Caro amigo racializado (da branquitude)
Caro amigo racializado, escrevo-te, digo, com o fito de esclarecer algumas dúvidas críticas intrínsecas da minha forma de ver as coisas. Não tenho forças para me aguentar nessas cordas onde baloiças, por isso faço uso destas prosas a ver se me concedes algumas respostas. Posto este aposto, avanço com as questões, que embora possam parecer determinações, garanto-te que não são, são meros pensamentos que precisam de acertos, e eu estou aberto a que me digas o correto. Perfeito? Feito!
Caro amigo racializado, sabes, entre alguns dizeres frequentes no discurso eloquente dos nossos batalhadores intransigentes, aparece presente quase sempre este: “todo o branco é racista”; e também este: “todo o branco é agente da branquitude”. Fazendo revista, eu acho isso um tanto fatalista e um tanto pejado de azedume, um pouco torpe e rude, porque põe sempre o branco no cume, dá-lhe um enorme volume, não importa se ele se cobre de perfume ou se consome estrume ou se batalha no sopé ou se rala lá no ré ou se trabalha no convés ou se fala lá da galé ou se é um tralha sem pé que rala como a ralé, ou se se agasalha sem estaminé, ou se exporta café. Eis o meu lamiré. Não, não importa, não, se o gajo chora sem pão ou se explora algodão, para ti todos os brancos estão no mesmo diapasão, e isso eu acho então que é coisa sem noção ou uma intenção de maliciosa razão.
Pois é, dizes que basta ser branco para ser racista, então em simplificações silogistas, um branco anti-racista ou é mentira ou é um branco sem auto-estima e é um branco contra si mesmo, a tomar veneno para um certo tipo de suicídio (da cor? da classe? da raça?), uma vez que o racismo, de acordo com o teu dito, é um hino do fatalismo: nasce-se branco, nasce-se racista, pronto, é o que se regista. Eis o pecado original a conspurcar a vida.
Acho que é normal concordar que o racismo é uma construção social, logo, como tal, da minha perspetiva (banal, vou afirmar), uma vez que é factual que ser branco não é um estado social, mas natural, porém, é consensual, suponho, que o racismo é artificial e a branquitude é artificial, então quando se nasce branco, nasce-se apenas branco, porquanto ninguém escolhe a sua pele (tirando Michael Jackson, é claro, e um par deles, mas é raro).
Não quero fazer de advogado do diabo, porque sei de que rabo o fogo dá cabo, mas ainda assim, mano, acho que temos que adequar as falas e os planos, porque também o privilégio não deve ser ausente de contexto. Há mundos e mundos, há fundos e fundos, uns mais rasos, outros mais profundos, mas em todo caso, são todos buracos e são tantos buracos. Há quem tenha tanto, há quem tenha só nacos, e há também brancos muitas vezes a rolar em fezes mais do que negros guineenses. Quando não olhamos de forma vesga há sempre uma nesga de diferença que geralmente não vemos.
Caro amigo racializado, creio de facto que nascer branco não é nascer racista, por mais que insistas nesse ponto de vista. Se todo o branco é racista qual é o ponto da luta anti-racista? Ser uma espécie de conquista genocida? Se todo o branco é racista, acabar com o racismo é acabar com os brancos, uma vez que não há educação possível para acabar com a cor ou mudar a história (senão a memória), e assim o anti-racismo parece uma luta inglória. Além do mais, meu rapaz, a branquitude vai para além da cor. Já me explico melhor, controla o fervor.
É que o racismo é sistémico, mas o racismo não é o sistema, o sistema é racista, mas o branco não é o sistema. Há brancos, que apesar de privilegiados pelo sistema da branquitude, têm melhor atitude e senso de virtude sendo menos racistas, criando menos problemas a gente negra nesta cena do que muita malta preta que carrega o tema como emblema. Há malta branca que aplica os seus privilégios na luta anti-racista de forma mais precisa do que muitos brodas e muitas sistas anti-racistas. Aliás, quantos pretos não conhecemos que carregam a bandeira como maneira de fazer carreira e ganhar só a sua parcela? Estão sempre de livro aberto, mas tornando-se no pleito com os pretos mais colonialista do que aquele que critica. Quanto pretos não conhecemos nas nossas Áfricas que são mais agentes da branquitude do que muitos brancos? Por exemplo, achas que a Isabel dos Santos poderá usar os prantos e os desencantos de uma negra a quem o mundo quase tudo nega, sem ser pega a ser ridícula? Achas que ela poderá usar o discurso de “privilégios” só por causa da sua pele negra e da sua africanidade?
Voltando atrás, nem todos os brancos são racistas, e ser preto não significa não ser racista, pois todo aquele que reproduz a prática, não importa a cor da pele que o cobre é um agente torpe deste sistema podre. A branquitude e o racismo por vezes se confundem, por vezes até se fundem, mas são distintos e cada um com o seu mecanismo.
Quando contextualizamos a luta apenas na Europa branca, eu concordo e concordo e concordo contigo, sem esperança: o privilégio é branco e o beneficiário da branquitude é maioritariamente branco. Mas a África não está fora dos grilhões da branquitude, porque a branquitude é mais do que a cor branca, a branquitude não é sobre indivíduos nascidos de motivos biológicos não decididos por eles mesmos, mas sobre o sistema que opera na base de uma regra odienta que cega e nega afeto ao mundo preto. Porém, paradoxalmente, há pretos que têm benefício com isso. A branquitude usa o racismo para operar e segregar; e o racismo, apesar de branco (se falarmos só da Europa, porque, caro amigo racializado, temos a China ali ao lado também a racializar-nos), o racismo opera noutro nível, controlando povos e economias, mas concentrando-se mais na cor.
