As histórias da história de África, entrevista a Isabel Castro Henriques

Isabel Castro Henriques é uma das mais destacadas historiadoras de África em Portugal. Esta entrevista, realizada em Dezembro de 2018, foi uma escolha deliberada para um número da Práticas da História com um dossiê dedicado à história da comemoração dos “Descobrimentos Portugueses”. Tal permite, mais uma vez, desnaturalizar a perspectiva dos estudos históricos elaborados a partir do centro europeu e olhar de forma mais aprofundada para a forma como a disciplina da história tem contado África e os africanos. Acompanhando o percurso científico e profissional de Isabel Castro Henriques, desenvolvido entre as universidades de Paris e de Lisboa, conversámos sobre a relação entre história e ideologia colonial e a academização da história de África em Portugal, processo no qual foi uma figura pioneira. Durante a sua longa carreira, foi autora de obras como Commerce et changement en Angola au XIXème siècle (1995), Percursos da Modernidade em Angola. Dinâmicas comerciais e transformações sociais no século XIX (1997), São Tomé e Príncipe. A invenção de uma sociedade (2000), O Pássaro do Mel. Estudos de História Africana (2003), Os Pilares da Diferença. Relações Portugal-África – Séculos XV-XX (2004), Território e Identidade – A Construção da Angola Colonial (2004), ou Herança Africana em Portugal (séculos XV-XX) (2009). Entre 1996 e 2004 pertenceu ao Comité Científico Internacional do Projecto “A Rota do Escravo”, da UNESCO, tendo também sido comissária científica de exposições e museus sobre escravatura e sobre a história dos africanos em Portugal. Entre outras obras, Isabel Castro Henriques publicará em breve A Descolonização da História. Portugal, a África e a desconstrução de mitos historiográficos. Nesta conversa, abordámos também a evolução das diferentes historiografias de África, em particular desde as independências africanas, feitas a partir do continente europeu e africano. Partindo do seu interesse pela cultura material e visual, conversámos ainda sobre musealização da história de África, acompanhando debates recentes sobre o anunciado “Museu das Descobertas” e a restituição de objectos e obras de arte trazidos das ex-colónias.

Isabel Castro HenriquesIsabel Castro Henriques

Um percurso intelectual e académico

Queremos começar esta entrevista com algumas perguntas sobre o seu percurso académico. Começou na Universidade de Paris com uma licenciatura e um mestrado em História, depois de um curto período de tempo (1964-1966) inscrita na licenciatura em História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Fez depois o Diplôme d’Études Approfondies (DEA) e o Doutoramento também em França. Porque é que foi estudar para Paris? E como é que se começou a interessar por História de África? Outra forma de fazer a pergunta seria: como é que a sua biografia a levou a escolher trabalhar a História de África?

O meu interesse pelas questões africanas surgiu na adolescência, em finais dos anos 1950, princípios de 1960. Tinha sempre em casa publicações estrangeiras, sobretudo revistas francesas e inglesas, que falavam e mostravam em imagens as várias situações que se iam vivendo no mundo. E o mundo interessava-me: viajei muito de carro desde os 10 anos, sempre nas férias grandes, durante anos, por toda a Europa, com os meus pais, que me mostravam as diferenças e as particularidades de cada espaço, de cada gente, de cada cultura. Por outro lado, ia adquirindo uma formação aberta à diversidade: entrei aos 3 anos (em 1949) para o Liceu Francês (ainda era a École Française, instalada no Príncipe Real) e lá fiquei até aos 11 anos, quando fui para o liceu português, deixando então o ensino francês (nunca perdi nem a língua, nem o gosto pela cultura francesa) e seguindo uma formação portuguesa. De entre as situações mundiais que mais me marcaram, estão sem dúvida as que dizem respeito aos tempos que se viviam então nos EUA. Foi assim que contactei pela primeira vez com questões como os direitos civis, a perseguição aos negros americanos, as situações de tortura, as execuções, notícias e relatos que me perturbavam particularmente: recortava textos e imagens, alguns dos quais tenho guardados até hoje.

Houve um outro episódio da minha vida que também me marcou muito. A minha família tinha uma quinta na zona do Ribatejo onde passava sempre, com os meus pais e os meus irmãos, uns largos dias no Verão: a velha cozinheira da casa, a senhora Maria, era negra e conversava comigo. Contou-me que era de Angola e que tinha sido vendida como escrava em São Tomé quando era criança. Como é que era possível que uma pessoa que eu conheci com 10, 12, 14 anos tivesse sido vendida como escrava? Já não havia escravos… A escravatura tinha sido abolida, mas na sua memória persistia esse facto doloroso da infância: tinha sido vendida como escrava. Não sei se de facto foi ou não vendida, mas, para ela, essa era uma situação real. Na altura eu nada sabia nem de história, nem de África, mas hoje penso que ela terá sido levada criança para São Tomé, acompanhando a mãe angolana e serviçal para as roças de cacau, e depois entregue provavelmente a uma família de roceiros portugueses, separada da mãe e acabando por vir parar a Portugal. Bem tratada na quinta como doméstica da altura, nunca perdeu a memória terrível de uma suposta escravização em São Tomé.

Em 1966 tive o meu primeiro contacto com África, depois de dois anos lectivos inscrita e frequentando o curso de História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, curso que me parecia cinzento e vazio, sem dar conta das realidades do mundo, tido como fechado e pequenino. Não me interessava, embora tivesse feito algumas poucas cadeiras. O Pedro foi então enviado para o serviço militar obrigatório em Angola e eu fui atrás: casámos no Huambo, então Nova Lisboa. Corria o ano de 1966, a guerra estava instalada no Norte e as notícias chegavam e criavam muitas interrogações sobre a legitimidade portuguesa da guerra, numa terra que era dos africanos. Fiz algumas viagens para o Sul, que me marcaram muito: vi terras e gentes novas e dei-me conta da rica realidade cultural das populações e dos sítios que cruzei. Mas vi também, na cidade do Huambo, uma realidade colonial diferente daquela que eu tinha aprendido aqui. Havia discriminação? Havia. Havia, por exemplo, cinema para os pretos e cinema para os brancos. Não havia nenhuma placa que dissesse “este é cinema de brancos, este é cinema de pretos”, mas havia uma prática que instalava os brancos (e alguns assimilados) no cinema Ruacaná, enquanto os pretos iam para o cinema São João, onde havia um ecrã que se via dos dois lados. Assisti a vários episódios de violência verbal e de desprezo pratica- dos por portugueses contra africanos, todos tratados por tu e reduzidos a uma situação de inferioridade. Onde estavam as tão faladas harmonia social e igualdade entre todos, brancos e negros? Nunca as encontrei…

Entretanto, regressámos a Portugal, tinha nascido a minha primeira filha, Inês, e o país parecia agora cada vez mais pequeno e mais retrógrado. Decidimos então – com a ajuda dos meus pais – partir para a Europa, estudar em Paris, onde o Maio de 68 acabara de acontecer. Instalámo-nos em Paris em 1970: a Inês, com 3 anos, foi para a maternelle, eu e o Pedro inscrevemo-nos na universidade, em História e em Antropologia, respectivamente. O espaço universitário francês era uma festa, cheio de conhecimento, de debates, de riqueza e de pluralidade intelectual e cultural. Durante os anos que se seguiram vivi a universidade francesa, aprendi a estudar, a debater, a pensar e aprendi também que a África e os africanos tinham uma longa e documentada História. Fiz todo o curso de História – DUEL, Licence, Maîtrise – na Universidade de Paris I Panthéon-Sorbonne, percorri milhares de vezes os corredores da velha e sempre estimulante Sorbonne, as aulas eram fascinantes, lugares de reflexão, de aprendizagem e de muito trabalho…

Que distância em relação às aulinhas cinzentas da Faculdade de Letras de Lisboa! Estruturada em disciplinas de base obrigatórias que abrangiam os diferentes períodos da História, a licenciatura apresentava um leque de disciplinas opcionais muito vasto, sobre as várias regiões do mundo, incluindo também o ensino das metodologias e das outras áreas das ciências sociais. As ciências sociais, a sua interligação e a sua im- portância para o estudo da História, na esteira da reflexão de Braudel, estavam de facto fortemente presentes na formação académica do historiador. E o movimento do Maio de 1968 tinha injectado grandes mudanças no quadro do pensamento, do conhecimento, e naturalmente nos programas dos cursos universitários.

Fiz cadeiras de Antropologia, Sociologia, História de Arte, Arqueologia, e muitas opcionais de História, como História da China, História da Rússia, História dos Estados Unidos, História da América Latina e, obviamente, História de África. Era a História de África que mais me interessava. Não se tratava da história dos europeus – ou dos franceses – em África, mas da história das sociedades africanas, múltiplas e diversas, os africanos ocupando o lugar central como agentes da sua própria história.

