Diário de um etnólogo guineense na Europa (dia 16)

Fascismocracia

Ultimamente a Tugalândia parece um matadouro: mataram o ministério da cultura, porque “esses artistas só fazem cultura marxista, pá, até parece que já não há artistas ricos, burgueses e da extrema-direita, pá!”; mataram a fundação da ciência e tecnologia, porque “há demasiados doutores, pá, e tudo a tesar sobre pós-colonialismos, pá”; mataram e matam casas de pessoas pobres, porque “nada pessoal, pá, mas essa merda dá votos, pá, sabem?, votos!, somos muito a favor da família, pá, mas só as famílias de bens, pá!”; mataram a educação sexual como disciplina da cidadania porque “epá, para quê gastar dinheiro nisso, pá?, os putos agora podem educar-se vendo porno em 8k na internet, pá”, mataram a renda acessível e as pessoas ficam sem casa, porque “epá, estamos a tentar ser sustentáveis, pá, e incentivar o nomadismo, pá, uma tenda é muito mais eco-friendly, pá”

Queria escrever sobre essas coisas também, mas como ainda tenho pendente o assunto da democracia na tuga, tenho de voltar a ele. Porque, no fundo, todas essas mortes de direitos e garantias não são casos ou acasos isolados, são sintomas de uma democracia ou exausta e exangue, ou em crise existencial, ou “jazem nos fossos vítimas dum credo e não se esgota o sangue da manada”, Zeca Afonso.

Na Tugalândia parece que se voltou ao velho discurso da santíssima trindade: “Deus, pátria e família”, repetem os salarazistas, “Jerónimo, pátria e família”, e todos ali na política têm a sua versão. A chave parece ser sempre “pátria e família”. Mas alguns garantem não serem nacionalistas, só patriota. O Tio Paulo Bano disse-me: “olha, sobrinho, isso de nacionalismo e patriotismo é como discutir se bacalhau é peixe ou é prato. O patriota chora ao ouvir o hino nacional, o nacionalista põe o hino a tocar. na sua própria pátria (e na dos outros), mas ambos colocam a mão direita no peito. Um é vinho de caju, adstringente e meio ácido, outro é vinho de palma, insuspeito e doce. Mas a ressaca, sobrinho, a ressaca é garantida seja qual for o copo que entornes”.

Os aspirantes à fascista assumem que odiar, maltratar e tirar direitos aos outros é um direito fundamental de um patriota nacionalista, mas queixam-se de perseguição quando lhe tocam nesses poderes. Vá-se lá entender! Dizem que os outros não são democráticos, porque não querem respeitar a vontade do povo que os colocou nesse lugar, e os outros dizem que eles mataram a democracia, porque não respeitam a constituição. E a constituição está nem aí.

E assim, em cada esquina um entendido, a democracia vai-se confundindo com rótulo e insulto: ontem tudo o que votava à direita era fascista; hoje já ninguém sabe onde começa o fascismo e onde acaba o extremismo de direita. Haverá diferença? Talvez. Mas se há grupos que se denominam neo-nazis, não conheço nenhum que se assume fascista.

Mas afinal, o que é fascismo hoje? Se fosse só autoritarismo, então o regime do Nicolau Imaturo, do Jinpingpong, do Merdogan, do Filha-da-Putin, do Jennifer Lopez Angolano, ou do Chefe-Único, entrariam na lista. A veneração do líder pela massa que antes também uma marca, hoje é difícil destrinçar dos selfies e hashtags nesta sociedade de autocultuamento. O Chefe-Único, todavia, faz questão de ter a sua foto em todas as instituições e espaços públicos. E o Vaticano? O tio Paulo Bano disse-me: “sobrinho, Vaticano não é fascista, é diferente, é pior, porque é eterno e globalizado, sem farda e sem tanque, mas com terço e cruz. Mussolini marchava, Hitler exterminava, o Papa benzia. O fascismo fala da pátria, o nazismo da raça, o Vaticano da fé, mas é tudo para ajoelhar e obedecer. O Vaticano não manda matar, só fecha os olhos e reza pelos mortos, e depois absolve os vivos, em nome do perdão.” Bem… A verdade é que sob a proteção da dita democracia, onde gente vota para escolher o chefe, vários países andam a estabelecer governos autoritários, nacionalistas e marciais, baseados nas leis dos próprios países. Fascismocracia? Aqui é o Tontura que cresce democraticamente.

Nos anos 1920, na Europa, tudo o que era mau era “comunista”. Nos anos 2020, tudo o que é mau é “fascista”… e comunista, para não variar. Em comum têm a gratuitidade com que se atiram os rótulos, sem grande cuidado ou conteúdo.  E enquanto se distribuem insultos, a prática política vai-se esvaziando: esquerda que derruba casas de pobres, em nome da reabilitação urbana; uma direita que se diz popular mas serve acionistas, neoliberais que se pintam de verdes para vender precariedade. Cafés hipsters cheios de stickers “antifa”, antirracista, antimachista, queer e progressistas, mas que ajudam a gentrificar bairros. Esquerda gold a fazer o trabalho sujo do capital, melhor dos que os trabalhadores de sol a sol explorados que, entre iludidos, desesperados e desinformados, votam em aspirantes a fascistas, julgando votar contra imigrantes. Democracia exausta, a esgotar-se em contradições. Não morreu, não vai morrer, porque é facilmente manipulável, e tem sido usada para colocar megalómanos no poder por todo o mundo.

