Afro" | Entrevista a Neusa Sousa

A sexta edição do Chá de Beleza Afro” decorre já amanhã, dia 4 de junho, das 14h às 20h no Fórum Lisboa, e promete ser o maior evento de afroempreendedorismo e networking em Portugal. Repleto de convidadas da área da política, moda, cinema e psicologia como Sónia Belo Munich, Romualda Fernandes, Nádia Silva, Izamara Matos, Roselyn Silva, Shenia Karlsson, Ana Sofia Martins, entre outras.

Para percebermos mais sobre o evento que motivará as mulheres a “Viver o seu sucesso” o BUALA entrevistou Neusa Sousa. Diretora e curadora do projeto “Chá de Beleza Afro”.

Quando e como surgiu a ideia para o projeto “Chá de Beleza Afro”?

A ideia do projeto surgiu em 2017 quando me deparei com a falta de espaço onde as mulheres negras africanas empreendedoras pudessem congregar os seus serviços, os seus produtos e ter um lugar que as pudesse capacitar. Elas perceberam que têm talento mas desconhecem um bocado o mercado, do empreendedorismo, e lugares de visibilidade em Portugal.

Quando estava grávida de oito meses do meu filho, sem trabalhar, tinha um blog denominado “Minha Doce África”, no qual escrevia alguns artigos a promover as empreendedoras daquela altura. Em 2015, tinha surgido o movimento #BlackPower, e o feminismo negro começou a ser debatido em Portugal, então o blog servia para escrever sobre esses acontecimentos, a invisibilidade da mulher negra, e tudo mais.

Nessa altura decidi, que em vez de ir para cada evento onde as mulheres não se conhecem e não se conectam, eu vou criar um evento que as ajude a conectar e criar pontes, local onde elas possam partilhar as suas dores, mas ao mesmo tempo, partilhar também as suas experiências positivas. E foi assim que surgiu o “Chá de Beleza Afro”.

Neusa SousaNeusa Sousa

Onde é que arranjou as verbas para avançar com o projeto?

No primeiro ano o projeto foi totalmente a meu encargo. Na altura cobrei 5€ de entrada às suas participantes, consegui ter cerca de 30 pessoas no evento, e tive o apoio de amigas e família. O espaço foi cedido por uma associação, só tivemos de comprar lanche para o dia e arcar com os custos de impressão, decoração e tudo mais. O dinheiro que arrecadámos com a entrada conseguimos até, mais ou menos, repor o gasto do nosso orçamento.

A partir dessa primeira edição começaram a ter um feedback positivo…

Organizei a primeira edição totalmente “no escuro”, ou seja, não tinha bem ideia do que eu gostaria de expor. Inclusive, quando a organizei, foi no âmbito do blog “Minha Doce África”, na periferia de Lisboa e para um público reservado.

Por ter tido bastante impacto, decidi que no segundo ano iríamos para o centro de Lisboa. Queria que aquele público fosse a Lisboa, e estivesse nos lugares de visibilidade, locais que não costumam frequentar. E que pudessem aprender. Queria dar qualidade, em que as mulheres, com ou sem formação, com ou sem rendimento, chegassem lá e dissessem “wow eu estou aqui e vou desfrutar deste momento”.

Naquele ano pedi parceria com a Roselyn Silva, fizemos um vídeo promocional e melhorei alguns aspetos.

Enviei mais de 40 pedidos para que me cedessem um espaço, só recebi quatro respostas, três negativas e uma com pedido de reunião por parte do Mário Almeida, o dono do espaço Espelho d’Água. Penso que a minha motivação o levou a aceitar o nosso pedido e a ajudar-nos a tornar a segunda edição do Chá de Beleza Afro um evento de referência. A entrada para o evento subiu de preço para os 15€, e tivemos convidadas de referência. Com persistência conseguimos trazer algumas pessoas conhecidas, mas quando chegaram ao evento surpreenderam-se pela positiva e permaneceram após o fecho a realizar networking e simplesmente a conviver com as participantes. Para mim, esta foi a melhor forma de demonstrarem que gostaram o evento e que foi melhor do que poderiam ter imaginado.