A branquitude é uma prática que ultrapassa a questão da pele, a branquitude incute uma falsa virtude que se nutre de privilégios e de classismo (também espelhos de racismo), ou da dita educação ou dum padrão de viver e de ser, chamado europeu, dito para iluminar o breu e que é atirado com escarcéu para educar o mundo plebeu e enfiar-lhes pelo reto adentro o chamado desenvolvimento… sustentável(?). O próprio Fanon que tanto se cita que até irrita também isso indica quando critica as máscaras brancas.
Podem até ser idiotas estas minhas notas, mas creio que:
1. Quando reproduzimos os padrões e ensinamos as lições que reforçam a razão do poder capitalista ocidental, estamos a propagar o sinal com essa atitude e a reforçar a branquitude.
2. Quando fazemos galas em salas largas e amplas para criar escalas para medir pessoas negras e comparar-lhes as talas e premiá-las com medalhas dadas por ditas batalhas ganhas em áreas criadas para uma “elite” branca, criando também os nossos negros premiuns, não estamos senão a brincar à branquitude.
3. Quando, por exemplo, na África, alteram-se práticas e sustentam-se práticas que no fundo são táticas de criar dinâmicas para manter as classes estáticas, mas todas elas baseadas nas escalas ocidentais, reforça-se a branquitude. (Atenção, contudo, não foi a branquitude que inventou as castas, e as castas até são mais dinâmicas na Europa branca e em culturas ocidentais do que em outras culturas africanas e ditas “ancestrais”).
4. Quando um preto facilmente se ilude e, em nome da educação e da saúde, ou da economia e outras vicissitudes, cria taludes em várias amplitudes para canalizar através de ONGs ocas a postura hegemónica e económica da Europa e do Ocidente para aplicar sobre a sua própria gente, amiúde reforça é a branquitude.
5. Enquanto a economia continuar a ser controlada pela Europa, e todos os nossos passos são desenhados lá fora, e somos obrigados a fazer a dança, com pessoas das nossas próprias casas a impor-nos essas taxas, sipaios modernos chamados de banqueiros e governos, não escapamos da branquitude.
6. Enquanto as nossas práticas económicas são subvertidas para podermos figurar nas listas de PIB, com códices estranhos e índices não claros e outros indicativos e paliativos estabelecidos pelo FMI e o Banco Mundial e com ânimo alteramos as práticas económicas a troco de dinheiro, para os nossos mealheiros, esquecendo que a nossa gente se gere à base de uma economia diferente, tornamo-nos agentes da branquitude.
7. Enquanto a universidade continua veementemente a ser controlada pelo ocidente, com os saberes africanos a serem chamados de locais, e os saberes ditos universais são aparentemente ocidentais, e não criarmos e alimentarmos sistemas paralelos, mas continuarmos a falar da UNIversidade, em vez de PLURIversidades, MULTIversidades ou TRANSversidades, vamos continuar na corda branquitude.
8. Enquanto ainda os nossos diplomas são mais válidos quando mais válidas são as universidades ocidentais que os emitem, e enquanto não os paramos de exibir de modo egoísta todo orgulho das nossas conquistas aos nossos conterrâneos que não tiveram a dita, como gente mais benquista, superiora e mais merecedora de glórias, somos agentes da branquitude.
9. Enquanto as nossas religiões continuam centradas num deus branco, não importa os sincretismos e apropriações, continuará a ser o mimetismo das religiões brancas, e estaremos sempre nas camadas mais rebaixadas.
10. Enquanto tu e eu lutamos para melhorarmos a nossa condição e situação económica aqui na Europa, mesmo sabendo que essa riqueza pela qual pedimos melhor distribuição é canalizada através da exploração das nossas áfricas, estamos a ser tão hipócritas quanto.
Caro amigo racializado, só para deixar claro o que eu acho nesta missiva: nascer branco não é nascer racista; o preto também pode ser agente da branquitude, com vaidade ou platitude, consciente da atitude ou um inocente que se ilude. Por isso acho que epítetos fatalistas não servem o movimento anti-racista, porque não foram os pretos, nem foram os brancos, que andaram durante todos este tempo a dar o litro para criar filtro e resolver este problema criado pelo branco (aqui estamos concordado), porque tanto pretos como brancos estavam e estão resignados com o estado do cenário, no entanto, foram pessoas, almas humanas (também más e também boas), mas conscientes e iradas, valentes e desapegadas, dos dois e mais lados que batalharam do mesmo lado como aliados. O mesmo que disse ao amigo guineense, também aqui vale: “O conflito para a libertação da Guiné não foi feito apenas por pretos, mas na revolução entre os sacrificados houve também brancos; e a lutar para manter a colonização, confirma a afirmação, estavam também pretos e ainda estão pretos, disso podes certo.”
Caro amigo racializado, já ambos estamos cansados, por isso rematando, quando conversar sobre racismos, branquitudes e privilégios, não te esqueças nunca de criar contextos, não repitas os mesmos ditos como se fossem vícios, não fales do sistema como se operasse e oprimisse de modo igual em todos os sítios, sem fitos e nem tipos, ou como se o contexto dos pretos nos EUA fosse igual ao dos pretos em Portugal e destes ao dos pretos no Brasil e daí ao dos pretos na Guiné.
Vou parar por aqui, mas como quero ainda conversar contigo sobre o dito “lugar da fala”, não é aqui que este exercício de raciocínio acaba.