Ruy Guerra e o Pensamento Crítico das Imagens

Colóquio InternacionalFundação Calouste Gulbenkian - Delegação em França, Paris, 8 de Outubro de 2015INHA, Paris, 9 de Outubro de 2015

CHAMADA DE TRABALHOS
O cinema brasileiro no seu melhor foi um cinema de desmistificação.   Desmistificou a sociedade de classes, desnudando a estrutura interna das suas relações sociais. Ao mesmo tempo, desmistificou o próprio cinema através de mecanismos anti-ilusionistas reveladores do processo de construção do texto. Ao combinar uma temática de construção com uma estética de desconstrução, A Queda constitui um prolongamento notável dessa tradição.

Robert Stam 

A Queda, 1977A Queda, 1977
Cineasta, poeta, cançonetista, escritor e actor, todas estas categorias - ou a combinação de todas elas - se revelam insuficientes para definir a transversalidade e a riqueza transdisciplinar da obra de Ruy Guerra. Nascido em 1931, em Moçambique, e radicado no Brasil desde 1958, Guerra é, juntamente com Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, um dos mais importantes realizadores do Cinema Novo brasileiro.  Através de um longo percurso entre África, a América do Sul e a Europa, o cineasta colecciona experiências e contactos. Guerra define-se como “um produto africano, [dotado de uma] afectividade moçambicana , e como um “latino-africano” , entendendo que a vivência num território colonizado durante a juventude marcou não só o seu olhar estético, como também o seu “olhar político sobre a estética”.

É em Lourenço Marques que Guerra realiza o seu primeiro filme, Cais Gorjão (1947/48), um documentário, filmado em 8 mm, sobre a existência difícil dos estivadores negros, cujas bobines foram confiscadas e se encontram desaparecidas. Desde então, a obra do cineasta organiza-se em torno das duas dimensões historicamente atribuídas ao processo de descolonização: “descolonizar” é, aí, conjugado no duplo sentido político e estético. O olhar de Guerra irá enriquecer-se em cada nova escala: Portugal, França, Espanha, Grécia, Brasil, Cuba, ao longo de uma cartografia tricontinental. O seu cinema exemplifica uma triangulação proto-tropicalista (e não luso-tropicalista), na linha de pensamento de Agostinho da Silva.

Assumida como um projecto existencial, a vida-obra de Guerra faz-se em itinerância no espaço dito “lusófono” e fora dele.  Para Guerra, não existem diferenças entre o documentário e a ficção. O realizador sublinha o laço ontológico entre a imagem cinematográfica e o real, afirmando, ao mesmo tempo, a presença frente ao dispositivo de uma matéria viva e irredutível ao cinema. No cinema, há sempre um acontecimento a construir. Na sua praxis estética e política do cinema, Guerra procura incessantemente essa estrutura singular do acontecimento cinematográfico, ligada a uma efusão dos corpos: assim o é em Quand le soleil dort (Quando o Sol Dorme, 1954), curta-metragem de fim de curso no IDHEC (1952-1954), uma adaptação do romance Uomini e no (Os Homens e os Outros, 1945), de Elio Vittorini; continua a sê-lo em Quase Memória, o seu filme mais recente, filmado no Rio de Janeiro e em Minas Gerais em 2014, adaptação literária do romance autobiográfico homónimo de Carlos Heitor Cony. 

Duas temáticas atravessam, entrelaçadas, a obra de Guerra, adquirindo um importante valor formal: por um lado, as questões conceptuais ligadas à multitemporalidade do acontecimento histórico (a experiência, a memória, as interpretações do evento); por outro lado, o conjunto de dinâmicas relacionadas com a imposição da violência do Estado e da modernização, associado aos processos de desintegração da ordem do mundo antigo. A tentativa de retenção de um presente em movimento aparece já em Os Cafajestes (1962), filme inaugural da carreira cinematográfica de Guerra no Brasil, primeira aparição no cinema de ficção brasileiro de um dos traços estilísticos distintivos do Cinema Novo, a câmara na mão. A errância de Leda (Norma Bengell), deslocação inútil e incerta sob fundo de luta de classes, é representada através de um travelling, realizado a partir de um carro, que desdobra o movimento da personagem.

São dois movimentos prospectivos que se anulam reciprocamente, dando origem a uma paradoxal progressão estática, redundante e sem finalidade.  Os Fuzis, longa-metragem premiada com o Urso de Prata Extraordinário no Festival de Berlim em 1964, descreve a mobilidade de um espaço novo, “o mato enfeitado” dos sertões de Euclides da Cunha e de João Guimarães Rosa, importantes referências literárias do filme. Outro espaço-tempo em transformação, que a representação cinematográfica visa estabilizar e recompor. A descoberta do gigantesco território brasileiro, cujas paisagens ora áridas, ora verdejantes recordam Moçambique, foi antecedida pelo seu conhecimento enquanto espaço literário. Para Guerra, trata-se de um território culturalmente próximo, graças à língua e à matriz cultural. Os “fuzis” representam a ordem do Estado, que vem agitar e subjugar a ordem imóvel do sertão. Guerra interessa-se pela história de resistência dessa região geográfica, sobretudo pela Guerra de Canudos (1896-1897), tema de um guião escrito em 1973 em colaboração com Mario Vargas Llosa para o filme, nunca realizado, Guerra Particular. 

