Descolonizar a descolonização - parte 3 - a língua pt 1
Língua do colono
O colonialismo, além da exploração económica, foi também uma imposição cultural. Práticas e línguas dos colonizadores substituíram e sobrepuseram-se às línguas e culturas locais. Os seus sistemas de organização da vida e religiões tradicionais desconsideraram os saberes e as religiões de determinado território. As religiões primeiras foram deslegitimadas por crenças externas (por primeiras refiro-me às religiões antes do muçulmanismo e do catolicismo, a que alguns chamam de matriz africana, animista, tradicional ou outra). Essa imposição de valores, como sabemos, gerou um processo de deslegitimação das culturas, dos conhecimentos dos povos dominados. Por isso, há uma crítica cada vez mais sonora sobre as línguas europeias, como o português, por exemplo, que foi uma dessas armas de dominação.
Sei bem que o português nos PALOP inflaciona a importância de Portugal, numa espécie de hegemonia linguística, como lembrança permanente da dominação colonial e grandeza territorial. Chamar a língua e os países de «lusófonos» é conformar-se com a história e aceitar um lugar de afilhado. Pode-se assim dizer que o português ultrapassa o lugar de ferramenta de comunicação e manifesta-se como ferramenta da dominação (ler o artigo “A lusofonia é uma bolha”, de Marta Lança, escrito já em 2008).
Todavia, há bués que as pessoas em Portugal dizem vou “na” casa do meu irmão, não “à” casa. Cadê o português de Portugal quando eu digo à minha pessoa querida: “eu lhe amo”? Nos PALOP, a influência do Brasil no português é bem grande, por causa das telenovelas, das músicas e das igrejas evangélicas. Aliás, também em Portugal. Por isso, acredito que a língua portuguesa hoje é mais brasilense. São mais de 200 milhões de falantes contra 10 milhões de Portugal (sendo que desses 10, uns bons milhares são africanos e brasileiros). E é com a língua portuguesa que os pretos brasileiros procuram a sua africanidade nos PALOP. Os programas informáticos são mais frequentemente traduzidos só em português do Brasil, há mais presença de brasileiros no Youtube, fazem programas sobre tudo: se quiseres saber sobre “conquistas de D. Afonso Henriques” ou “como falar português como alentejanos de Ourique”, provavelmente vais encontrar um tutorial feito por um brasileiro a guiar-te. Portanto, a conversa de que Português “é” a língua do colono (em vez de “foi”) pode ser verdade, mas a coisa muda quando perguntamos: quem é o colonizador?
O papel do Brasil
Não é só Portugal que tem vantagens com a existência da língua portuguesa nos PALOP. Há cada vez mais um olhar do Brasil para o nosso continente, com as bolsas de estudo e o mercado da cultura, por exemplo. A aproximação é, muitas vezes, construída à custa da história, com o discurso de que fomos todos colonizados por Portugal, somos povos irmãos, com culturas parecidas, África é a casa da ancestralidade brasileira ou, melhor, afro-brasil.
É como se histórica e institucionalmente tivéssemos o mesmo ponto de partida e estivéssemos na mesma corda bamba. Para o Brasil, África é a “terra” de oportunidades, com um mercado pouco explorado, e as empresas e a agroindústria brasileiras fazem-se fortemente presentes lá, tirando terras (legalmente) e escravizando com salários irrisórios (também legalmente) as populações.
Tudo com a ajuda dos próprios governos ávidos de investimento estrangeiro que não se lembram (ou desconhecem) que o colonialismo começou com o investimento estrangeiro, quando startups europeias se aventuraram em barcos, iludindo as suas pessoas pobres com o sonho do eldorado, levando-as para outros continentes.
África não é um “mercado” não explorado, mas um “produto” exageradamente explorado. No plano cultural mais inócuo, ativistas “afro”-brasileiros também levam as suas lutas e os seus discursos para iluminar a nossa população obscurecida e acordá-la contra a opressão do homem branco, apesar de os nossos opressores diretos serem tão africanos e tão pretos quanto nós. Assim, acabamos colonizados por um discurso desconexo das nossas realidades. De qualquer modo, tudo isso só é possível devido à língua.
Língua do poder
A língua portuguesa pode ter sido originariamente europeia mas, constatando o óbvio, já não é mais de europeus… apenas. Podemos até começar a chamá-la de angolano ou afroguês ou pretuguês para a descentralizar.
Português é a língua do poder, aquela que diferencia e distingue as pessoas. Observa-se este processo quando o povo guineense olha com mais respeito para uma pessoa quanto melhor articulada em português ela é. A solução não é parar de falar português, pelo contrário, é preciso banalizá-lo para se tornar do povo que diz representar, e não ser um privilégio saber falá-lo. Portanto, se assumimos a língua como nossa e como veículo de expressão e ferramenta de convergência e de possibilidades (que é, ao mesmo tempo, a mais poderosa ferramenta da dominação, a criadora do ethnos), deixa de ser sobre Portugal. Se os outros países se juntarem para definir novas estratégias para o português, o que Portugal poderá fazer? Isolar-se na sua arrogância de “dono” da língua?
