Black & White. Poesia, anti-racismo e a Revolução Russa pt. 2

A greve geral dos escravos

Na sua obra maior, The Black Reconstruction in America 1860-1880, publicada em 1935, o sociólogo e historiador norte-americano W.E.B. Du Bois fornece-nos uma inovadora perspectiva sobre a Guerra Civil Americana (1861-1865), o seu desenrolar, desfecho e consequências. Na abertura do célebre quarto capítulo do livro, intitulado «Greve Geral», uma frase de resumo do capítulo dá o mote para uma verdadeira inversão no modo como tanto a historiografia quanto a militância política olhavam, na América pós-Depressão – como, na verdade, sempre olharam antes –, para a história da Guerra Civil: «De como a Guerra Civil significou emancipação e o trabalhador negro venceu o conflito através de uma greve geral que transferiu o seu trabalho do plantador confederado para o invasor do Norte, em cujas frentes de batalha começaram a ser organizados como uma nova força de trabalho.»

Ao definir a fuga em grande escala de escravos das plantações em direcção às linhas da frente do exército da União como uma greve geral, ou seja, como um movimento em que uma enorme massa de trabalhadores deserta do seu trabalho procurando com isso melhorar as suas condições, Du Bois baralha as contas a quase todos os seus leitores. Por um lado, aos académicos liberais, que sempre viam os escravos como uma massa amorfa, inferior e incapaz de qualquer agencialidade, formulando a história como uma grande obra do poder e das elites. Por outro, e com consequências políticas semelhantes, aos pensadores e militantes de esquerda e marxistas, habituados a circunscrever esquematicamente a classe trabalhadora à condição do assalariamento, considerando os escravos numa posição fora dos limites do proletariado e, por conseguinte, da possibilidade de aquisição de uma consciência de si enquanto potência anticapitalista. Aos primeiros, a intelectualidade liberal, Du Bois inverte a tese de que a abolição da escravatura se devera ao progressismo dos líderes da União, ou mesmo que esse tivesse sido desde o início o tema central da guerra. Du Bois mostra como, pelo contrário, o tema da abolição da escravatura estava ausente dos propósitos da União na sua resposta à secessão dos Estados do Sul e como foi introduzido no conflito pela entrada em cena dos escravos enquanto sujeito, ou seja, pela sua greve geral que deslocou centenas de milhares das plantações para as linhas da União, quer como força militar quer, sobretudo, como força de trabalho. Ao mesmo tempo, a densificação que a tese de Du Bois empreende sobre o conceito de classe constitui um contributo inestimável para o pensamento marxista, ainda que, no contexto da hegemonização estalinista, se tenha mantido uma visão ultraminoritária, condição em que se manteria por muito tempo.

Du Bois na União Soviética em 1959Du Bois na União Soviética em 1959

Du Bois opõe o carácter dinâmico, polissémico e plural da classe trabalhadora a uma visão estática, esquemática e, em última análise, sempre produzida a partir do lugar do poder e subordinada a este. O que seu gesto faz é inverter uma narrativa que tende a adaptar os comportamentos da classe a um esquema prévio que estabelece os lugares, o movimento e as formas de consciência. Du Bois mostra, através do caso da Guerra Civil Americana, como o que interessa não é um entendimento da classe a partir da conformação do seu movimento à sua posição relativa nas relações de produção, mas a própria contingência do seu movimento, independentemente do tipo de consciência de si que mobiliza. Para Du Bois, os escravos são trabalhadores não porque o capitalismo os tenha colocado no lugar de assalariados, determinando um comportamento previsto esquematicamente, mas porque o seu movimento produz uma alteração no modo de produção. Há, por via da greve geral dos escravos, um «fazer-se classe trabalhadora», para recuperar um conceito célebre, e também, para invocar outro, «um movimento real que supera um actual estado de coisas».