5ª edição do projeto5ª edição do projeto

Tendo em conta o atual panorama social, pode explicar-nos qual a importância de organizar um evento desta escala em Portugal?

Nós estamos a viver a década afro-descendente. Este período começou em 2015 e vai terminar em 2024. Pouco ou nada se tem feito sobre esta década, e Portugal é dos países que menos tem feito a respeito da mesma. Em 2015 houve alguns murmúrios, e pequenos eventos, embora pouquíssimo inclusivos, saíram algumas matérias nos meios de comunicação social portuguesa, mas nada mais se fez. Parece que a década deixou de existir. Não podemos esquecer que Portugal tem uma enorme ligação com os países africanos, especialmente os PALOP, e temos uma população bastante significativa africana, e afro-descendente em Portugal.

Sabemos que vivemos numa sociedade estruturalmente racista, com escassa representatividade da mulher negra nos vários setores importantes e relevantes da sociedade. Cada vez mais é notória a invisibilidade que a mulher negra sofre na sociedade. A mulher negra é o pilar da sociedade, pois é ela que limpa as cidades, no entanto, são marginalizadas ao nível da empregabilidade, de tratamento em setores públicos, de valorização e ascenção profissional, entre outros.

Então, tornar o “Chá de Beleza Afro” um dos maiores eventos de afroempreendedorismo e networking feminino de Portugal, vai não só mostrar às mulheres negras e racializadas, que elas têm um lugar de referência onde podem discutir as suas problemáticas, mas acima de tudo, um ambiente seguro onde podem promover os seus negócios, promover-se a si. Pretendemos que seja uma espécie de Websummit de mulheres negras.

Penso que deve passar a ser do interesse das entidades públicas e privadas, que estão em Portugal, conectarem-se e fazerem parte deste evento, exatamente porque um dos meus maiores desafios hoje em dia é conseguir parceiros e patrocinadores que abracem o projeto, de forma a podermos capacitar estas mulheres. Mulheres estas que pouco ou nada têm para investir na sua formação e quando tentam, é-lhes quase barrado o acesso, devido às inúmeras burocracias associadas ao mesmo. Para mim, este é um evento que pode representar a mulher negra na sociedade portuguesa.

No seu entender, como é ser uma mulher africana na esfera social, política e económica? Como se enfrentam certos desafios?

Sou uma mulher africana com um certo privilégio. Eu para além de ser negra, sou africana, tenho essa componente de africanidade na minha essência, no meu ser e nos diversos desafios que enfrento.

Dentro da esfera de ser mulher negra e africana, existem mulheres africanas privilegiadas, como é o meu caso, mas para eu ser privilegiada, a minha mãe teve de fazer vários sacrifícios, só assim consegui conquistar esse privilégio. Posso não ter passado por muitas das questões que abordo, mas sinto e vejo que acontecem ao meu redor. É uma questão de empatia que está presente em mim e em cada projeto ao qual eu me dedico, como é o caso do “Chá de Beleza Afro”, tentámos colocar-nos no lugar do outro. Partimos do princípio de que não é por termos certos privilégios que todas as mulheres os tenham. Assim, temos a capacidade de olhar à nossa volta e ver como é que as mulheres são tratadas, e de que forma lhes é barrada a entrada num mundo ao qual eu já estou integrada.

No entanto, mesmo com todos os privilégios que tenho, ou possa vir a ter, enfrentei alguns obstáculos como a questão da língua, algo que me apraz falar. Eu nasci em São Tomé e Príncipe, cheguei a Portugal com 10 anos e com um sotaque muito acentuado, na altura uma das grandes barreiras que senti e ultrapassei foi o facto de não falar o “português correcto”. O que é isto de “português correto” se em Portugal existe tanta variação linguística de norte a sul? É necessário passar a mensagem de que os países africanos têm a sua própria variação, e que quem fala dessa forma não é burro/a, nem ignorante. É-nos [aos africanos] incumbida a tarefa de sermos perfeitos em tudo o que fazemos para sermos aceites, e quando mostramos algum tipo de defeito, no meu caso a forma de falar, é motivo suficiente para sermos rotulados, discriminados e marginalizados. Durante muitos anos eu tive vontade de falar muito bem português, eu queria ter aquele português que várias mulheres afro-descendentes falavam. Admirava imenso e sentia que eu tinha algum problema, não entendia porque é que não falava como elas.

