Martírio, de Vincent Carelli, no cinema Ideal

O filme Martírio é talvez um dos mais importantes e perturbantes documentos da atualidade brasileira e do etnocídio indígena em curso, perpetuado pelo governo brasileiro. Vincent Carelli, em colaboração com Ernesto de Carvalho e Tatiana Soares de Almeida, recolhe imagens históricas da resistência guarani Kaiowá ao conflito com as instituições governamentais.

A perturbação atinge o pico com o registo das discussões, realizadas durante o governo Dilma, ainda antes do impeachment da presidente. No calor das jornadas de junho de 2013, momento de impactantes mobilizações e ocupação da Esplanada dos Ministérios por diversas lideranças indígenas, face à votação das emendas constitucionais PEC 215 e 237 que visavam alterar a regulação da demarcação de terra para os povos tradicionais (PEC 215 e Pec 237), somos confrontados com chocantes declarações da ex-ministra da agricultura Kátia Abreu - a conhecida “katia da motosserra” - e a postura indemovível de Gleisi Hoffman do Partido dos Trabalhadores nas negociações.

Perseguidos, assassinados à queima roupa por pistoleiros, os Guarani Kaiowá são a prova viva, a prova persistente, de que o etnocídio destas comunidades coincide com a ecocídio das suas terras originárias a favor do agronegócio e de um modelo de pensamento dominante que não admite excepções. A devastação ambiental é associada a uma devastação ontológica.

Se a situação das comunidades indígenas era calamitosa neste período, a situação hoje é ainda pior com o temoroso Temer. Por isso, ver “Martírio”, partilhar “Martírio”, participar de “Martírio”, é urgente: abrir os olhos para uma resistência enlutada e mais próxima da catástrofe do que da purificação. Um filme que alerta para a misantropia basilar do estado e sua visão limitada da terra (e de certos corpos) como “recursos naturais”. 

 

Ler “Se não tiver mais reza o mundo vai acabar”, de Estela Vela.

 

programa 6.doc - Doclisboa no Cinema Ideal

O filme está em exibição durante uma semana, todos os dias às 18h30 no cinema Ideal, e conta com apresentações de convidados: na quinta-feira, 24 Maio, foi Rodrigo Lacerda a fazer a apresentação; na quarta-feira, 30 Maio, a apresentação da sessão é de Sara Baga.

Sinopse: Vincent Carelli documenta, desde o nascimento do movimento na década de 1980, a grande marcha de reconquista dos territórios sagrados dos indígenas guarani-kaiowá e a sua insurgência pacífica e obstinada frente ao poderoso aparato do agronegócio.

Palmarés:
● Prémio Melhor Filme do Júri Popular e Prémio Especial do Júri no 49º Festival de Brasília de Cinema Brasileiro
● Melhor Documentário Brasileiro (Prémio do Público) e Prémio SPcine para o Cinema Brasileiro de Melhor Documentário na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
● Prémio de Melhor Filme na IX Janela Internacional de Cinema do Recife
● Melhor Longa-metragem da Competitiva Latino-americana no 31º Festival Internacional De Cine De Mar Del Plata
● Melhor filme (Prémio do Júri) e Melhor filme (Prémio Universidade Federal do Acre) no PACHAMAMA Cinema de Fronteira 2016
● Prémio Mapinguari de Melhor Longa-metragem no 4º FestCine Amazónia
● Prémio Especial do Júri no 13º Festival de Cinema do Vale do Ivinhema
● Prémio Fundação INATEL para Melhor Filme de Temática Associada a Práticas e Tradições Culturais e ao Património Imaterial da Humanidade, transversal a todas as secções excepto Retrospectivas e Cinema de Urgência no Doclisboa’17

Na sequência da presença do filme no Cinema Ideal, no dia 30 de Maio, quarta-feira, pelas 21:30, terá lugar uma mesa redonda na Casa do Brasil em Lisboa com os seguintes participantes:

Susana Viegas é antropóloga, Investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Fez o doutoramento em antropologia na Universidade de Coimbra onde foi docente entre 1989 e 2006. É membro do Conselho Editorial da Revista Cadernos de Ciências Humanas, dos Conselhos Científicos da revista Educação em Foco – Brasil e da National Geographic – Portugal. Desde 1997 faz pesquisa entre os Tupinambá de Olivença no sul da Bahia, tendo coordenado o Relatório Circunstanciado de Identificação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença.

Pedro Cardim
Pedro Cardim é professor do Departamento de História da Universidade Nova de Lisboa, responsável pela disciplina de História do Brasil - período colonial. A sua investigação centra-se na história política dos séculos XVI e XVII.

Sara Baga
Dedicada ao activismo, particularmente nos temas de política alimentar e bioética, e, mais recentemente, pelos direitos dos povos indígenas. Em 2017 esteve no Brasil na qualidade de observadora dos direitos indígenas para testemunhar o etno-genocídio dos Guarani-Kaiowá.

Rodrigo Lacerda
Tem formação em cinema e antropologia e, neste momento, desenvolve uma pesquisa sobre filmes indígenas produzidos no Brasil em colaboração com a ONG Vídeo nas Aldeias. É membro do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) e professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-NOVA).

por Ritó aka Rita Natálio e vários
Afroscreen | 26 Maio 2018 | Brasil, cinema indígena, Martírio, questão indígena, Terra