É através deste modo narrativo que Du Bois mobiliza a linha da divisão racial, não como um elemento subordinado das dinâmicas de classe mas, pelo contrário, como o elemento central constitutivo da pluralidade, e das tensões que isso implica, no interior da classe trabalhadora. É possível percebê-lo tanto através do percurso histórico da escravatura, em que a estrutural divisão racial do trabalho coloca o negro fora do reconhecimento enquanto trabalhador, quer pelos plantadores quer pela classe trabalhadora branca assalariada, mas sobretudo essa centralidade da linha que produz o binómio negritude/branquitude torna-se dramaticamente evidente no período subsequente ao final da Guerra Civil. Na exacta medida do incremento das condições de vida dos trabalhadores negros libertados da escravatura, assim o ódio e o ressentimento dos trabalhadores brancos se abateu sobre eles. A coincidência entre o ódio e o ressentimento dos assalariados brancos e dos plantadores constituía uma força muito mais poderosa do que um qualquer movimento de unidade entre as várias componentes da classe trabalhadora. Como compensação do salário «material», mobilizava a classe trabalhadora branca o que Du Bois designa por salário «psicológico», isto é, uma espécie de retribuição moral composta pela degradação do negro a uma condição tida por naturalmente inferior. O período da Reconstrução transforma-se, desse modo, sobretudo num processo de recomposição – e, na verdade, de particular brutalização – da divisão racial do trabalho pós-escravatura. Toda a política de segregação e violência racial imposta nos últimos anos do século XIX, as Leis de Jim Crow, a disseminação de milícias de supremacistas brancos, a generalização dos linchamentos, etc. emergem, nesta perspectiva de Du Bois, desse contexto de recomposição.

Se pudéssemos imaginar a recepção desta leitura de Du Bois no contexto de alguns debates actualmente em curso, talvez lhe fosse colada a etiqueta de «reducionista de classe». Não sem alguma pertinência, certamente. Mas apenas porque, hoje tal como nos anos 1930, parece vigorar um entendimento genérico sobre a classe que a confina nos estritos limites de uma configuração esquemática das relações de produção, determinada pelo modo de produção. Tanto quem entende que o racismo desapareceria assim que a classe trabalhadora se libertasse vê a classe a partir da universalização da branquitude, como a quem estabelece o carácter estrutural do racismo a partir de uma espécie de fora-do-capitalismo, de raiz culturalizante e trans-histórica, parecem escapar as dinâmicas da própria resistência ao capitalismo. Para Du Bois, o racismo só poderia ser estrutural, mas precisamente porque emerge das estruturas do capitalismo, sendo que o capitalismo não pode ser reduzido a um sistema estanque e divisado previamente de relações económicas e que a linha da divisão racial do trabalho separa não apenas os assalariados dos detentores dos meios de produção mas atravessa a própria classe trabalhadora, material e simbolicamente.

 

Lenine e os Estados Unidos da América

Num brevíssimo texto de 1913, «Russos e Negros», Lenine revela um entendimento semelhante sobre a questão da classe social, ao estabelecer uma comparação entre a libertação dos negros norte-americanos da escravatura e a dos camponeses russos da servidão feudal, processos que ocorreram sensivelmente na mesma altura. Enquanto no caso dos negros norte-americanos a libertação se dera através de um processo de mobilização dos próprios, a servidão feudal na Rússia havia resultado de uma mudança legislativa imposta a partir de cima pela classe dominante. A circunstância de ser ter dado a libertação da escravatura nos Estados Unidos «de uma forma menos reformista» representa, para Lenine, a chave para se compreender a razão por que a posição relativa dos negros norte-americanos, naquele início do século, era menos desfavorável do que a dos camponeses russos, ainda em grande medida sujeitos, na prática, a relações de produção abertamente de tipo feudal. Menos desfavorável, evidentemente, não no sentido de uma correlação com o processo de emancipação dos trabalhadores negros. Na verdade, tratando-se de uma transformação importante no modo de produção, o fim da escravatura nos Estados Unidos – tal como a legislação contra a servidão na Rússia rural – é um processo que se dá no interior da sociedade capitalista, conduzido pela burguesia dominante, razão pela qual a liberdade e a igualdade nunca poderiam ir além do que resulta das suas próprias tensões internas. «O capitalismo não pode dar nem a emancipação completa nem a igualdade completa», uma vez que «não tem “espaço” para outra coisa senão a emancipação legal, e mesmo essa é restringida de todas as formas possíveis», escreve Lenine.