Desde 1972 passei a integrar regularmente e a participar nas muitas actividades que se desenrolavam no Centre de Recherches Africaines (CRA), o centro de estudos, de pesquisa e de investigação africanas da Sorbonne. Este centro era extremamente dinâmico, multiplicavam-se as palestras e nele participavam os grandes pensadores, historiadores, antropólogos que trabalhavam sobre África: George Balandier, Raymond Mauny, Yves Person, Jean Devisse, Jan Vansina, Jack Goody, Catherine Coquery-Vidrovitch, Claude Meillassoux e tantos outros. Este centro foi efectivamente um espaço de formação, de debate, de reflexão, de aprendizagem extraordinário, também envolvendo africanos, nomeadamente da Escola de Dakar, que tinha importantes ligações com França. Era um mundo de “africanistas” – o termo tendo posteriormente sido rejeitado –, um mundo de gente interessada na África e na sua autonomia e singularidade histórica e cultural, que não pensava a África como apêndice da Europa, como acontecia em Portugal, onde a África era essencialmente “portuguesa”, uma extensão do país situada no Ultramar. A velha linha de reflexão hegeliana, já há muito ultrapassada na Europa de então, continuava a marcar o pensamento e o conhecimento portugueses da África: os africanos não tinham escrita, não tinham cultura, não tinham Estado, não tinham religião, logo não tinham história. No princípio dos anos 1980, já professora assistente do departamento de História da Faculdade de Letras – para onde entrei em finais de 1974 –, quando inscrevi a minha tese de doutoramento na Universidade de Paris I e depois a registei na Faculdade de Letras, um então professor catedrático da Faculdade de Letras disse-me que ‘aquilo’ não era história, porque era um estudo sobre grupos africanos e os africanos obviamente não tinham história, eram sim objecto de estudo da antropologia, a ciência que estudava as “sociedades primitivas” na época colonial, e não já na década de 1980! A minha tese de doutoramento era sobre comércio e mudança na Angola oitocentista e tratava essencialmente da história e das dinâmicas sociais, económicas e políticas de três nações africanas, três sociedades da região – os Lundas, do grande império lunda, os Quiocos, organizados em pequenas mas activas unidades políticas e os Imbangalas do reino de Kasanje. Uma história muito complexa, estudada na longa duração e no cruzamento das mais diversas fontes para compreender o século XIX, e muito marcada também, durante séculos, pelas relações com os portugueses. Mas não era história… A minha universidade (Paris I), onde eu aprendi a história de África, acolheu e felicitou o meu trabalho, defendido no início de 1993, e dirigido pelo historiador e professor Jean Devisse.

Fazer História de África em Portugal

O regresso a Portugal em 1974 e a introdução da História de África no plano de estudos do curso de História da Faculdade de Letras de Lisboa: como foi?

Defendi a dissertação de Maîtrise sobre a circulação das plantas, a introdução da cana-de-açúcar e o sistema de plantação baseado na mão-de-obra escrava africana em São Tomé nos séculos XV-XVII em finais de 1974 e regressei a Portugal. Entrei então como assistente na Faculdade de Letras de Lisboa, onde outros ‘estrangeirados’, quer dizer, vindos do estrangeiro, integravam já a universidade, aberta a todas as propostas de ensino inovadoras. Corria o início do ano lectivo 1974-1975 e propus então ensinar História de África. Ao longo de vários anos fui introduzindo a África no ensino da história: foi a primeira cadeira de História de África na Universidade Portuguesa. Introduzi cadeiras gerais, cadeiras e seminários temáticos sobre História de África que passaram a integrar o curriculum de História, e o meu trabalho, pois estava sozinha a leccionar esta matéria, era imenso – e tinha ainda a minha segunda filha, Mariana, recém-nascida –, contando com muitos estudantes portugueses e africanos que escolhiam estudar África.

Éramos muitos os professores ‘estrangeirados’ na FLUL e o ensino, apesar de múltiplas derrapagens, beneficiou com a diversidade de temas, de disciplinas, de debates, de novidades introduzidas. Nos finais da década de 1980, quase todos os ‘estrangeirados’ foram despedidos. Éramos todos assistentes, tínhamos contratos a termo, e os catedráticos (saneados pelos estudantes nos tempos imediatos ao 25 de Abril e reintegrados posteriormente) que dirigiam o Conselho Científico entenderam que o trabalho não tinha sido bem desempenhado, por isso os contratos não foram renovados. Não se podia propriamente dizer que era porque tinham ideias progressistas… mas foi efectivamente um saneamento político.

Também cheguei a ser despedida, mas o facto de ter sido membro do Conselho Directivo da Faculdade impediu, nesse momento, o meu despedimento, por ter direito a uma sabática de um ano, remetendo a decisão para o fim dessa licença. Fui para Paris, onde tinha já concluído em 1983 – sempre na Universidade de Paris I – o DEA (Diplome d’Études Approfondies – Histoire de l’Afrique), para continuar o meu doutoramento. O ano passou e fiquei ‘esquecida’ na Faculdade, o que levou à renovação automática do meu contrato, e à impossibilidade de ser despedida num prazo de dois anos. Nesse tempo acabei o doutoramento e passei automaticamente a professora auxiliar. Mas ainda estive um ano, 1993-1994, sem distribuição de trabalho docente no Departamento de História, dando apenas aulas interdepartamentais, organizadas pelo Conselho Directivo e pelo Conselho Científico da Faculdade. No ano seguinte, a situação do Departamento de História mudou com a reforma dos antigos professores catedráticos, e pude enfim ser reintegrada e participar no ensino da História.

Como é que foi a convivência institucional entre a História de África e a História dos Descobrimentos ou da Expansão, entre essas duas abordagens historiográficas a África, na Faculdade de Letras?

No pós-25 de Abril houve uma preocupação por parte dos professores mais jovens, quer dizer, menos graduados na carreira académica, muitos formados nas instituições portuguesas e marcados pela relevância que a historiografia portuguesa atribuía à época dos Descobrimentos, em inovar o ensino e a reflexão relativos à História dos Descobrimentos e da Expansão portuguesa, adoptando perspectivas menos luso-tropicalistas e ditirâmbicas desse fenómeno histórico e procurando os ensinamentos de alguns historiadores portugueses marcados pela historiografia braudeliana, muito particularmente Vitorino Magalhães Godinho e Luís de Albuquerque. Essa abertura do ensino da História dos Descobrimentos permitiu alguma complementaridade – na abordagem de questões teóricas e conceptuais comuns, na partilha de documentos e de fontes, na participação em debates historiográficos sobre a África cruzando as perspectivas africana e europeia – com o ensino inovador e recente da História de África, que eu introduzira e mantinha desde 1974, apesar de alguns acidentes de percurso, que emergiram no quadro da docência e da intervenção pedagógica de professores ‘seniores’, sobretudo catedráticos. A minha cadeira de História de África foi proibida e chegou a ser substituída por uma outra intitulada História da Expansão Portuguesa. Esta modificação concretizou-se apenas no título, porque continuei a dar o mesmo conteúdo: História de África. Os alunos da altura movimentaram-se e fizeram abaixo-assinados abrangentes, dirigidos a intelectuais e políticos de então, denunciando o que se estava a passar na Faculdade de Letras. No ano seguinte, a cadeira voltou a chamar-se “História de África”. Sempre tive o apoio estudantil e as relações com os colegas dos Descobrimentos foram sempre de cooperação e partilha de conhecimentos.

A situação alterou-se a partir de meados dos anos 90, quando obtém o doutoramento. A academia ficou mais apaziguada em relação a estes temas?

Estive e pude leccionar na Faculdade de Letras sem grandes problemas. Passei nos concursos, fiz a agregação. Tinha boas relações com os professores de outros departamentos, que aliás sempre me apoiaram, por exemplo no campo da antropologia e da geografia os professores Viegas Guerreiro e Ilídio do Amaral, mas também o professor Manuel Ferreira, da área das literaturas. Os problemas eram sempre com a História, com aquele peso do passado, da mitologia colonial. Criei, entretanto, programas novos na área dos estudos africanos – a licenciatura, o mestrado e o doutoramento em História de África –, frequentados por muitos alunos africanos, alguns estrangeiros (em particular europeus/estudantes Erasmus), e também, naturalmente, portugueses, alguns com fortes vivências africanas, os chamados ‘retornados’. Entretanto, depois da agregação passei a associada e ainda concorri a catedrática, num concurso em que fiquei em segundo lugar. Sabia que não ia passar: estava marcada pelo meu percurso polémico no Departamento de História, para além do facto dos catedráticos serem, apesar de uma maioria docente feminina, sempre os homens. Ao longo de décadas, só duas mulheres foram nomeadas catedráticas em História no século passado e a situação perdura até hoje.

A UNESCO e a memória da escravatura

Mas teve uma carreira internacional, aprofundada com a relação de colaboração com a UNESCO iniciada no final dos anos 90. Esta perspectiva historiográfica sobre história de África, que desenvolve a partir dos estudos feitos na Universidade de Paris, consolidou-se com a participação no projecto internacional “A Rota do Escravo”, a partir de 1996, projecto cuja rede nacional coordenou a partir de 1997. Quer falar-nos um pouco dessa relação com a UNESCO?