Em Os Deuses e os Mortos (1970), a crise da economia cacaueira após o crash de 1929 torna-se num objecto de fabulação através de personagens que representam a colonialidade do poder e as forças do neo-colonialismo, às quais se opõe, sem todavia lograr impor-se, uma dimensão mítica encarnada em figuras espectrais. Para Ismail Xavier, nessa “alegoria totalizante do sistema neo-colonial” [,] “o discurso sobre um mundo em desintegração assume papel central na composição dramática.” No filme, a ordem internacional altera a serenidade dos velhos deuses antropomórficos, figurando a decomposição da estrutura social hierárquica arcaica do “colonialismo interno”  e a ruptura da visão do mundo que lhe é própria. 

Em A Queda (1977), segundo Urso de Prata de Guerra no Festival de Berlim, em 1978, o “Brasil do futuro”, o Brasil da modernização da ditadura, absorve os “fuzis” do filme de 1964. No universo intertextual do cineasta, as personagens dos soldados transitam entre os dois filmes. A Queda aborda as consequências do “milagre brasileiro” da década de 70 nas relações do trabalho e na esfera privada, convocando uma indisciplina dos corpos e do desejo, formalizada no plano-sequência dinâmico. Entre 1977 e 1986, Guerra realiza numerosos projectos em Moçambique. De regresso ao seu país natal, onde vivera até aos vinte anos, Guerra é o principal artesão da fundação do cinema nacional moçambicano.

O cineasta tem um papel activo na formação dos técnicos do Instituto Nacional de Cinema (INC) e na tentativa de implementação do projecto “Cinema nas Aldeias”. Realiza também vários filmes, entre os quais Mueda, Memória e Massacre (1979-1980), primeira longa-metragem moçambicana classificada como filme de ficção, e Os Comprometidos. Actas de um Processo de Descolonização (1982-1984), obra que, para o realizador, “faz a catarse do colonialismo”  e que, no nosso entender, faz também a catarse do anti-colonialismo.  Mueda, Memória e Massacre debruça-se sobre a memória sensível do colonialismo, uma contra-memória. Guerra interessa-se pela forma como o sistema colonial agiu sobre os corpos colonizados, deixando neles marcas (vestígios, restos). Nesse sentido, procede a uma reconstituição sensível das condições perceptivas e cognitivas do colonizado no sistema colonial. Os corpos e o olhar - o seu movimento - são aqui memória. O filme apresenta uma estética do sensível e da memória, enveredando ainda por uma pesquisa de contornos antropológicos dos sujeitos coloniais.

Mueda, Memória e Massacre aproxima-se também de uma mnemotécnica representativa, em relação estreita com a cultura da África Austral, em particular com as formas culturais do Planalto de Mueda. A resistência da sociedade tradicional Maconde à ordem política da FRELIMO constitui outra das suas linhas temáticas. Mas o aspecto mais importante é indubitavelmente o modo como o filme dá corpo ao projecto de colectivização do cinema de Samora Machel e Jorge Rebelo. Guerra não fala em nome do povo, nem lhe dá simplesmente a palavra, como em A Queda. Longe disso. Aqui, o cineasta dialoga com o povo. Faz circular uma palavra - uma palavra-imagem - colectiva. A passagem do subjectivo ao colectivo suspende (ou desfaz) as hierarquias da enunciação e da representação, dotando o filme de uma estrutura perspectivista e relacionista. Depois da sua passagem por Moçambique, verdadeiro ponto de ruptura na filmografia de Guerra, o cineasta realiza A Ópera do Malandro (1986), filme musical que tem por objecto o processo de aburguesamento de um “malandro” do bairro carioca da Lapa no contexto sócio-politico em transformação do Brasil da década de 40. O guião do filme, uma adaptação da peça de teatro de Chico Buarque inspirada n’A Ópera dos Três Vinténs de Bertold Brecht e Kurt Weil, é o resultado de um trabalho conjunto de Guerra, do compositor brasileiro e de Orlando Senna. A colaboração voltaria a renovar-se em Estorvo (2000), adaptação do primeiro romance de Buarque, publicado em 1991. Não poderíamos deixar de mencionar a aventura cubana de Guerra, repartida entre diversos momentos da sua vida. Desde a criação do Festival Internacional do Novo Cinema Latino-americano em 1979, os seus filmes são aí apresentados regularmente. A partir de 1972, Guerra inicia vários projectos artísticos em colaboração com Gabriel García Márquez, desde 1988 na “Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de los Baños”. O cineasta adapta livremente vários romances do escritor (Eréndira, 1983, Fábula de la Bella Palomera, 1988, O Veneno da Madrugada, 2004/2005). Mas é Me Alquilo para Soñar (1992), mini-série filmada integralmente em Havana a partir do relato epónimo publicado por García Márquez em 1980 na antologia Doce Cuentos Peregrinos, que mais chama a atenção. História de premonições e de oráculos, através da presença fantasmática de uma mulher que vende sonhos, o filme é sobretudo uma reflexão ambiciosa e distanciada sobre a questão do cinema tricontinental. Um cinema que continua a estabelecer um diálogo entre a América Latina e a Europa, no contexto todavia ambíguo de mutualização dos meios de produção (a mini-série foi realizada para a televisão espanhola). 

