Fuckin’ Globo quarto a quarto

De 1 a 6 de Fevereiro decorreu, na baixa de Luanda, a 4ª edição do Fuckin’ Globo. As propostas do colectivo artístico foram, como habitualmente, variadas. O tom e a crítica social e política apresentam-se cada vez mais contundentes. Revisitemos os quartos e a fachada do Hotel Globo, na rua Rainha Ginga.

 

Quarto 107 

'Enfim Sós' – Daniela Vieitas'Enfim Sós' – Daniela Vieitas

 

O cenário é penumbroso: A cama, a mesa-de-cabeceira e vários objectos pessoais espalhados pelo quarto, indiciam uma ocupação duradoura. No chuveiro da pequena casa de banho, esconde-se a única personagem em cena, saída de uma adaptação do texto de Hanneke Paauwe e interpretada pela actriz, Daniela Vieitas que sussurra ininterruptamente, cara-a-cara a sua única noite de amor. A mulher amada um dia e rejeitada, todos os outros dias, está perturbada pela sua paixão solitária e, por isso revive inúmeras vezes, o único dia em que amou e se sentiu amada.


Quarto 108 

'Um Gostinho Disto' – Alekssandre Fortunato'Um Gostinho Disto' – Alekssandre Fortunato

A introspecção saiu alforriada sob o descomando consciente do alter-ego de Alekssandre Fortunato. Cada parede do quarto é palco e tela de uma manifestação desbragada, com emoções que sobrecarregam e avolumam cada traço ou pensamento manuscrito em tons dissonantes que afinal, compõem esta espécie de santuário anti-repressivo de observação e percepção de um corpo ou partes dele e do rosto ora figurado ora auto-retratado.  


Quarto 109 

'Gaiola do Pássaro Paraplégico' – Edson Chagas'Gaiola do Pássaro Paraplégico' – Edson Chagas

Paredes negras, “gradeadas” por fios e tomadas, ligados entre si ou a nada. Entra-se e, tendencialmente, o olhar fixa-se no ecrã de televisão ao fundo, é uma espécie de engodo que induz a uma expectativa intuitiva, só virtualmente plausível, de que a imagem estática se transforme em qualquer coisa… Segue-se então cada fio para verificar se estão ligados e… Espera-se, espera-se, nada acontece… É armadilha? É o paradoxo de um vazio estático num espaço, aparentemente, entreligado. O bastante para despoletar ansiedade, e no fim, conexões ilusórias, na verdade, desconectadas que incapacitam qualquer forma de ligação real ou de imaginação.

 

Quarto 111  

'Exonerada' – Lola Keyezua'Exonerada' – Lola Keyezua'Exonerada' – Lola Keyezua'Exonerada' – Lola Keyezua

Que poder têm esses ovos? A galinha na capoeira, na tela Keyezua e, há ovos na parede. A pessoa, de quem não se fala o nome, está bem presente no imaginário de quem entra no quarto. Os ovos são veículo de manifestação e, simultaneamente, fonte de uma inspiração triunfal. O manifesto em vídeo-performance, sem palavras, regurgita vontades outrora, nefastas e obrigatoriamente, enterradas. A galinha viva, a heroína, mantém a importante função de pôr ovos para continuar a alimentar sonhos milionários.

 

Quarto 112 

'Utopia em Terra Queimada' – João Ana, Kiluanji Kia Henda e Orlando Sérgio'Utopia em Terra Queimada' – João Ana, Kiluanji Kia Henda e Orlando Sérgio

 

O carvão invadiu o quarto e, no meio, a personificação da utopia. Um ser indiferente ao cenário defunto, estéril e decrépito que o rodeia, demonstra uma impassibilidade própria de quem vive protegido numa bolha com “pastos verdejantes”, sem crises, cheio de valores e princípios relembrados eloquentemente, mas esquecidos de imediato. Ignora com arrogância os outros e, sobretudo quem visita, reflectindo inadvertidamente a imagem de: “Novo-rico, pobre eterno”; “Economia do medo”; “Luxo, Lexus, Lixo”; “Acumulação primitiva”…


Quarto 113 

'Unbalanced' – António Ole'Unbalanced' – António Ole

Onde está o equilíbrio? Com balanças viciadas, desniveladas por interesses grosseiros por trás da máscara de nações desunidas, a concepção de equilíbrio, torna-se cada vez mais desequilibrada. O favorecimento de uns em detrimento de outros tem uma aceitação convenientemente cega. O desamor é diagnosticável e, por isso, está justificado e escusado será contrariá-lo. Mentes deformadas pela ambição promovem uma visão distorcida de equilíbrio no meio do caos. Já para não falar nos pesos e medidas que se ajustam segundo vontades. Não há desequilíbrio, a terra é que está torta.

 

Quarto 115 

#Registo 09172013_ Purgatório – Thó Simões#Registo 09172013_ Purgatório – Thó Simões

No breu denso, há uma profusão de vozes. São vozes masculinas, quase indestrinçáveis, com tons e modelações diferentes que ecoam num espaço sem forma. Há uma sobreposição de frases no vazio negro que apura a audição e força a visão ilusória das falas que vão ganhando forma. Thó Simões projecta no invisível, os sons de um isolamento colectivo. Transportando a sua experiência pessoal num purgatório, o quarto transmite a sensação de superlotação, frustração, desânimo, desespero e o caos social dentro e fora das grades…

 

Quarto 116 

'Povo em Contrapeso' – Toy Boy'Povo em Contrapeso' – Toy Boy

Ao entrar no quarto o “povo” leva sacos de 50 quilos à cabeça… Os sacos pendurados no tecto põem a nu a vergonha do verdadeiro povo que carrega o peso do desgoverno dos recursos, afinal incapazes de o alimentar. A quantidade de sacos, a origem e variedade de produtos acentuam a dependência de uma economia alheia às necessidades reais, locais e, vulnerável aos interesses globais. A disposição dos sacos e o volume sobrecarregam o quarto e acentuam a ideia do alimento que não só esmaga como diminui porque cada saco nutre vidas inutilizadas tanto pelos que consomem como, propositadamente, pelos que vendem.

 

Galeria ‘Lúcia no céu com semáforos’ – Ery Claver e Gretel Marin

 

O filme conta a história de um ser que só tem existência corpórea. Um ser-objecto usado para satisfazer necessidades e vontades. Na tela, Lúcia preserva apenas um olhar distante que esconde gritos, medos e desabafos. Descaracterizada de humanidade, a jovem mulher é sempre ostracizada e silenciada pela sociedade sexista que em momento algum, considera a sua opinião, vontades e desejos. Lúcia é o relato mudo da mulher acoplada a um papel ou função sem direito de ser, pensar ou opinar.

 

Fachada 

'Anarquia 33' – Colectivo Verkron'Anarquia 33' – Colectivo Verkron

A fachada sexagenária já está ocupada. Mas o sonho anárquico não termina, completa-se na invasão deste e de outros espaços físicos e até mesmo etéreos. Contrariando a demência de uma sociedade que insiste em ocupar os mesmos lugares e lotá-los até à exaustão, sem perceber que há muito mais à volta. Angola inteira reduzida a uma cidade sobrecarregada de pessoas, com construções esquizofrénicas e megalómanas. O colectivo invade o hotel e desta vez, fica o registo permanente da sua existência. Crítico à bitola social tresloucada exige, agora de si mesmo outros marcos e latitudes.

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Vou lá visitar | 21 Fevereiro 2018 | angola, arte contemporânea, Fuckin’ Globo, luanda