Em 1995, já depois do doutoramento, fui convidada para integrar o Comité Scientifique pour la Protection du Patrimoine Culturel Africain da UNESCO, com o apoio do professor Jean Devisse, que foi o meu orientador de tese. Foi nessa altura que se começou a pensar, na UNESCO, de uma maneira mais séria e precisa sobre as questões do património imaterial. Entretanto, a UNESCO criou o projecto “A Rota do Escravo” e o secretário-geral da instituição, Federico Mayor, convidou-me em 1996 para fazer parte do Comité Científico Internacional do Projecto, onde estive até 2004. Fiz vários trabalhos nesse âmbito, em estreita cooperação com a direcção do projecto, em particular com o grande pensador africano Doudou Diène, tendo desenvolvido actividades de investigação, de divulgação, de publicação, de educação relativas às questões da escravatura e do tráfico de escravos. Tive, e tenho até hoje, uma relação muito forte com esse projecto. Foi, aliás, nesse âmbito que organizei em Portugal, em 1997, o Comité Português do Projecto UNESCO “A Rota do Escravo”, que funcionou até há dois anos atrás, altura em que a sua intervenção para alargar o conhecimento da história das questões esclavagistas no mundo, de consciencializar a sociedade portuguesa para a importância histórica do fenómeno da escravatura e para a sua actualidade, de estimular o estudo, o ensino, a publicação, a difusão da questão esclavagista atingiu pelo menos alguns dos seus objectivos, sendo o momento de parar para pensar em formulações futuras.

Mas embora tenha desenvolvido estes trabalhos, as questões da escravatura – mais rigorosamente da escravização das populações africanas – não esgotavam as minhas áreas de interesse intelectual e de investigação histórica, pois que os africanos eram muito mais do que pessoas escravizadas, e a sua história milenar não se limitava à questão esclavagista, embora esta fosse uma questão central da sua história e da história do mundo.

Esta é uma das questões que não deve ser esquecida no debate actual sobre a criação dos museus da escravatura. A minha posição assenta na minha perspectiva de historiadora de África, que procura analisar as questões africanas a partir dos fenómenos endógenos, e não a partir do exterior, desconstruindo preconceitos. No contexto da escravatura, em particular atlântica, os africanos aparecem como mercadorias, objectos, a quem foi retirada pelos europeus esclavagistas e comerciantes de escravos a sua condição humana. A maioria destes homens e mulheres foram escravizados, pois eram livres ou dependentes, integrados nas famílias (linhagens) africanas e desempenhando funções precisas e reconhecidas nas sociedades de origem. Muitas são as formas e as características desta dependência, quase sempre provisória, dispondo de estatutos protectores, muito variáveis consoante as regiões e as culturas africanas. Uma longa e dura operação de escravização europeia dos africanos, que começou ainda em terras africanas antes de continuar nas Américas, retirou-lhes a sua identidade africana (família, grupo, sociedade, território, religião, cultura) e transformou-os em coisas para exportação. A fixação da figura do escravo identificado pela cor negra da pele contribuiu para transformar o africano em escravo ‘natural’. A fórmula africano=negro=escravo identifica uma sinonímia que conjuga as vertentes cultural, biológica e social fixando uma ideia que marcou fortemente a ideologia colonial e se mantém ainda activa na panóplia dos preconceitos ocidentais. Este preconceito que permite ver num africano negro um escravo deve ser desconstruído, pois é absurdo e historicamente errado. A minha preocupação é: construir um Museu da Escravatura não poderá contribuir para perpetuar o preconceito que permite olhar todos os africanos como escravos? Não seria mais correcto, historicamente rigoroso e culturalmente abrangente e informativo, criar um Museu de África onde as singularidades civilizacionais africanas e as realidades históricas africanas pudessem exprimir-se na sua plenitude e diversidade?

Nas diversas cadeiras que leccionei, as formas e técnicas de escravização dos africanos, os escravos e o tráfico negreiro faziam parte do programa, mas não constituíam nas cadeiras gerais tema único, nem central, porque se tratava de estudar a história de África. Embora tenha leccionado na década de 1990 um seminário de mestrado consagrado exclusivamente a essa temática. Trabalhei sobre a escravatura africana praticada pelos europeus no início dos anos 1970, porque a minha tese de mestrado tinha essencialmente duas vertentes. A vertente da circulação das plantas, e nessa circulação das plantas e nessa distribuição e integração de plantas novas em África vinha a cana-de-açúcar, e a cana-de-açúcar levou-me para São Tomé, e, por sua vez, São Tomé levou-me para a economia de plantação e obviamente a economia de plantação significava trabalho escravo. Portanto, trabalhei sobre a problemática da escravatura a partir de 1972 a propósito do caso de São Tomé quinhentista, pondo precisamente em causa as teorias defendidas na época segundo as quais não se tratava de escravatura, mas sim de servidão, como afirmava desde os anos 60 o geógrafo santomense Francisco Tenreiro, investigador e poeta de grande talento, mas marcado pelas teses luso-tropicalistas da época. Nessa altura e até há alguns anos, a questão da escravatura era um tema tabu, fechado e silenciado. Hoje em dia está mais banalizado, no espaço público e também académico, tratado por vezes de forma leviana, superficial, sem o rigor histórico necessário, como “coisa da moda”, mas também através de estudos interessantes que se têm vindo a multiplicar.

A altura em que começa a trabalhar com a UNESCO no projecto “A Rota do Escravo” coincidiu com o apogeu da comemoração dos “descobrimentos portugueses”, com a realização da Expo’98. Como viu a imagem dos países africanos projectada na Expo 98 (nos pavilhões, por exemplo)? E como é que acha que foram articuladas no espaço público e na investigação académica estas várias narrativas sobre África? Chegou a colaborar com a Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP)?

A minha actividade intelectual na década de 1990 foi marcada por uma profusão de acontecimentos ligados à organização e participação em eventos científicos, à publicação de textos e à realização de actividades ligadas ao ensino e à cultura, quer no âmbito das minhas relações intensas com a UNESCO (Paris), mas também com instituições portuguesas que prosseguiam um apoio diversificado em relação ao estudo e ao conhecimento do mundo. Nesse período, e durante 20 longos anos, partilhei a vida com um intelectual excepcional, Alfredo Margarido, anticolonialista dos tempos duros, dotado de um conhecimento enciclopédico tout azimut, com quem aprendi uma panóplia imensa de coisas simples e complexas em muitas dimensões do saber, que me obrigaram alargar a minha concepção do trabalho criativo, intelectual e participativo. Foi neste contexto que, desde o início dos anos 90, colaborei com a CNCDP, na organização e participação de eventos científicos (seminários, conferências, colóquios nacionais e internacionais), publicações, em particular, na revista Oceanos e em outras actividades científico-culturais, como foi o caso de uma exposição sobre cidades em Moçambique, intitulada “Espaços e Cidades em Moçambique”, que elaborei em 1998, no âmbito de um projecto sobre as cidades nos vários espaços coloniais portugueses. Foi a primeira de várias exposições temáticas que organizei posteriormente, sempre numa perspectiva histórica, articulando texto e imagem, e procurando dar ao documento iconográfico a sua densidade histórica. Satisfazia-me e satisfaz-me particularmente o facto de este instrumento de conhecimento – a exposição – poder circular, ir longe, caminhar por vários territórios, chegar a públicos diversos por vezes isolados, sem acesso à história e à cultura, distantes de qualquer fonte de conhecimento.

Quanto às narrativas de África veiculadas pela Expo 98, nomeadamente através das imagens oferecidas nos seus pavilhões, pareceram-me na altura pobres, superficiais, muito frágeis do ponto de vista do conhecimento histórico que as sustentava. O conhecimento da história africana era ainda recente, tinham passado 20 anos sobre o 25 de Abril, e a historiografia portuguesa, muito marcada por uma forte ideologia colonial, tinha dificuldade em libertar-se dos mitos e das construções ideologicamente elaboradas para fazer da História a arma de legitimação do colonialismo português. Tanto mais que a gesta dos “Descobrimentos” continuava a dominar o conhecimento historiográfico nacional.

Creio, por isso, que tais narrativas não tiveram qualquer impacto significativo na produção académica ou no espaço público português, com vista a alargar a visão histórica de África.

A questão da escravatura continuou a mobilizar os meus esforços de historiadora e de membro do projecto UNESCO “A Rota do Escravo”. Organizei um colóquio em Évora sobre escravatura, que teve uma forte participação estrangeira, nomeadamente americana, porque um dos temas em debate era a influência dos escravos nas Américas, nomeadamente no Brasil, mas também na zona das Caraíbas. Uma das reuniões do Comité Científico Internacional da UNESCO em Portugal, associada a um seminário internacional, na Torre do Tombo, também deu origem a um livro1 sobre ideologia, religião, direito e escravatura, que organizei juntamente com Louis Sala-Molins, filósofo francês que consagrou um longo e árduo trabalho à escravatura na perspectiva da filosofia e das teorias filosóficas.

Não houve vontade de transformar esse trabalho, de o levar para o espaço público? Não era possível ou não era esse o objetivo?