Cabe evocar também o desempenho de Guerra como actor em papéis atípicos em filmes franceses, brasileiros e alemães, sendo o mais célebre o de D. Pedro de Ursúa, comandante da célebre expedição pelo inferno da selva amazónica. Guerra contracena com Klaus Kinski, que interpreta D. Lope de Aguirre, rei em devir de um reino inexistente. Em Aguirre, der Zorn Gottes (Aguirre, a Cólera dos Deuses, 1972), Werner Herzog desenvolve uma reflexão atemporal, sob a forma de alegoria, sobre o materialismo dos homens na Europa do século XVI. A leitura contemporânea do filme, oscilando entre desejo naturalista e pesadelo acordado, permite estabelecer uma ligação com a obra de Guerra, através da busca absurda de um poder sem fim.  O cinema de Guerra tem sempre por temática - mesmo se, por vezes, de forma latente -, os efeitos produzidos pelo processo de imposição da ordem, seja ela política ou cultural e, correlativamente, as formas de resistência ao poder e à mudança. A narrativa situa-se invariavelmente no momento de manifestação, brusca e intensa, dos fenómenos de crise, incidindo depois, de forma não conclusiva nem redutível à palavra do autor, sobre o seu desenvolvimento. É um cinema do momento crítico. 


Modalidades de candidatura
Cinzelada ao longo de mais de vinte títulos desde a década de 40, a obra de Ruy Guerra convida-nos a um pensamento crítico do cinema. Respondendo aos grandes acontecimentos históricos de uma cartografia tricontinental, a filmografia do cineasta caracteriza-se pelo seu engajamento estético, à margem do cânone, e pela invenção de uma linguagem singular adaptada a cada nova etapa de um pensamento em movimento. Este colóquio procura propostas que se debrucem sobre as diferentes fases da filmografia do cineasta e sobre os seus principais temas e traços formais. Valorizaremos particularmente resumos que desenvolvam novas leituras da obra de Guerra e/ou que a situem no quadro geral do cinema a partir de uma perspectiva histórica e estética.

As contribuições consistirão em apresentações orais de trinta minutos, seguidas de dez minutos de discussão. Poderão ser enviadas até ao dia 15 de Julho de 2015 para o email colloqueruyguerra@gmail.com. Deverão enquadrar-se num dos seguintes eixos temáticos: 
1. Crítica das imagens e gestos subversivos: crises e resistências
2. Olhar estético e olhar político sobre a estética
3. Representação cinematográfica do acontecimento e antropologia das imagens
4. O autor emancipado. Descolonização da representação e colectivização do cinema
5. Ruy Guerra, um cineasta tricontinental? Modelo, distanciamento, reconfigurações
6. Cinema e literatura: a adaptação cinematográfica de textos literários
7. O real maravilhoso: Ruy Guerra e o realismo mágico
8. Ruy Guerra: actor, escritor, poeta, cançonetista, guionista
Línguas de trabalho: francês, português e inglês

Comité científico
Mateus Araújo Silva (USP) Maria-Benedita Basto (Paris-Sorbonne – Paris 4) Nancy Berthier (Paris-Sorbonne – Paris 4)Nicole Brenez (Sorbonne Nouvelle – Paris 3)José Luis Cabaço (USP)Teresa Castro (Sorbonne Nouvelle – Paris 3)Philippe Dubois (Sorbonne Nouvelle – Paris 3)Ros Gray (Goldsmiths College)Randal Johnson (UCLA)Benjamin Léon (Sorbonne Nouvelle – Paris 3)Vavy Pacheco Borges (UNICAMP)Lúcia Ramos Monteiro (Universidad de las Artes de Guayaquil)Mickaël Robert-Gonçalves (Sorbonne Nouvelle – Paris 3)Raquel Schefer (Sorbonne Nouvelle - Paris 3)Robert Stam (NYU)

Com o apoio de:
Fundação Calouste Gulbenkian - Delegação em FrançaUniversité Sorbonne Nouvelle - Paris 3Université Paris-Sorbonne - Paris 4INHA (Institut National d’Histoire de l’Art) LIRA (Laboratoire International de Recherches en Arts)

por vários
Afroscreen | 11 Junho 2015 | moçambique, Ruy Guerra