É através da observação dessas restrições às possibilidades de emancipação que a posição de Lenine se aproxima da de Du Bois no modo como ambos divisam, a partir do contexto subsequente ao fim da Guerra Civil, a especificidade da situação dos trabalhadores negros norte-americanos. O processo de brutal recomposição das suas condições de opressão pós-Guerra Civil é um elemento-chave na equação de Lenine que relaciona, de um lado, a emergência do imperialismo e as tensões nos equilíbrios de classes no interior das nações centrais do capitalismo e, do outro, as contradições e tarefas dos movimentos revolucionários para a revolução socialista e a libertação colonial. No texto «Estatística e Sociologia», de 1915, escrevia que os trabalhadores negros norte-americanos «devem ser classificados como uma nação oprimida, uma vez que a igualdade conquistada com a Guerra Civil de 1861-1865, e garantida pela Constituição, foi, em muito aspectos, restringida nas principais regiões do Sul, em articulação com a transição do capitalismo progressivo e pré-monopolista de 1860-1870 para o capitalismo reaccionário e monopolista (imperialismo) da nova era», acrescentando que «o Sul dos Estados Unidos é uma espécie de prisão onde [os negros] ficaram encurralados, isolados e privados de ar puro».

A equiparação dos trabalhadores negros norte-americanos a «uma nação oprimida», tal como antes aos camponeses russos ou, mais tarde por parte de Du Bois, a caracterização da deserção dos escravos das plantações como uma greve geral, todos estes exercícios narrativos, que aparentemente confundem categorias de naturezas diversas – classe, nação e raça –, são na verdade contributos para uma complexificação de cada uma dessas categorias que procura situá-las historicamente e determiná-las pelas dinâmicas e tensões no interior do modo de produção. A linha que atravessa essas dinâmicas e tensões, no contexto da emergência do imperialismo, é a da articulação entre o racismo, a divisão do trabalho e a luta anticolonial. Mais do que numa posição lateral ou subsidiária nos debates sobre o pensamento e a prática revolucionária no primeiro quartel do século XX, essa linha esteve verdadeiramente no centro das principais divisões, controvérsias, mas também aproximações, daquele período.

 

Ruptura dos comunistas com a Segunda Internacional

Num texto de 2007, «Lenine e a Democracia Herrenvolk», o marxista italiano Domenico Losurdo avança a tese de que o principal ponto de ruptura que levou os comunistas a afastar-se da Segunda Internacional não foi o binómio reforma versus revolução, mas a continuada adesão das principais forças sociais-democratas na Europa e nos Estados Unidos à posição supremacista branca. O termo alemão Herrenvolk, em português «raça superior», designa genericamente uma concepção da democracia que a restringe aos indivíduos de raça branca, suprimindo-a para os restantes, na base do pressuposto da superioridade daqueles em relação a estes. Tanto se aplica ao contexto colonial como aos regimes de segregação racial no interior de um território, como o caso dos Estados Unidos. Losurdo mostra como esta concepção foi continuadamente dominante entre as principais figuras sociais-democratas: «Nas décadas anteriores ao início da Primeira Guerra Mundial, Bernstein saudava o expansionismo imperial alemão como uma contribuição para a causa do progresso, da civilização e do comércio mundial: “Se os socialistas propusessem ajudar prematuramente selvagens e bárbaros na sua luta contra a civilização capitalista invasora, isso representaria um regresso ao romantismo.” Juntamente com o Ocidente como um todo, Bernstein, tal como Theodore Roosevelt, atribuía também à Rússia czarista o papel de “força protectora e dominante” na Ásia. O líder social-democrata alemão aproximava-se do limiar do darwinismo social. As “raças fortes” representavam a causa do “progresso” e, portanto, inevitavelmente “tendem a ampliar e expandir a sua civilização”, enquanto os povos não civilizados, e os “incapazes de se civilizar”, levam a cabo uma resistência inútil e retrógrada; quando “se insurgem contra a civilização”, devem ser combatidos, até pelo movimento operário. Se, por um lado, Bernstein lutava por reformas democráticas na Alemanha, exigia, por outro, mão de ferro contra os bárbaros: a lógica é precisamente a mesma da “democracia da raça superior”.»