 Sim, claro que um dos objectivos centrais do Comité Português da “Rota do Escravo” era alargar o conhecimento da questão esclavagista, desenvolvendo acções nas escolas, nos centros culturais, em diversos espaços públicos, articulando formas pedagógicas e lúdicas capazes de suscitar o interesse das pessoas. Mas não era um tema politicamente correcto. Não convinha tratar esse tema e, portanto, tivemos sempre algumas dificuldades, muitas de natureza financeira, embora tenhamos contado, nesta época, com o apoio empenhado da Comissão Nacional da UNESCO. Aliás, quase todos os presidentes da UNESCO foram sempre pessoas particularmente sensíveis a esta questão, nomeadamen- te o escritor Eugénio Lisboa e, mais tarde, o embaixador Fernando Andresen Guimarães, bem como a secretária-executiva Manuela Galhardo e a sempre empenhada Dra. Anna-Paula Ormèche, que apoiaram activamente os trabalhos – colóquios, publicações, exposições – levados a cabo pelo Comité Português do Projecto UNESCO “A Rota do Escravo”. Depois, mais tarde, nos anos 2014/2015, não posso precisar, a Comissão Nacional da UNESCO passou a ser dirigida directamente, a nível de presidência, pelo próprio Ministério dos Negócios Estrangei-ros, e tinha apenas uma secretária-executiva. Precisando de um apoio para uma das actividades do Comité, procurei falar com ela e percebi que o tema a incomodava: “Isso é um tema um pouco difícil, sobre o qual nós não podemos falar muito”, disse ela, que naturalmente não deu qualquer seguimento ao meu pedido. Aliás essas manifestações de incomodidade perante o tema da escravatura repetiam-se, centradas em personagens portuguesas, em encontros internacionais, organizados pela UNESCO, em que a questão da escravização secular dos africanos era o tema central do encontro. Hoje acho que seria diferente porque o assunto entrou no espaço público.

Quando é que acha que se deu o momento de viragem da visão sobre a escravatura no espaço público em Portugal? E o que é que explica essa mudança?

Acho que a mudança se deu em 2011/2012. Um pouco antes disso, escrevi um livro, encomendado pelos CTT (Correios de Portugal), intitulado A Herança Africana em Portugal2 (2009). Até então o meu foco tinha sido sobretudo África, mas com esse pedido desviei o meu olhar das questões africanas para Portugal, para estudar o tema dos africanos instalados no país numa perspectiva histórica de longa duração. O projecto dos CTT, organizado em torno da problemática das diferentes heranças culturais em Portugal, interessou-me muito, até porque, do ponto de vista demográfico e do ponto de vista temporal, a herança africana foi aquela que teve um ‘peso’ mais forte em Portugal, mais longo e constante, mesmo sendo o menos visível, em termos de grandes produções, construções e marcadores culturais conhecidos e estudados.

No seu livro A Herança Africana em Portugal, a relação com a imagem e a cultura material é exemplar. Foi responsável pela pesquisa iconográfica? As legendas não são identificativas, as legendas são em si discurso historiográfico. A História de África foi desenvolvida pelo recurso ao estudo da cultura material e visual, processo no qual a Arqueologia, a Antropologia e a História da Arte foram essenciais. Como vê estas abordagens e usos metodológicos, sobretudo na sua relação com metodologias mais centradas na cultura escrita?

Desde que estudei em Paris, a imagem, o documento iconográfico, surgiram sempre como um documento histórico, uma fonte, e não como uma ilustração de um qualquer texto ou de uma qualquer situação histórica. As diversas disciplinas que fiz na área da História da Arte e da Arqueologia permitiam-me aprender a olhar e a trabalhar os documentos desta natureza. Lembro-me que o primeiro trabalho que fiz para a universidade francesa, em 1970, foi para a cadeira de História da Rússia, em que escolhi fazer um estudo de História Urbana sobre a cidade de Moscovo. Foi completamente inovador em relação àquilo que eu tinha aprendido na Faculdade de Letras. Tive muita dificuldade, nunca tinha aprendido. Lembro-me que os meus colegas franceses começavam a preparar os seus exposés uma semana antes da apresentação, e eu andei uns dois meses a estudar para poder fazer uma coisa bem estruturada. E trabalhei sobre imagens da cidade e sobre cartografia da cidade nos séculos XVII e XVIII. E continuei a seguir sempre este método de trabalho nos vários estudos que fiz na universidade francesa, também porque aprendi com os muitos professores/historiadores que tive, discípulos da Escola francesa dos Annales que acreditavam, como dizia Lucien Febvre, que tudo aquilo que o homem toca, diz e fabrica dá informações sobre si próprio e fornece documentos que nos permitem a nós, historiadores, analisar as situações e fazer história.

O livro A Herança Africana em Portugal tem, efectivamente, essa preocupação. O livro saiu no princípio de 2009 e foi muito falado na altura. No lançamento, na Feira do Livro, apareceram muitos africanos pedindo o livro, mas o livro era caro e eu não podia oferecer nenhum. A situação marcou-me: queria chegar realmente às pessoas. Por isso decidi organizar a exposição a partir da minha investigação e do livro, publicando também um catálogo acessível, intitulado Os Africanos em Portugal: História e Memória. A exposição foi feita num suporte de cerca de vinte roll-ups de dois metros de altura por um metro de largura, muito fáceis de montar. A exposição ficou pronta em 2011 e continua a circular – vai a escolas, a liceus, a universidades, a arquivos, às freguesias, aos centros culturais, sempre acompanhada dos catálogos. Já foi a Angola, a São Tomé, a Cabo Verde, a Paris, a Espanha, ao Brasil. Entretanto, comecei a ser contactada por outro tipo de pessoas, por exemplo do sector do turismo cultural, mas também por associações africanas, como a Associação de Cabo Verde, que queriam mostrar a exposição. E também fui contactada, por exemplo, pela Associação Batoto Yetu Portugal, e por outras entidades que em 2016 começaram a organizar visitas guiadas aos lugares de memória dos africanos na cidade de Lisboa, nas quais eu também às vezes participo, como uma espécie de guia turística! Julgo que estas iniciativas despertaram depois o interesse das Juntas de Freguesia e da própria Câmara Municipal de Lisboa, que começou a organizar outras acções similares.

Há também um movimento internacional de divulgação da memória da escravatura e do tráfico de escravos, nomeadamente na Europa, para o qual em muito contribuiu o projeto “A Rota do Escravo”. O projecto teve, de resto, um alcance global e desenvolveu nomeadamente uma acção pedagógica muito importante junto das escolas. Eu própria fui a escolas do ensino secundário falar aos alunos, por exemplo, ao liceu de Lagos, explicar a exposição e a questão da presença dos africanos em Portugal. E os miúdos, entre os 13 e os 17 anos, ouviram com interesse e colocaram perguntas.

Não era possível em 1998, mas 20 anos depois foi.

Foi possível até um pouco antes. Fui a Lagos há mais tempo, em 2009/2010 por causa da descoberta de um ‘cemitério’ de escravos africanos (155 esqueletos de homens, mulheres e crianças, a maioria do século XV-XVI, encontrados num local que serviu de lixeira urbana durante séculos) na cidade algarvia e nessa altura a exposição esteve lá. Hoje existe em Lagos um Museu da Escravatura. Também levei lá outra exposição que organizei para a UNESCO (Paris) sobre os lugares de memória da escravatura e do tráfico de escravos nos países africanos de língua portuguesa. Essa exposição foi o resultado de um trabalho internacional, levado a cabo por um grupo de investigadores que organizei, com elementos – historiadores – dos vários países africanos de língua portuguesa: uma angolana, uma moçambicana, um guineense, um cabo-verdiano e um santomense. Fizemos um trabalho de pesquisa intensa nos cinco países entre 1998 e 2000, com resultados muito interessantes, reveladores das diferentes sensibilidades nacionais – e diversas dentro de cada nação – perante esta problemática e dando conta de formas de silenciamento da escravatura e do tráfico de escravos em África, sobretudo em Moçambique e na Guiné, contrariamente, por exemplo, a Angola, onde o tema era já objecto de debate. Os países mudaram, e hoje os estudos africanos sobre esta matéria são já mais numerosos. Na Guiné, por exemplo, foi organizado e inaugurado em Cacheu, em 2016, um museu da escravatura, intitulado Memorial da Escravatura e do Tráfico de Escravos, de que fui consultora científica.

Na sua opinião, o que é que justifica que a escravatura tenha sido tratada de forma diferente nestes vários países?

Cheguei apenas a uma conclusão provisória e sumária, pois a questão exige uma investigação mais profunda que, creio, está por fazer. Parece-me que o Islão pode ter alguma relevância nesta questão. Estamos em Moçambique e estamos na Guiné, portanto dois países fortemente islamizados. O Islão em Moçambique continuou até ao século XX a desenvolver o tráfico de escravos. Não, não se pode dizer que foi o Islão, mas alguns Árabes, embora o Islão aceitasse e não condenasse com determinação. Nós sabemos que uma parte importante da escravatura contemporânea se desenrola no quadro de correntes relacionadas com uma parte do mundo árabe. No Arquivo Histórico de Moçambique existem fotografias do século XX de escravos acorrentados em caravanas no interior de África a caminho da costa oriental africana para serem exportados pelos navios árabes, no âmbito de um comércio negreiro do Índico com quase dez séculos de existência. Sublinhe-se que a actualidade da problemática foi também uma das questões que marcaram de forma significativa o Projecto UNESCO “A Rota do Escravo”. Diria que a escravatura se foi recompondo e reorganizando, metamorfoseando, num processo interno de transformação de dentro para fora, criando-se novas formas de escravatura. Mesmo quando foi abolida a escravatura em finais do século XIX, em África, pudemos assistir à emergência de formas novas de violência no âmbito do sistema colonial, do trabalho forçado, que foram certamente formas novas de escravatura.