Na Guiné, não é diferente, nesse país da melhor cultura do mundo, o nosso chefe bate em pessoas até no estrageiro, porque tem impunidade diplomática; e ao lado dele, temos um exército forte que põe e tira governos. Proibimos manifestações populares, proibimos concertações da sociedade civil, batemos em jornalistas, partimos estação de rádio, fechamos estações de comunicação que não temos coragem de partir, batemos em ativistas, sejam eles contra ou a nosso favor, mas, nunca, nunca, mas nunca mesmo nos chamam de fascistas. Quando muito, chamam-nos de ditadores. Só ditadorzeco. Por quê? Isso é injusto, desolador, descolonizem o fascismo, porra. Aliás, o Marmelo até condecorou o nosso chefe com uma medalha que distingue “quem houver prestado serviços relevantes a Portugal, no País e no estrangeiro, assim como serviços na expansão da cultura portuguesa ou para conhecimento de Portugal, da sua História e dos seus valores”, mas depois fica chocado quando esse expulsa a comunicação tuga lá da Guiné. Se isso não é fascismo…

Como disse, não conheço nenhum partido que se descreva como fascista na Tugalândia, contudo, talvez se deva ao facto de organizações fascistas serem expressamente proibidas na constituição tuga, pelo que têm que se mascarar de outra coisa, porque, pelo visto, há mais simpatia para os nazis, que até são convidados para a televisão, do que fascistas.

E já que falamos da constituição, se na Guiné ainda se discute o que significa, na Tugalândia eles sabem tudo sobre ela. Até o chefe tuga Marmelo Rebelde manda bitaites sobre a nossa, abençoando o nosso chefe, quando conveniente. Mas se nós não sabemos o que é constituição, parece que os tugas também não gostam de se levar a sério nessa matéria, só adoram exibir a sua para dizer que têm a melhor e a mais inclusiva do mundo. A minha constituição é maior que a tua. Mania de grandeza.

A constituição tuga diz que o povo é soberano e é dono do poder político, logo o Estado é de direito democrático (do povo, entenda-se), mas depois aceitam-se partidos que querem privatizar o Estado, anticonstitucionais por definição, ou partidos a declararem-se cristãos na praça pública, abençoando políticas ou com evangelhos ou com terços na mão, e que ainda citam a bíblia para decidir sobre a vida de pessoas. Se o Estado é igual para todos, por que é que ainda hoje uma mulher vai a tribunal e ouve de um juiz, como um tal Neto do Tio Moura: “epá, vens aqui queixar-te por quê, pá?,  só levaste pancada porque és generosa, pá, tem coisas que não se dá ao vizinho, pá, só o teu marido pode ir à Coina, pá”. Mas o Neto do tio Moura nem sequer é o único juiz que absolve agressores coitadinhos e stressados, casados com uma mulher independente e moderna demais para ser vítima. Parece que um punho cerrado de um homem tuga vale mais do que a dignidade de uma mulher. Uma tuga preta chamada Cláudia Simões pode explicar isso, ela percebeu que a lei olha não só para o seu género, mas antes de mais para a sua pele, para determinar a quantidade dos seus direitos baseado na melanina. Agredida pela polícia que supostamente a devia proteger. Também o Mamadou Ba, um tuga preto que leva com processos em cima por dizer que o racismo na Tugalândia é estruturalmente racista, mas o estado acha que isso é difamação porque o racismo tuga é só amoroso. Morrem pessoas nas prisões, como no caso de Danijoy Pontes, com doenças cardíacas espontâneas, e o governo assobia para o lado. Mas a constituição é a melhor do mundo… a melhor. Talvez textualmente falando, porque a realidade é toda outra. A constituição é tão boa que protege melhor os grupos que a atacam e fazem pouco dela e a querem alterar.

Na Tugalândia, há muita gente preta, mas só algumas trabalham no Parlatório. A maioria, mulheres, quase todas a fazer limpezas, as outras estão ali alinhadas à esquerda. Com exceção da Hossana Livre, que anda a tentar descolonizar a direita, para encontrar a sua cadeira no Parlatório, ou na Camarada Municipal de Lisboa. Essas mulheres dividem a Tugalândia, enquanto parte olha para elas como as “volta para a tua terra”, a outra fala da capacidade integrativa lusotropical. Representatividade representa atividade.

No dia da raça tuga, este ano, houve muita comoção, talvez por causa dos pretos e sulaziáticos, que até se discursou sobre a pureza do sangue. (Eu pensava isso de sangue puro era uma coisa só dos guineenses). O tuga sempre limpou as lágrimas do preto coitadinho, trazido à força das Áfricas, observou a Ilíada Jorge, rematando que na Tugalândia ninguém tem sangue puro. Muita gente bateu palmas, parecendo quase que ela tinha redesenhado a roda, algumas outras atiraram-lhe pedradas metafóricas, e tudo pela coisa mais óbvia. De qualquer maneira, é claro que nenhum tuga tem sangue puro, porque está tudo cheio de vinho verde… e antidepressivos.

Isto está difícil, continuo sem saber o que é democracia, e não me parece que alguém saiba, nem quem a inventou, nem quem a exportou, nem quem a aclama, nem quem a descarta. Talvez deva é ir na conversa do tio Paulo Bano, quando me disse: “sobrinho, democracia, fascismo, comunismo, capitalismo, regulundade, parecem religiões do estado, é só forma de te controlar e te dar um papel. Mas o importante é não virares papel também. Continua de carne, de riso e de raiva. Mas não te esqueças. Ideias bonitas não matam a fome na barriga, mas a fome mata ideias bonitas na cabeça. Luta, sobrinho, luta”.

Sim. É tempo de lutar. Mas basta de lutar contra. Quero lutar a favor. A favor do quê? É isso que falta descobrir neste matadouro Tugalândia onde a dita democracia é usada como cutelo.

por Marinho de Pina
Mukanda | 29 Setembro 2025 | Diário de um etnólogo guineense na Europa