É neste contexto de continuidade entre as principais forças sociais-democratas – que, sublinhe-se, eram à época os partidos operários – e os interesses das burguesias nacionais que, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a orientação dominante da social-democracia é de apoio à guerra e à posição dos respectivos governos, o que em boa medida ditaria a dissolução da Segunda Internacional em 1916. Em sentido inverso, e assumindo uma posição antinacionalista e anticolonial, várias forças afirmam uma outra posição. A defesa da guerra civil contra as burguesias nacionais e de uma orientação para a autodeterminação das nações oprimidas, já não subordinada a uma recomposição no interior do capitalismo mas à consigna internacionalista da revolução mundial, é a linha de demarcação fundamental que marca a Conferência de Zimmerwald, o primeiro de três encontros internacionais, entre 1915 e 1917, de organizações socialistas que se opõem à guerra e que seria uma espécie de embrião da Terceira Internacional, a Internacional Comunista, criada em 1919. A chamada esquerda de Zimmerwald, fortemente influenciada por Lenine e os bolcheviques russos, passa a compor a tendência mais radical dos partidos operários saídos das ruínas da Segunda Internacional e viria a ter um papel central, quer para o fim da guerra quer para a vaga revolucionária desses anos.

 

A autodeterminação das nações oprimidas

A reflexão de Lenine sobre a questão da autodeterminação das nações oprimidas é crucial para a sua articulação entre o problema da classe social e da raça, do trabalho e da organização dos trabalhadores, da questão nacional e da revolução. Trata-se de um campo de debate que foi fértil em controvérsias entre marxistas, incluindo alguns bastante próximos entre si, como Lenine e Rosa Luxemburgo, mas para o modo como Lenine via a situação específica dos trabalhadores negros norte-americanos, a sua continuidade com luta anticolonial e as consequências políticas e organizativas que daí retira, a sua posição neste debate revela-se central. No seu ensaio de 1914 «Sobre a autodeterminação das nações» reitera a qualificação dos trabalhadores negros do Sul dos Estados Unidos como uma nação oprimida: «Nos Estados Unidos da América, a divisão entre os Estados do Norte e os do Sul persiste até hoje em todas as áreas da vida; os primeiros têm tradições mais fortes de liberdade e de luta contra os escravocratas; os segundos transportam as tradições mais enraizadas da escravatura, práticas de perseguição aos negros, que são economicamente oprimidos e culturalmente discriminados (44 por cento dos negros são analfabetos, contra 6 por cento dos brancos), e assim por diante. Nos Estados do Norte, as crianças negras frequentam as mesmas escolas que as crianças brancas. No Sul há escolas separadas “nacionais” — ou raciais, como preferirem — para crianças negras. Creio que este seja o único caso de “nacionalização” real das escolas.»