Historiografias de África

As histórias imperiais dos países europeus foram-se transformando também nos últimos vinte anos, nomeadamente na relação com a historiografia emanada da UNESCO – A Rota do Escravo e a História Geral de África, por exemplo. Como vê a relação da historiografia mais directamente promovida pela UNESCO e as historiografias desenvolvidas dentro de um enquadramento nacional europeu, nomea- damente pelos antigos países imperiais como Portugal?

Em primeiro lugar, a História de África da UNESCO, começou por ser elaborada na década de 60, e a verdade é que, apesar da participação de historiadores e pensadores africanos como Cheick Anta Diop, reclamando-se da corrente historiográfica pan-africanista que emergiu na América a partir de meados do século XX, ficou marcada pelos conhecimentos existentes e organizados no quadro das historiografias coloniais, procurando embora, desde essa altura, ultrapassar perspectivas eurocêntricas, recorrendo igualmente aos avanços verificados nas décadas de 50-60 no domínio das ciências sociais e da interdisciplinaridade entre diferentes matérias, em que se incluía a história. Se muitos foram os intelectuais europeus que quiserem proceder a uma revisão da história de África, desmontando ideologias e mitologias do passado que organizavam as historiografias europeias, a emergência de escolas historiográficas africanas particularmente importantes formou jovens historiadores, multiplicou a elite intelectual africana e deu voz nos seus escritos aos actores históricos fundamentais que eram, naturalmente, os africanos. A verdade é que nos vinte anos que decorreram entre os anos 1960 e os anos 1980 se verificou uma importante evolução na produção historiográfica e durante os anos 80-90 procurou-se sistematicamente libertar a história africana das marcas coloniais, descolonizar a escrita europeia da história africana, procurar outros caminhos para as historiografias africanas, multiplicando temáticas históricas muito ligadas aos problemas com os quais as sociedades africanas se confrontam na actualidade. Outros caminhos centrados precisamente na África e nas sociedades africanas contemporâneas. Nos anos 90, praticamente na viragem do século, assistimos a um momento importante de mudança da historiografia mundial, e também da historiografia africana contemporânea cada vez mais internacionalizada, com a multiplicação de redes de investigação, de projectos de pesquisa, de organização conjunta de eventos científicos à escala mundial. Os historiadores africanos estão hoje plenamente integrados nas dinâmicas historiográficas mundiais.

No caso da historiografia portuguesa e da sua relação com África, a situação de mudança tem sido lenta e poucos são os historiadores que trabalham a história de África, quer numa perspectiva endógena, privilegiando as dinâmicas internas, quer numa linha efectivamente liberta da dominância da história dos “descobrimentos” e da expansão portuguesa. Até 1974, a historiografia portuguesa passou ao lado da evolução da historiografia europeia centrada no estudo dos Outros, a situação colonial impedindo a eliminação dos “óculos do colonialismo” e uma visão do mundo liberta da valorização exclusiva dos heróis e das práticas coloniais. Esta situação colonial impôs na sociedade portuguesa a consolidação de uma poderosa ideologia colonial, que fixou, através da escola, do ensino, da formação, um quadro de desvalorização sistemática dos africanos, reforçado pela guerra colonial. Multiplicaram-se contos, histórias, anedotas, bandas desenhadas, imagens que davam conta da selvajaria do preto, da maldade do preto, da antropofagia do preto, da preguiça do preto, do preto ladrão e do preto bêbedo. Muitas histórias para crianças e para jovens mostravam a natureza negativa e desqualificada do africano. A maioria da população portuguesa, que andava na escola nas décadas de 1940, 50, 60, aprendeu esta realidade, complementada com o heroísmo dos portugueses na sua tarefa de descobrir e civilizar o mundo. Foi, pois, um trabalho ideológico muito insistente, muito rigoroso, muito forte, muito marcante do imaginário português e muito formatador das consciências dos homens e mulheres portugueses, desde crianças até adultos, dispondo de uma frágil escolarização. Quando chegou o 25 de Abril, em 1974, assim se pensava a África e os africanos.

A História da Expansão, nas suas várias designações, também conheceu uma certa renovação interna.

Exactamente. Penso que é evidente que a partir do 25 de Abril, sobretudo nos anos 80 e 90, vai havendo cada vez mais uma trans- formação da própria historiografia portuguesa, com o contributo de jovens historiadores, de intelectuais exilados que regressam ao país, com uma vontade de caminhar rapidamente na abertura de caminhos novos para alargar o conhecimento. Isso é verdade. É impossível não o dizer. Essa historiografia renovou-se. A renovação mais lenta, mais demorada, centrou-se numa historiografia portuguesa preocupada em valorizar os Outros, preocupada em organizar-se em torno dos Outros, em falar dos Outros, dando-lhes voz e ouvindo-os, não como apêndices da História de Portugal, mas essencialmente como figuras centrais, agentes principais de uma história autónoma, liberta precisamente da visão do passado.

A História de África, tal como a pratica, tem devolvido centralidade histórica às sociedades africanas na sua complexidade. No entanto, esta perspectiva tem sido mobilizada, por vezes, em favor da ideia de um protonacionalismo dos jovens Estados africanos, saídos dos processos de independência. Como vê a relação entre a História de África, praticada na perspectiva dos africanos, e o processo de afirmação nacional dos Estados africanos? Como é que o afrocentrismo praticado na História de África contribuiu para a afirmação e legitimação dos Estados nacionais africanos?

Do ponto de vista da historiografia africana, assistimos a partir dos anos 1960-70 à emergência de correntes historiográficas afrocêntricas, com várias tendências, algumas das quais podemos designar de nacionalistas, procurando valorizar os africanos sem olhar crítico, centrando a história sempre nos feitos e nos heróis africanos, ignorando ou desvalorizando as relações com os “outros”, com os europeus em particular, e o impacto dessas relações nas sociedades africanas. Essa historiografia afrocentrada, como dizia um historiador belga de História de África, é uma historiografia eurocêntrica de “pernas para o ar”, que segue o mesmo percurso redutor da historiografia colonial, utiliza as mesmas metodologias, os mesmos conceitos e as mesmas categorias de análise, invertendo simplesmente as posições dos agentes da história. Se esta perspectiva historiográfica mobilizou sobretudo jovens historiadores do período pós-independências africanas, permitindo dar força à consolidação de uma consciência nacional então necessária e afirmar e legitimar os novos Estados, os seus trabalhos, centrando-se de uma forma mecânica na denúncia do colonialismo e nas resistências africanas ao poder colonial, foram ultrapassados pelas gerações seguintes, que têm vindo a organizar a história sobretudo para estudar e compreender os mecanismos históricos geradores das situações vividas hoje na África contemporânea. Esta historiografia mais redutora do conhecimento histórico africano não se generalizou no continente, nem o seu impacto foi decisivo na escrita da história. Podemos ver hoje, no volume IX da História Geral da África da UNESCO (no prelo), em que participam muitos historiadores africanos, qual o tipo de trabalho historiográfico que elaboram, marcado pelos avanços da historiografia mundial contemporânea, as perspectivas que adoptam, as preocupações teóricas e metodológicas, as temáticas privilegiadas, as heranças historiográficas que concentram, por vezes, um pan-africanismo fundador da historiografia africana renovado: os seus estudos revelam uma consciência historiográfica aguda e uma vontade de esclarecer os percursos de uma história africana complexa, incluindo os espaços do mundo onde as diásporas africanas se concentram e as contribuições africanas para o conhecimento global são visíveis.

Também é importante ter em linha de conta a noção de pós-colonialismo e o modo como se olha a África nesse quadro teórico. Sabemos que as teorias fundadoras do pós-colonialismo têm as suas raízes em França e nos Estados Unidos, abrangem o estudo global da história dos muitos colonizados do século XX, reclamando-se de uma historiografia destinada a desmontar e a esclarecer a história colonial, numa perspectiva pós-colonial. Não estaremos aqui perante uma recuperação do conceito de colonial, como se africanos ou asiáticos, das várias origens, das várias nações, imaginemos nigerianos, tanzanianos, senegaleses, indianos, indonésios, não pudessem ter uma história autónoma para lá de uma história colonial? Ou dito de outra maneira: reforçar a existência de uma história colonial, que é essencialmente uma preocupação das historiografias e do pensamento ocidentais e não africanos, não será uma forma de reduzir a história dos Outros à relação com os europeus?

Não podemos ver nesta noção de pós-colonialismo a exaltação do colonialismo que forneceu a força para impor às sociedades africanas um perfil de sociedades dominadas, esquecendo que as independências derivam de um movimento destinado a recuperar as formas perdidas de autonomia? Não se tratará de uma ratoeira ideológica que recompõe os marcadores da desigualdade civilizacional e que garante, na sua dimensão-mundo, a consolidação das hierarquias da globalização, a emergência contínua de novas formas de hegemonia? A ineficácia do pós é evidente: não se dissolve o mundo no pós, pois todo ele responde às condições do ante.