Aqui insere-se uma nova questão, a da auto-estima. Pessoalmente passei por episódios de gordofobia. Os corpos negros são hipersexualizados, e quando se encarna um corpo fora do padrão imposto pela sociedade em relação às mulheres negras, és marginalizada, não és aceite. A padronização do corpo da mulher negra é estabelecida e quando foge desse padrão não é aceite porque é uma “negra gorda”.

Há diversos tópicos que necessitam de ser abordados, como é o caso da classe social e da guetização existente na cidade portuguesa. Toda a minha vida residi na periferia lisboeta e atualmente vivo perto de um bairro social, observo e sinto como os corpos negros são tratados nessa área. Existe uma enorme falta de acessibilidade, respeito (nomeadamente nos centros de saúde e outros organismos públicos), acessos, e políticas públicas que incluam esses corpos marginalizados.

Equipa do projeto 'Chá de Beleza Afro'Equipa do projeto 'Chá de Beleza Afro'

O lema deste ano é “Vive o teu sucesso”. Como planeiam abordar este tópico, uma vez que a ideia de sucesso varia de pessoa para pessoa.

Todos os anos eu e a minha equipa refletimos sobre temas e problemáticas patentes na comunidade e esfera social que alberga as mulheres negras. Este ano vou completar os meus 30 anos, então decidimos trabalhar aquele “medo” que se gera quando alcançamos o marco dos 30. Os questionamentos, mais que o “medo”, que a mulher em geral e a mulher africana sofre em particular fizeram com que achássemos que era o tema ideal. Ou seja, eu chego aos 30, ainda vivo com a minha mãe, tenho um filho de 5 anos, não sou casada, não consigo viver (ainda) sozinha por questões monetárias.

Perante o estabelecido pela sociedade, eu não sou uma mulher de sucesso por não ter ainda casa própria, marido, segundo filho e viver com a minha mãe aos 30 anos… (risos). No entanto, profissionalmente, tive muitas conquistas inesperadas, estou num trabalho que adoro apesar de todas as lacunas existentes, promovo eventos, sou bastante respeitada, as pessoas contratam os meus serviços, sou convidada para viajar em trabalho, ganhei prémios, ou seja, profissionalmente as pessoas podem considerar que eu sou uma mulher de sucesso.

Existem pessoas muito bem resolvidas pessoalmente e sentem-se aquém dos seus objetivos profissionalmente. Nota-se aqui um contrasenso que nos faz questionar “Afinal, o que é o sucesso?” Se eu tivesse casa, marido, já seria uma mulher de sucesso? O que é que EU entendo por sucesso? Foram estes questionamentos que comecei a ter com a minha chegada aos 30 e com um encontro social. Intrigou-me também ver mulheres com profissões respeitadas e sólidas a abdicarem das mesmas em procura de algo mais, ou mulheres a recorrem a divórcios por não estarem satisfeitas. Percebi que para elas, as suas situações não era o sucesso. E que conseguiam mais e melhor.

É esta reflexão que eu e a minha equipa queremos levar para a sexta edição do “Chá de Beleza Afro”, o sucesso não é algo transversal, depende da realidade social em que nós crescemos, da nossa essência, e pode mudar. O que considero sucesso daqui a 5 anos, posso não considerar e querer mais e mais, porque somos seres humanos. É impossível estarmos sempre satisfeitos.

Quais as expectativas para a edição deste ano?

Queremos conseguir tornar o “Chá de Beleza Afro” no maior evento de afroempreendedorismo em Portugal! E para tal contamos com a ajuda dos nossos parceiros e divulgação do evento.

por Alícia Gaspar
Cara a cara | 3 Junho 2022 | afroempreendedorismo, chá de beleza afro, corpos negros, feminismo, fórum lisboa, negritude, networking, neusa sousa