Descontando a visão excessivamente benigna que revela sobre a situação nos Estados do Norte, é significativo neste trecho, por um lado, o continuum que estabelece entre a escravatura e o regime da segregação racial subsequente à Guerra Civil e, por outro, a indistinção entre a questão racial e a questão nacional. Mas é igualmente significativo que da separação entre o Norte e o Sul resulte um quadro claro da «democracia Herrenvolk» de que falava Losurdo. O interesse desta perspectiva não é apenas analítico, mas impõe consequências políticas de enorme relevância, uma vez que coloca a classe trabalhadora branca norte-americana e as suas organizações perante uma decisão dramática, semelhante à que se colocava aos sociais-democratas europeus perante a guerra ou o colonialismo: ou tomar o partido das classes dominantes, reproduzindo o pressuposto da superioridade racial dos civilizados face aos bárbaros, ou assumir que a autodeterminação dos trabalhadores negros do Sul é essencial para a causa da libertação de todos os trabalhadores e o sucesso da revolução.

Por diversas ocasiões, Lenine dirige uma crítica aguda aos dirigentes operários norte-americanos – primeiro ao Partido Socialista da América e, depois de 1919, ao Partido Comunista dos Estados Unidos da América –, quase exclusivamente brancos, pela sua incompreensão da importância decisiva da questão racial para a luta de todos os trabalhadores. Não serão alheias a atenção continuada de Lenine à questão racial nos Estados Unidos e a linha política dos bolcheviques e, a partir de 1919, da Internacional Comunista à entusiasta adesão de militantes negros norte-americanos, com particular destaque para muitos intelectuais e artistas, à Revolução Russa e ao marxismo – entusiasmo pelo menos tão grande quanto viria, mais tarde, a ser a sua decepção.

 

O movimento negro e a Internacional Comunista

O impacto global da Revolução Russa de 1917 foi obviamente imenso e foi tendo, ao longo do tempo, modos e formas variadas. Nos seus primeiros anos, até ao início da década de 1930, gerou um enorme entusiasmo entre os militantes negros norte-americanos mais radicais, desde logo pela dimensão anticolonial do programa e da estratégia dos comunistas russos, mas sobretudo pela criação, em 1919, da Terceira Internacional. A emergência de uma estrutura internacional fornecia a esses militantes a possibilidade de articulação da luta específica dos trabalhadores negros norte-americanos com um projecto de transformação revolucionária global que não encontravam nos partidos socialistas e comunistas no seu país. De facto, a dinamização de organizações e publicações do movimento negro nas duas primeiras décadas do século XX deu-se fora da órbita dos partidos, sindicatos e organizações operárias, quase exclusivamente brancas e largamente insensíveis, senão mesmo hostis, a uma abordagem específica da questão negra.

Das diversas organizações negras destaca-se a African Blood Brotherhood for African Liberation and Redemption (ABB), criada em 1919, no Harlem, pela iniciativa do jornalista e escritor caribenho Cyril Briggs, também responsável desde o ano anterior pelo jornal Crusader. A ABB defendia a organização armada contra ataques racistas e propunha unir os radicais negros em torno de temas como o racismo, o colonialismo, o nacionalismo negro e o anticapitalismo, reforçando a ligação entre a consciência racial e de classe. Em torno do ABB e do Crusader agregaram-se inúmeros militantes. Foi um período de forte mobilização, em grande medida pelo sentimento de traição que muitos negros sentiram por, depois do final da Primeira Guerra Mundial, o presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, insistir numa ideia de autodeterminação e de democracia que excluía ostensivamente os negros e os povos colonizados. Em sentido inverso, no manifesto fundador da Internacional Comunista essa postura era denunciada: «Na melhor das hipóteses, o programa de Wilson não aspira senão a uma nova designação para a escravidão colonial.»