A história dos muitos Outros é uma história autónoma, longa no tempo, muito para além da história colonial e dos períodos do colonialismo, que permite compreender todo o seu percurso e todo o seu passado histórico. Já em meados do século XIX, uma das figuras fundadoras da historiografia africana panafricanista e do pensamento africano anticolonial, o afro-antilhês, depois liberiano, Edward Blyden, afirmava que na muito longa história multimilenar africana, a colonização e a dominação colonial europeias, corolário lógico e previsível da escravatura e do tráfico negreiro, não representavam mais do que um momento a ser rapidamente ultrapassado.

Aqui há uns anos tive acesso à gravação de uma entrevista dada pelo Rei Ekuikui II do Bailundo (Angola) a dois jornalistas angolanos, exercendo assim uma das suas funções reais: organizar o discurso histórico e fixar e guardar a história do seu povo. Durante toda a entrevista, que é mais um monólogo da palavra ritualizada do rei, sem intervenções, nem perguntas, nem comentários dos jornalistas, que respeitosamente ouvem e gravam o discurso real, marcado por actos simbólicos que manipulam em particular objectos da natureza, Ekuikui II fala da história do Reino do Bailundo. O seu discurso recupera factos históricos, por um lado, oriundos da tradição oral do grupo, por outro lado, baseados no conhecimento do discurso historiográfico da região, permitindo-lhe traçar, sem cronologia, a evolução histórica do reino, sobretudo facilmente compreensível para os ouvintes atentos e conhecedores da história local. Durante as várias horas da entrevista, os portugueses foram apenas rapidamente solicitados duas vezes no discurso do rei: a primeira alusão surge para referir a introdução de missionários americanos na região, levada a cabo pelos portugueses; a segunda é a que se refere ao suicídio do comerciante português Silva Porto, que teve lugar no Bailundo em finais do século XIX. Porque a História do Bailundo não é a história dos portugueses. A História do Bailundo é a história daquelas populações que migraram, que se estabeleceram, que fundaram e organizaram um reino que sofreu transformações económicas, políticas, religiosas num longo período da história até à actualidade, englobando naturalmente o curto período da colonização portuguesa do século XX, que transparece no discurso a partir de factos históricos que sabemos que tiveram lugar na época da dominação colonial. Por exemplo, a requisição de trabalhadores da região para as plantações de café do norte de Angola é apresentada como migrações africanas e não como um facto organizado pelo poder colonial português. Mas é uma história consistente, é um longo relato extramente interessante. Fala das dinâmicas económicas, das mudanças sociais, da organização da sociedade, das diferentes movimentações políticas, de como os reinos se organizaram ao longo da história. A marcação do tempo não é uma marcação datada, como acontece na maioria dos estudos dependentes da tradição oral. É marcada por fenómenos, por eventos, por acontecimentos de natureza diversa, que implicam um conhecimento prévio do período histórico e da história regional.

A musealização da história de África em Portugal

A História de África tem atendido à complexidade das sociedades africanas, da organização social às trocas comerciais. Essa atenção às dinâmicas históricas e internas do continente africano foi também o aspecto que resolveu destacar na exposição “Contar Áfricas!”3, com a escolha de uma estatueta usada no comércio intra-africano. Esta exposição distancia-se das narrativas mais comuns das grandes exposições. Teve oportunidade de ver a exposição e analisar de perto as outras peças escolhidas?

Vi a exposição. Constatei que algumas peças são objetos efectivamente africanos, como a estatueta que eu escolhi, que permitem contar as realidades internas africanas. A estatueta de madeira oitocentista que propus representava um comerciante songo (Angola) montado num boi-cavalo, e tinha como objectivo pôr em evidência a secular importância da actividade comercial nas economias e nas sociedades africanas, implicando modos de organização e de gestão muito estruturados e ritualizados que revelavam a racionalidade económica africana. A presença de pássaros esculpidos, símbolos dos espíritos e da fertilidade reprodutiva necessária aos bons negócios, integrando a pequena escultura, regista a dimensão religiosa, sagrada, ritual que marca a esfera comercial, como marca toda a vida social africana.

Mas a exposição apresentava outro tipo de objectos, fruto das relações dos africanos com o exterior. Por exemplo, um objeto de certa forma pomposo, um casaco de homem feito em tecido de fibra vegetal. Oriundo de Cabo Verde, utilizando matéria-prima e técnica africanas, era a cópia de um modelo europeu. Portanto, é diferente do objecto intrinsecamente africano. Digamos que os africanos não o fabricaram para uso próprio, é certamente uma encomenda. Tal como a caixa de hóstias e os marfins, que são igualmente encomendas portuguesas. Os africanos não trabalhavam o marfim daquela maneira. Consoante as regiões, o marfim tinha várias funções sociais, era utilizado pelas populações, fabricavam olifantes, comerciavam as presas de elefante ou guardavam-nas como objectos raros assegurando o prestígio e o poder dos chefes. O marfim não era, de uma forma geral, uma matéria para esculpir objectos destinados a desempenhar uma função ritual/sagrada, como as estatuetas, as esculturas, os cachimbos, fabricados com outras matérias-primas. Mas sublinhe-se a capacidade técnica dos africanos na resposta hábil às encomendas do exterior: o objecto encomendado também se torna um objecto africano, servindo em particular para assegurar as relações comerciais e sociais com os europeus.

Cada investigador teve essa liberdade de escolher “Contar África” a partir de peças africanas ou encomendadas noutros países.

Completamente. Seria interessante ter nesta exposição um texto escrito pelos africanos, em língua africana e em suporte de folha de bananeira. Há documentos angolanos em particular que são escritos por africanos em folha de bananeira ou em folha de papel, numa língua local, mas também às vezes em língua portuguesa. Porque desde o século XVII foram muitos os africanos que aprenderam com os missionários a ler e escrever português, os ambaquistas de Angola, por exemplo.

Num registo das interpenetrações entre as várias sociedades em presença em territórios africanos, parece-nos particularmente sugestiva a escolha, para abertura da exposição, de um documento oficial, escrito em português, mas com funções de comunicação entre dois reinos africanos. O documento foi escolhido por Ricardo Roque4 e julgamos que visa destacar o facto de a própria carta não ter apenas uma função informativa burocrática, entre um e outro reino, mas ter também uma função de feitiço – ou seja, a carta tinha poderes mágicos. E assim são-nos sugeridas outras funções de uma carta oficial, mesmo quando é portadora da palavra burocrática de uma sociedade organizada, num determinado contexto cultural.

Exactamente. Acho que foi uma boa ideia do Comissário da Exposição, António Camões Gouveia. De uma forma geral, os objectos escolhidos ‘contam’ a África, ‘falam’ das realidades históricas africanas, quer sejam marcados pelas matrizes culturais seculares africanas, quer resultem da africanização de propostas ou encomendas exteriores, mas nem sempre os textos e as interpretações apresentados são suficientes e reveladores da pertinência cultural e das muitas dinâmicas veiculadas pelos objectos. Penso que falta nesta exposição talvez um catálogo consistente capaz de colmatar as lacunas do conhecimento patentes nas fichas e nas brochuras publicadas. Também não é claro para um turista que visite a exposição a importância do facto de esta se realizar no Padrão dos Descobrimentos: teria sido interessante enquadrar também a exposição nessa perspectiva.

Imaginamos que tenha uma visão muito própria sobre o Museu dos Descobrimentos ou Museu da Descoberta. Tem acompanhado o debate?

Assinei a carta aberta que me chegou da Ângela Barreto Xavier e da Filipa Lowndes Vicente, publicada no Expresso. É uma polémica que me causa algum desconforto, porque se assistiu a posições muito ideologi- zadas, mas também supérfluas e pouco consistentes do ponto de vista reflexivo, a muitas opiniões repletas de certezas, quando, para mim, a questão é complexa, difícil de resolver, suscitando-me muitas interrogações, muitas dúvidas.

A questão da expansão portuguesa no mundo durante vários séculos é certamente uma das questões históricas centrais da História de Portugal: porque não organizar então um museu relacionado com a expansão portuguesa, que abordasse esse fenómeno histórico e as diferentes vertentes que o marcaram? Como designá-lo, é questão que exige reflexão. Eu diria que um Museu dos Descobrimentos – período que engloba os séculos XV e XVI – é redutor do ponto de vista da longa duração e da complexidade da expansão, e consequentemente da história portuguesa. Além disso, recupera o conceito de Descobrimentos sobre o qual importa reflectir. Para além de veicular a ideia falsa do descobrimento de espaços novos do mundo que seriam desconhecidos, quando não o eram, em primeiro lugar, para as populações que os habitavam e que dispunham de uma história e de culturas plurisseculares – mesmo se recusadas pelos portugueses da época –, e em segundo lugar, para as muitas relações intercivilizações já existentes, é também um conceito que adquiriu uma força historiográfica e uma utilização ideológica de legitimação das politicas portuguesas ultramarinas no último quartel de Oitocentos, e que veio a reforçar-se durante o período colonial, contribuindo para a consolidação de uma ideologia colonial de violência e de desvalorização dos Outros. Nesta visão valorizam-se os heróis portugueses, os projectos e as acções do Estado colonial nos espaços colonizados, procedendo-se, no mesmo movimento, à desclassificação e inferiorização das populações dominadas. É, pois, um conceito que assenta nas ideias de supremacia e hegemonia portuguesas nas relações com os Outros, e na recusa do reconhecimento das suas histórias, das suas identidades e das suas dinâmicas civilizacionais.