A língua, do modo distinto aos símbolos que representam um país como um brasão, um hino, ou outras veleidades, é real, é viva, é vida. A língua é povo (ler o texto “Entre o domínio e o confronto, a língua”, de Manuella Bezerra), portanto quando o povo não sabe a língua, então não há povo. Nesse sentido, o português é uma língua elitista na Guiné-Bissau, como kriol já foi, ou melhor, como kriol ainda é (pessoas são ridicularizadas porque falam kriol com o sotaque da língua que as amamentou).
Na Guiné-Bissau fala-se o kriol, é a língua franca, português é a oficial e língua da nação, a que representa a nação. Quando a Guiné-Bissau declarou a sua independência fê-lo em português, sobre uma fronteira criada Portugal, mantendo as leis e formas de administração portuguesas, o que evidencia que a Guiné-Bissau também é um projeto colonial. Foram-se embora a administração e a força militar portuguesas e entraram as nossas, não fizeram tábula rasa, herdaram o aparato: o idioma, as fronteiras, o modelo jurídico, as lógicas diplomáticas, entre outras. Declarou-se a independência em Português para que as outras nações soubessem também que esta aqui é “civilizada” o bastante para ter o seu cacifo no balneário do clube chamado Nações Unidas, antes feito para homens brancos brincarem a réplicas da Conferência de Berlim, de forma dita humanitária e democrática, mas que agora opera na lei de cotas, sem realmente defender os cotistas (perguntem ao Congo, ao Sudão ou à Palestina).
Não significa, todavia, que a ideia da independência tenha sido uma farsa. Houve sangue, houve luta, houve lágrimas, houve luto, houve sonhos e ideais. Mas houve também impotência e houve substituição dos operadores da opressão. Portanto, houve contradição: “libertar-se” do colonialismo, sem sair das fronteiras e dos pressupostos estruturais do colonialismo. A África moderna é uma criação colonial, repito à exaustão. A Guiné-Bissau, como tantos outros países africanos, vive sempre nessa espécie de entre-estar, onde liberta e onde oprime os seus, onde é independente e onde tem de mendigar para sobreviver. É como aquele filho que sai da casa dos pais para se afirmar no mundo, mas não consegue andar sem as rodinhas laterais, e fica sempre a exigir a sua atenção. Nem colónia, nem independente, mas ainda assim em existência plena. Essa plenitude marca-se pela busca de valores comuns e representativos para a nação, sendo a língua unida a principal.
O processo de unificação linguística não é exclusivo da Guiné-Bissau: lá, a par de muitas outras línguas, temos o kriol como língua neutra, que não pertencia a nenhuma etnia (embora fosse a língua de uma elite “kriola”) e foi aceite como a língua da unidade. Após a independência podia ter sido elevado à língua oficial ou à língua da educação (Amílcar Cabral defendia o contrário, mas já lá vamos), mas ficou-se por língua franca.
Em Cabo Verde teria sido menos complicado estabelecer uma língua nacional fora do português, porque tinham o cabo-verdiano e só esse (mas a discussão em curso sobre o caboverdiano não é nada consensual, veja-se ensaio de José Luís Hopffer Almada sobre o bilinguismo literário e o bilinguismo oficial). Em São Tomé eram três “crioulos”, um bocado mais complicado. Mas em Angola e Moçambique, que tinham tantas línguas diferentes e eram tantos partidos diferentes, onde mesmo a escolha de um dos movimentos-partido para substituir Portugal tornou-se nesse derramamento de sangue que até hoje persiste, imaginem o que não seria se tivessem escolhido uma língua local qualquer para ser a nacional e reinar sobre as outras todas. O Brasil como país é essencialmente língua portuguesa, por ser uma continuidade colonial, então nem sequer tinha espaço para permitir outras línguas. A evangelização e o projeto colonial português deu início à chacina das línguas indígenas daquele território, mas foram os brasileiros, os criadores do Estado, que a efetivaram, assim como anularam as línguas da imigração (europeia, asiática e do médio oriente) já no século XX.
Na Guiné-Bissau, historicamente falou-se português no território, muito antes do kriol. O Português é até tão ou mais antigo que algumas outras línguas que chegaram lá devido à migração e ao comércio escravocrata, como o Tandá ou o Timené, vindos da Serra Leoa. Em 1900, o padre Marcelino Barros, um português preto nascido na Guiné, ao escrever sobre o kriol, que chamou de “guineense”, também referiu que se falava mais de 60 línguas diferentes por lá. Não sei se ele tinha contado também as línguas europeias que se falavam nos portos (uma vez que paravam em Bissau, por exemplo, navios de Havana, Holanda, França, Inglaterra e Espanha, normalmente com menos presença de Portugal) ou se apenas tinha referido as línguas africanas de povos com grande representação numérica. Hoje, essas mais de 60 línguas estão reduzidas a quase duas dezenas, algumas delas engolidas pelo kriol, que é a expressão máxima da “guinendade”, a cola do povo e o nosso maior símbolo identitário. Não há ideia da nação sem língua nacional, sem uma língua franca, não há o “ethnos” sem língua comum.