Claude McKay a intervir no congresso da IC em 1922Claude McKay a intervir no congresso da IC em 1922

A aproximação entre esses militantes, organizações e publicações e o nascente Partido Comunista dos Estados Unidos da América, fundado em 1919 a partir de uma cisão do Partido Socialista da América, dá-se, não sem resistências, pela mediação da estrutura internacional. A questão negra esteve sempre presente no discurso e nas conclusões dos primeiros congressos da Internacional, mais claramente a partir do segundo, em 1920, e de modo mais desenvolvido no quarto, no final de 1922. A resolução do segundo congresso, redigida por Lenine, dizia: «Todos os partidos comunistas devem apoiar activamente o movimento revolucionário nas nações dependentes e que não beneficiem de direitos iguais (por exemplo, a Irlanda, os negros na América, etc.) e nas colónias.» Durante esse congresso, o jornalista e militante branco John Reed, invectivado por Lenine, fez uma intervenção detalhada sobre a opressão racista nos Estados Unidos. Mas é no quarto congresso que a questão negra ganha densidade nas resoluções da Internacional, com o contributo decisivo de dois militantes negros, ambos da ABB, Otto Huiswoud e Claude McKay, que integram a delegação norte-americana.

A comissão criada no início dos trabalhos do congresso com o objectivo de redigir o documento que ficaria com o título «Teses sobre a Questão Negra», presidida por Huiswould e com a participação de McKay, dotou a Internacional de uma posição sustentada e desenvolvida, incluindo um extenso ponto sobre a situação dos negros e a violência racista nos Estados Unidos. Mas o congresso ficaria igualmente marcado pelas intervenções de ambos, onde se tornam claras tanto a natureza estrutural do racismo nos Estados Unidos como as contradições no interior da classe trabalhadora e as dificuldades de articulação com as organizações socialistas e comunistas.

O surinamês Otto Huiswould, o primeiro dirigente negro do Partido Comunista dos Estados Unidos e funcionário da Internacional ao longo da década de 1920, refere que «embora a questão negra seja sobretudo de natureza económica, devemos incluir na nossa análise os seus aspectos psicológicos». Dois dias depois, Clara Zetkin, dirigente dos comunistas alemães, usaria precisamente o mesmo termo – «aspectos psicológicos» – para se referir à especificidade da opressão de género. Huiswould explica que «os negros ainda carregam o fardo da opressão que remonta ao tempo da escravatura», descrevendo as terríveis condições no Sul, onde «o linchamento de um negro é motivo de entretenimento», mas também a política de muitos sindicatos que excluíam trabalhadores negros das suas fileiras. Em resposta, muitas vezes os negros recusavam-se a respeitar os piquetes desses sindicatos racistas: «Por amor de Deus, temos o direito de o fazer. Temos de proteger as nossas vidas», sublinhou Huiswould.

Por seu turno, Claude McKay, poeta jamaicano e uma das principais figuras do movimento Harlem Renaissance, sublinhou as dificuldades do trabalho político no contexto norte-americano, as tibiezas das organizações socialistas e comunistas e os seus principais desafios: «Quando enviamos camaradas brancos ao Sul, eles são geralmente expulsos pela oligarquia branca, e muitas vezes é a turba branca que se lança sobre eles, os agride e os cobre de alcatrão e penas. Mas se enviarmos camaradas negros, eles nem sequer regressam, porque são linchados e queimados.» Refere ainda que a denúncia da «divisão e da opressão racial é feita com muita timidez, porque persistem muitos preconceitos desse tipo entre os socialistas e os comunistas norte-americanos. A maior tarefa que os comunistas nos Estados Unidos devem levar a cabo é, antes de mais, libertarem-se das suas próprias concepções em relação aos negros, antes de pretenderem mobilizá-los através de um qualquer discurso radical».