Depois, o recurso à noção de “descobertas” aparece como uma frivolidade que recupera a terminologia francesa (découvertes) ou inglesa (discoveries), para não enfrentar a carga ideológica do conceito de descobrimentos.

Uma primeira questão é saber se efectivamente é urgente, se é necessário e se se justifica no quadro cultural português de hoje, construir um museu consagrado à expansão portuguesa. Um museu que mostre os percursos e os particularismos culturais, sociais, económicos, religiosos, científicos e técnicos desse fenómeno histórico que marcou a vida dos portugueses ao longo de muitos séculos, pondo em evidência a totalidade do processo expansionista, com os seus aspectos positivos – desenvolvimento tecnológico, conhecimento científico, novos saberes nas áreas da botânica, da zoologia, da geografia, dos mares e dos rios, da navegação e muito mais – e também negativos – a escravização das populações africanas, o tráfico negreiro, a escravatura, a exploração dos ecossistemas, das naturezas, das riquezas, as relações desiguais, as formas de destruição cultural e física dos Outros. Uma profusão de questões que decorrem de séculos de viagens, de explorações, de contactos e de relações entre povos e culturas do mundo.

Uma segunda questão, de natureza prática e que já foi colocada, tem que ver com os conteúdos museológicos de um tal museu: onde estão as colecções destinadas a preencher uma tal instituição museológica? O que expor? Porque a verdade é que todos os objetos que poderiam ser utilizados, que responderiam a essas necessidades museológicas – pinturas, esculturas, objectos diversos, mapas, documentos, etc. – estão espalhados por uma série de museus e de arquivos portugueses, integrando as respectivas colecções. Seriam esvaziadas? As pinturas que estão, por exemplo, no Museu de Arte Antiga, que se referem a esta temática, passariam para o novo museu?

Não é naturalmente possível trabalhar a questão da expansão sem falar dessa vertente comercial singular que foi o tráfico negreiro organizado no continente africano para satisfazer as necessidades de mão-de-obra escravizada nas Américas e depois o desenvolvimento do sistema esclavagista, nomeadamente no Brasil.

Tem sido sugerido que seria criada, no interior desse Museu das Descobertas, uma secção sobre o tráfico de escravos e a escravatura, factos históricos que atingiram a sua plenitude dramática nos séculos XVII e XVIII. Pelo que sendo um museu centrado nos descobrimentos portugueses, a questão não seria talvez irrelevante, mas muito aquém da sua dimensão real. Por outro lado, o fenómeno histórico da escravatura atlântica teve um impacto mundial de uma imensa amplitude, que não pode reduzir-se a um aspecto da expansão portuguesa ou europeia: a criação das novas sociedades americanas, a organização cultural, nacional, identitária de novos espaços do mundo, o alargamento, o conhecimento e os sincretismos culturais e religiosos, a construção do capitalismo europeu, a destruição de sistemas sociais e culturais africanos, a dimensão geográfica e temporal plurissecular do fenómeno, os sistemas modernos de exploração das humanidades que emergiram… O fenómeno esclavagista foi-se transformando e adquiriu novas formas no quadro actual da globalização.

Por todas estas razões, surgiu ainda a proposta de um Memorial em Lisboa, para homenagear e lembrar as populações escravizadas, mas também se formou a ideia de organizar na capital um Museu da Escravatura, à semelhança daquele que foi inaugurado em Lagos em 2016, na sequência das descobertas arqueológicas de mais de 150 esqueletos de homens, mulheres e crianças africanos datados dos séculos XV a XVII, que tiveram lugar nessa cidade algarvia, em 2009. É uma ideia que considero pertinente dentro desta lógica de compreender a escravatura como um fenómeno mundial, no tempo e no espaço. Mas é também um museu ‘redutor’, se quisermos sobretudo pôr em evi- dência, valorizar e desmontar o silenciamento que houve em torno das sociedades de África. Não vou retomar os argumentos que já apresentei nesta entrevista, mas relembro o que disse: a instituição museológica a criar para mostrar historicamente e culturalmente a África de forma rigorosa, abrangente e informativa, seria provavelmente um Museu de África, onde as singularidades civilizacionais e as realidades históricas africanas pudessem exprimir-se na sua plenitude e diversidade. Temos em Lisboa um Museu do Oriente, teria sentido histórico um Museu de África, continente com o qual as relações de Portugal foram as mais intensas, continuadas, seculares e continuam privilegiadas, para além das muitas comunidades africanas que viveram e deixaram marcas no passado e permanecem hoje no país.

Para terminar, e porque temos estado a falar de cultura material e de museus, qual é a sua opinião acerca do debate que tem havido em França e na Alemanha em relação à restituição dos objectos e obras de arte trazidos das ex-colónias? Pode ser um assunto que venha a surgir em Portugal?

É uma questão difícil de abordar. Muitos objetos são africanos ou indianos ou indonésios. Alguns, possivelmente muitos, foram pilhados, outros foram recolhidos, outros foram oferecidos, outros ainda foram comprados. Estes objetos têm origens diferentes, que é preciso estudar, analisar, perceber caso a caso antes de definir o que fazer. É preciso pelo menos perceber essas múltiplas origens. O comerciante e explorador português Silva Porto, que viveu várias décadas na Angola do século XIX, e que deixou uma documentação escrita muito importante para o conhecimento da história dessa região africana, conta, num dos seus relatos que, um dia, um quioco lhe bateu à porta para lhe vender uns ‘bonecos’, como eram designadas as estatuetas africanas nesses textos da época. Silva Porto comprou os ‘bonecos’, objectos então muito solicitados na Europa do final de Oitocentos, à procura do exótico e das colecções dos povos ‘primitivos’. Refira-se que os quiocos eram hábeis escultores, as suas estatuetas sendo utilizadas ritualmente por eles e por outras populações angolanas como os lundas. A natureza simbólica ligada ao culto dos antepassados exigia manipulações específicas destes objectos para os sacralizar. Tal situação impedia a sua comercialização, o que nos leva a admitir que os objectos propostos a Silva Porto não tinham passado pelos rituais de sacralização. Para compreender esta situação, podemos pensar que ela se integra na vivência e nos interesses dos quiocos, na segunda metade do século XIX, em desenvolver as práticas comerciais com os europeus, multiplicar os negócios, integrar e usar objectos e técnicas europeias capazes de lhes permitir a modernização das suas estruturas tradicionais. Será que estas estatuetas foram trazidas para Portugal integrando o espólio de Porto e encontrando-se provavelmente numa das instituições que o conservam, como a Sociedade de Geografia de Lisboa, por exemplo?

Mas estes objectos africanos ou de outra origem que existem en- tre nós podem ser de natureza diferente, móveis e imóveis, objectos de laboração e trabalho das populações locais ou encomendas, ou ainda produzidos de outras formas. A questão também se pode colocar a respeito de bens imóveis, como construções, por exemplo. Temos em Portugal construções que marcam a nossa história, mas foram obras de Outros que por cá passaram, se fixaram, produziram. O Templo de Diana deverá ser entregue a Roma? E o Castelo dos Mouros, em Sintra… entregue aos Árabes? Parece absurdo… mas a questão pode, nesta lógica de restituição de objectos, não ser irrelevante.

O que nos leva à questão do património português no mundo, questão que tem sido objecto de estudos, de publicações, de reflexões. Se pensarmos que os castelos mouros integram o património português, por que razão a fortaleza de São Jorge da Mina, no Gana, não é património ganês, sendo reclamado pelos portugueses, não pelos ganeses, como património português? Quais os critérios que definem a pertença patrimonial? O projecto, o modelo, o sistema de produção e de trabalho, os materiais e as técnicas utilizadas, os trabalhadores, o uso e a utilização através da história? Certamente uma vasta panóplia de critérios, que devem, no entanto, ser igualmente respeitados para definir uma qualquer construção, seja ela na Europa ou em qualquer outra região do mundo.

A própria questão de atribuir nacionalidade ao património, seja ele português ou ganês, dificilmente nos permite sair do enquadramento nacional de uma história que estuda territórios antes de se afirmarem como nações ou Estados.

A maioria destas construções é ‘mestiça’, fruto do cruzamento e da intervenção de várias humanidades, de vários sistemas, de várias técnicas. Mas a sua localização num território específico tem um sentido histórico nacional, agindo na vida das populações, o que remete, naturalmente, estas construções para o património dos espaços nacionais onde estão inscritas. Mesmo que as nações que hoje existem e as integram sejam recentes, existiam já as suas matrizes históricas e culturais, que naturalmente foram evoluindo e se fixando ao longo dos séculos, marcadas pelas diferentes conjunturas que se foram sucedendo no tempo.