Língua franca
A escolha da língua da nação é mais política do que prática. Como decidir quais são as línguas nacionais, é pela quantidade dos falantes? Hoje, o wolof, uma das línguas francas do Senegal, tem uma grande comunidade de falantes na Guiné, talvez com mais número do que algumas outras línguas nacionais, como o djakanka, por exemplo, isso faz dele uma língua nacional? Tenho a minha própria reposta.
Amílcar Cabral achava que falarmos português facilitaria a comunicação e a ligação com os outros países amigos nascidos das tertúlias da Casa de Estudantes do Império. É uma questão prática e objetiva. No livro Análise de Alguns Tipos de Resistência, resultado da transcrição de discursos seus, Cabral chamou de oportunistas os que defendiam o uso do kriol como língua nacional e de ensino, porque o kriol não tinha ainda sido estruturado e sistematizado ortográfica e normativamente, chegando a perguntar como é que se diria “raiz quadrada de 36 e aceleração de gravidade em kriol”. (“Ris kuadradu di 36 ku silerason di gravidadi”, Cabral, não é por aí, empréstimos fazem-se.) O argumento é banal, mas a realidade é que fazer manuais numa língua não sistematizada numa altura em que era preciso ensinar e abrir mais mundos a mais pessoas e mais rapidamente, seria contraproducente, podia atrapalhar mais do que ajudar. O Português era mais prático e mais fácil. Para algumas crianças, que já tinham até estudado nas escolas dos missionários, o português era um tanto familiar, para outras tanto o kriol como o português eram línguas estranhas. Amílcar Cabral defendia que se devia aprender kriol, escrever em kriol, se assim se desejasse, mas insistia que era fundamental conhecer outras línguas, entendidas como ferramentas de comunicação. Acreditava na importância de aprender a língua do próprio povo, mas recordava que, se alguém soubesse ler e escrever em português, também poderia usar o sistema para escrever em balanta. Cabral comunicava em kriol com o povo.
A necessidade de uma língua franca aparecia sempre durante a guerra da libertação na Guiné, quando, como costuma contar Sana na N’Hada, um dos pioneiros do cinema guineense, uma reunião de poucos minutos levava horas, porque tudo o que se dizia tinha que ser traduzido em muitas outras línguas. A questão é que a língua franca ou a língua nacional única, acaba sempre por ganhar um peso económico e social, e leva ao apagamento das outras línguas. Dizemos que o foi o kriol que uniu as pessoas para a luta, mas isso não parece conferir com a história de Sana, muitas línguas uniram as pessoas, é o reverso da Torre de Babel. Se as lideranças falavam kriol deve-se ao facto de serem gente estudada e dos centros crioulos. Depois da independência, o kriol não era tão falado quanto agora, há um comício de Luís Cabral nos meados de 1970, que foi traduzido em pepel para que a maioria da população da região onde foi proferido o entendesse. Mas era preciso todos falarem kriol, para haver o sentido da nação (apesar dela ser representada pelo português). A rádio ajudou a espalhá-lo e a unificá-lo, porque as diferentes regiões tinham diferentes variações, ainda que ligeiras.
A ideia de uma língua nacional única traz consigo um desejo de unidade, para comunicar e celebrar coletivamente, porém, atrelado sempre à possibilidade de legislar e controlar. Uma língua hegemónica, seja ela de herança colonial ou não, facilmente se torna numa língua que vai apagar as outras, o que é visível no caso europeu, onde a multiplicidade linguística em toda Europa é mais pobre que na Nigéria apenas. A língua única estabelece a nação e a assume um valor público, político e económico. Contudo, afastar as pessoas dela, nem é justo, nem produtivo, porque é também alienar. Em vez de simplesmente rejeitá-la ou sacralizá-la, talvez seja mais útil disputar o seu uso, fazê-la soar à nossa maneira. Pensemos na língua como numa guitarra. Muitos povos pelo mundo têm o seu equivalente da guitarra, mas esta mais popularizada, a chamada clássica, é europeia, mas nem por isso deixa de tocar gumbé ou kunderé, conseguimos usá-la para fazer soar a nossa alma. Quando alguém toca uma música numa guitarra, passa-nos pela cabeça que ele está colonizado porque toca um instrumento “colonial” europeu, ou ouvimos apenas o mundo que nos oferece na linguagem que extrai desse instrumento?
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