 

Os intelectuais negros e a Revolução Russa – ânimo e decepção

Ao longo dos anos 1920 e até ao início da década seguinte, inúmeros militantes de todo o mundo visitaram a Rússia soviética. A actividade da Internacional, sobretudo nesses primeiros anos, facilitava essa circulação que se mobilizava pelo entusiasmo com a possibilidade tangível de uma revolução global. Moscovo torna-se, de repente, numa espécie de território de encontros cuja natureza permite uma experiência viva de um mundo que se imagina liberto de todas as opressões. Por exemplo, Claude McKay, depois de uma viagem à Rússia afirma à imprensa de Nova Iorque que Moscovo tinha sido o único sítio do mundo onde o «trataram por poeta, e não por poeta negro». Além de McKay, muitos intelectuais negros norte-americanos – académicos, jornalistas, escritores, poetas, actores – fazem um exercício semelhante, em sentido inverso, ao de Maiakovsky em 1925, retirando dessas viagens não só o ânimo para a sua militância política como também uma importante influência para a sua produção intelectual, artística ou literária. A União Soviética, os bolcheviques, a revolução, o socialismo, Lenine, a libertação da opressão capitalista e colonial, etc., passam a ser temas recorrentes na produção cultural da militância política negra nos Estados Unidos. Em 1924, Lovett Fort-Whiteman escrevia que na União Soviética «a vida é a própria poesia». 

Do mesmo modo, a efervescência artística e cultural que marcou os primeiros anos da Revolução Russa também facilitava todo o género de cruzamentos. Por exemplo, em 1932 um grupo de 22 negros norte-americanos viajaram para Moscovo para participarem na produção conjunta de um filme sobre a radicalização do movimento negro no Sul dos Estados Unidos. O responsável pelo argumento foi o poeta Langston Hughes e o título era Black and White (não confundir com o pequeno filme de animação com o mesmo título, inspirado no poema de Maiakovsky, de que se fala na primeira parte deste artigo). Sem grandes explicações – porventura porque Estaline estivesse empenhado no reconhecimento da União Soviética pela administração norte-americana, o que também implicava a exigência de uma viragem «patriótica» do Partido Comunista dos Estados Unidos, na lógica do frentismo popular –, a produção foi interrompida e o filme acabou por nunca ver a luz do dia. De facto, 1932 correspondia já a uma outra fase. A revolução entrava num processo acelerado de degenerescência burocrática e repressiva. Sem prejuízo do papel importante no apoio soviético aos movimentos anticoloniais ao longo das décadas seguintes, muito daquele entusiasmo inicial que mobilizou uma militância esperançosa na possibilidade real de superação de todas as opressões muito rapidamente se transformou numa grande decepção.

Há certamente uma dimensão pessoal nessa decepção, mas a principal consequência é política. A viragem estalinista na Revolução Russa fez recuar a sua perspectiva sobre a questão negra nos Estados Unidos à esfera da hegemonia branca na classe trabalhadora norte-americana, desfavorecendo a articulação entre a sua especificidade e autonomia e a luta revolucionária e anticolonial global. Ao longo das décadas seguintes não deixou de haver, em momentos e modos muito diversos, uma ligação forte entre o marxismo e o movimento negro nos Estados Unidos, mas sempre tendencialmente fora da matriz dos primeiros anos da Revolução Russa e da Internacional Comunista.

 

***

 

Muita coisa se alterou, certamente, de há um século para cá. Já não existe nem União Soviética nem uma transformação revolucionária global parece hoje uma ideia minimamente exequível. O que persiste, mesmo que em condições mudadas, é o racismo estrutural como elemento indispensável para o funcionamento do capitalismo, hoje em decomposição acelerada e num devir profundamente violento. Os termos dos debates de há cem anos continuam a ecoar nos debates actuais entre «os que nada temos a perder», e será por certo esse o interesse de os manter presentes.

 

Os dançarinos negros

Nós
Que nada temos a perder
Devemos cantar e dançar
Para que os ricos do mundo
Não nos subjuguem.

 

Nós
Que nada temos a perder
Devemos rir e dançar
Para que a nossa alegria
Não nos abandone.

(Langston Hughes, 1930)


Ler primeira parte Black & White. Poesia, anti-racismo e a Revolução Russa.

 

por Fernando Ramalho
A ler | 20 Junho 2025 | Claude McKay, escravatura, EUA, guerra civil, Lenine, revolução russa, União Soviética, W.E.B. Du Bois