Consegue fazer um balanço da influência científica da História de África nos espaços de língua portuguesa que estudou? A História de África está finalmente descolonizada?

Creio que a vossa questão aborda dois problemas diferentes, que se podem cruzar, mas que exigem reflexões autónomas. O primeiro problema remete para a situação actual do conhecimento, da produção científica e cultural, mas também do ensino e da formação nos espaços de língua portuguesa, o que envolve uma multiplicidade de questões, mesmo se as reduzirmos a um único país. Eu não estudei especificamente espaços de língua portuguesa, o que eventualmente poderia ter acontecido se a minha perspectiva historiográfica africana se organizasse em torno de uma concepção colonial portuguesa ou então nacionalista da história. Estudei particularmente, em termos regionais, a história da África ocidental central, onde se situam as sociedades angolanas, que ao longo de séculos ocuparam territórios de fronteiras variadas, que não se limitavam ao espaço da Angola colonial, depois Angola independente, cujas fronteiras datam do século XX. Se privilegiei nas minhas investigações as realidades oitocentistas e coloniais do século XX, foi sempre numa perspectiva de longa duração, que recuava a matrizes por vezes longínquas no tempo, marcada pela vontade de compreender os fenómenos históricos que emergiram em quadros relacionais entre africanos, e também entre africanos e europeus, sobretudo portugueses, centrando a minha reflexão histórica nas dinâmicas africanas, nos movimentos sociais, económicos, políticos das ‘nações’ africanas regionais, nos seus projectos, nas suas escolhas, nas suas formas de construir e gerir a sua história que é a história de África. Uma história fixada oralmente, transmitida de geração em geração, preservada pelos mais velhos e por aqueles que tinham essa função social, também registada através da escrita de alguns africanos, uma história igualmente fixada nos relatos europeus, sobretudo a partir do século XIX, que permitiu organizar histórias escritas e construir lentamente, na articulação do escrito e do oral, uma historiografia regional, hoje designada como angolana. A historiografia angolana foi um processo complexo, marcado também por construções historiográficas muito ideologizadas no sécu- lo XX, em perspectivas antagónicas, como são as que caracterizam a historiografia colonial e a historiografia dos movimentos anticoloniais de libertação nacional. Hoje, a historiografia angolana, que conta já com uma produção e um ensino universitário de décadas, com investigadores e professores que se têm vindo a multiplicar e a actualizar no quadro de uma historiografia mundial, centra os seus trabalhos, a sua reflexão, a escolha dos métodos e categorias de análise e os seus caminhos de pesquisa nas problemáticas contemporâneas africanas e angolanas, abordadas na perspectiva histórica. As limitações que ainda permanecem e que decorrem da marca pesada das historiografias do século passado, em particular colonial e o seu oposto anticolonial, associadas às situações vividas na história recente de Angola – a guerra colonial/de libertação nacional e a guerra civil –, vão sendo ultrapassadas graças ao estudo de fontes variadas, às múltiplas contribuições nacionais e internacionais, a uma consciência histórica mais sólida que se vem afirmando à escala global.

O segundo problema da questão que me colocaram tem que ver com aquilo que chamou indirectamente “a descolonização da História de África”. A construção escrita da História de África, ou dito de outra maneira a construção da historiografia africana, foi um processo complexo muito ideologizado que se iniciou em meados do século XIX, tendo como matrizes fundadoras as correntes pan-africanistas que emergiram nos EUA e nas Antilhas, através de pensadores americanos negros que procuraram fixar, valorizar e consciencializar as massas negras americanas da existência de uma longa história de África, marcada por dinâmicas civilizacionais múltiplas. Estes intelectuais e as suas propostas teóricas e históricas vieram a desempenhar um papel relevante na emergência de uma elite intelectual africana que se afirmou no sé- culo XX. A utilização do conceito de História e a escolha da dimensão histórica africana tornaram-se categorias fundamentais na construção dos nacionalismos africanos e instrumentos de reflexão e luta contra o colonialismo europeu. Esta perspectiva historiográfica pan-africanista coincidiu no tempo com uma historiografia colonial que naturalmente, e apesar das múltiplas formas que adquiriu, se centrava na valorização dos projectos e das acções europeias em África e na sua legitimidade, e no mesmo movimento na desvalorização cultural, histórica, civilizacional dos povos africanos. A partir dos anos 1950-1960, a historiografia africana integrou novas correntes de pensamento e de construção da sua história, incluindo contribuições disciplinares oriundas sobretudo das ciências sociais e ideologias e teorias formuladas no mundo ociden- tal, que propiciaram a abertura de novos caminhos, novas temáticas, novos conceitos, novos problemas, que consolidaram a escrita contemporânea da História de África. O que pode então significar “descolonizar a História de África”, se ela resulta de um processo de construção longo, plural, complexo, internacional e interdisciplinar? A História de África não é a história colonial, embora a história colonial também tenha contribuído para a sua construção e fixação escrita. A História de África não tem que se descolonizar… A descolonização é um processo que lhe é simplesmente externo e que diz respeito às historiografias ocidentais que, essas sim, forneceram leituras históricas deformadoras da história de África, baseadas nos valores e nos princípios teóricos do colonialismo europeu.

Como definir descolonizar, que conteúdos atribuir a esta noção hoje banalizada?

A natureza hegemónica da colonização e do colonialismo impôs a noção eurocêntrica de descolonização, nos princípios dos anos 60, ignorando o papel dos povos dominados no processo da sua libertação e reduzindo no mesmo movimento a importância das independências, umas obtidas pacificamente, outras, como no caso português, conseguidas após anos de guerra, de violências, de combates, de destruições.

Muitos historiadores (e outros) utilizaram (e utilizam) abundantemente esta categoria, por comodidade ou não, tendo-a banalizado na maioria das sociedades ocidentais, confundindo-a com as independências, como se o passado pudesse ser eliminado. O que quer dizer ‘descolonização’? A retirada da potência colonizadora? As operações desencadeadas pelos movimentos de independência? Um acto justo que demonstra o reconhecimento europeu da violência colonial? Uma benesse oferecida pelos colonizadores aos colonizados? Um processo político? Económico? Social? Intelectual? A ambiguidade do termo permite evitar pensar a colónia na sua globalidade, cria/reforça a noção de ‘situação pós-colonial’, que se segue à ‘situação colonial’, antecedida pela ‘situação pré-colonial’, categorias sem consistência que recusam a autonomia histórica e cultural do Outro.

O discurso e a linguagem dos historiadores ocidentais não estão ainda totalmente descolonizados… Dito de outra maneira, são as historiografias ocidentais que ainda não se descolonizaram completamente, tarefa urgente para pensar o mundo global. É o caso da historiografia portuguesa, muito tempo marcada por mitos e estereótipos legitimadores do colonialismo português e falsificadores das realidades sociais e culturais africanas, negando aos africanos a existência de uma história autónoma e a sua condição de sujeitos e de agentes da História. Descolonizar a história é libertar a reflexão histórica dos valores fundamentais da dominação colonial, através do conhecimento das nossas realidades do passado, desconstruindo mitos historiográficos persistentes redutores do Outro, introduzindo abordagens inovadoras de problemas históricos do passado, recorrendo a uma panóplia alargada de instrumentos teóricos e conceptuais que a interdisplinaridade nos permite utilizar, mas também devolvendo a palavra aos silenciados da história e reconhecendo a autonomia e a singularidade dos seus percursos históricos seculares.

 

Henriques, Isabel Castro. “As histórias da história de África.” Por Elisa Lopes da Silva e Bárbara Direito. Práticas da História, Journal on Theory, Historiography and Uses of the Past, n.o 8 (2019): 221-257.

  • 1. Isabel Castro Henriques e Louis Sala-Molins, org., Déraison, esclavage et droit. Les fondements idéologiques et juridiques de l’esclavage et de la traite négrière (Paris: UNESCO, 2002).
  • 2. Isabel Castro Henriques, A Herança Africana em Portugal – séculos XV-XX (Lisboa: CTT – Correios de Portugal, 2009).
  • 3. A exposição “Contar Áfricas!” decorreu entre 25 de Novembro de 2018 e 21 de Abril de 2019, no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, e definiu-se como “exercício científico-metodológico”. Para mais informações sobre a exposição, consultar: https://padraodosdescobrimentos.pt/ evento/nova-exposicao-contar-africas/ (acedido a 27 de Julho de 2019).
  • 4. A escolha de Ricardo Roque da carta de D. Sebastião Agombe, Dembo Qilumbo Quiacongo, a D. Sebastião Francisco, Dembo Caculo Canzega (1913), do Arquivo dos Ndembu, assentou no trabalho de Ana Paula Tavares e Catarina Madeira Santos, em particular na publicação da obra Africae Monumenta. A apropriação da escrita pelos africanos (Lisboa: IICT, 2002). Mais informações sobre a “carta com feitiço”, aqui: http://www.buala.org/pt/vou-la-visitar/ arquivo-da-exposicao-contar-afr....

por Elisa Lopes da Silva, Bárbara Direito e Isabel Castro Henriques
Cara a cara | 20 Abril 2022 | África, colonialismo, escravatura, Hisrtória, Isabel Castro Henriques, presença africana