Diário de um etnólogo guineense na Europa (dia 15)
15 de julho - democracia à brás
Foram os tugas que levaram essa coisa chamada democracia para a Guiné. Talvez seja por isso que nós temos um problema sério para saber o que significa, porque as nossas assembleias eram diferentes. Eu tinha muitas esperanças de, ao estudar a raça tuga, finalmente entender o que é a democracia, mas penso que nem eles sabem. Usam o termo quase indiscriminadamente, mas para validar a própria opinião. Quando há concordância há democracia, se não, é extremismo. Por vezes fico sem saber qual dos termos é mais vandalizado, se o amor, se a democracia ou se a descolonização. Eu disse três? Vamulá só ver, parece que os três só existem quando favorecem a quem os reclama, todos dizem exercê-los… mas à sua maneira, claro.
“Mas isso não é uma coisa só dos tugas”, disse o tio Paulo Bano, “é do mundo todo. A diferença é que os tugas pensam que descobriram o mundo todo”.
Os tugas fazem eleições e dizem que é isso é democracia. No tempo da ditadura, Sailazar também fez eleições, mas não deixou os comunistas concorrer, porque esses não eram… democratas?… mas ditadores. “Olha a CCCP do Está-Ali-Né, pá, olha o Mau Tsé-Tsé-Tung, tudo ditadores corruptos, pá, anticapitalistas, pá”. Bem, nem sei se a Tugalândia Salazarenta se descrevia como capitalista ou mesmo como fascista, mesmo tendo a fatiota vestido. O Santo António Sailazar até chegou a criticar o Benito Messalina e o seu fascismo italiano, no estilo, o meu é melhor que o teu. Sailazar defendia a autonomia económica, chupando a África para isso. “Portugal não é um país pequeno, pá, é um país de camponeses, pá, de mão de obra barata lusotropicalista, pá, querem ir lavrar na África, pá?, vão pá, emigrem, pá, lavrem aquilo tudo, pá”. Antecedeu ao Caço Coelhos por alguns anos, embora este nem projeto tinha, só queria expulsar os jovens da Tugalândia ao mandar-lhes emigrar. De qualquer maneira, não era novidade, a colonização começou com o envio de gente pobre em barcos para outros mundos. Talvez Caço Coelhos quisesse começar um novo descobrimento das Europas.
Há quem diga que os “comunistas” da CCCP (Cuidado Com os Camaradas do Partido) também eram fascistas, porque usavam a figura do grande líder e o projeto de uma nação sem partidos concorrentes, controlando o bolso de toda a gente, afirmando-se, de peito inflado, antiliberais e anticapitalistas, ajudando colónias africanas a libertar-se, enquanto preservava as suas na Ásia. Eram internacionalistas. Mas a coisa é que o fascismo defende a nação, fasces, feixes, “o povo unido jamais será vencido”, com um Estado em esteroide, uniformes bem passados, marchas coreografadas, monumentos de betão, megalomanias fálicas, um grande líder que grita muito para mandar os outros calar. Odeia o comunismo, cospe no liberalismo, mas amasia-se com o capitalismo. O capitalismo, no entanto, defende o mercado, um coliseu com tubarões a engolirem-se, procurando ser o último tubarão mais gordo do aquário, milionários a apostar alegremente, enquanto o povo se canibaliza em seu nome, agitando marcas e logos. Odeia o comunismo e o anarquismo, chama-os de fascistas a todos, e gaba-se de ser ele a ir para a cama com a democracia, embora lhe roube a carteira sempre que ela ressona, e não lhe conta que se deita também com o fascismo. O liberalismo, braço armado do capitalismo, vem com as frases “cada macaco no seu galho”, “cada um se autogoverna”. Diz que defende o indivíduo, mas defende é o indevido, pois para ele o indivíduo é o rico, o resto, estatística… o povo. Logo, o rico governa, o povo paga a conta, vota no indivíduo e aplaude o circo, ou se cala e grita, ou se manifesta na rua, mas volta orgulhoso para a casa à noite e come a sopa. Exalta a propriedade privada, mesmo que isso seja privar os outros de propriedades. Adora o Estado quando é para tapar buracos e salvar bancos, mas odeia-o quando é hora de pagar impostos e de prestar contas, vê-o apenas como guarda da propriedade privada (não admira que a PSP trabalhe a guardar cadeias de supermercados, enquanto os nossos impostos lhe pagam o salário). Sonha privatizar o próprio Estado e vendê-lo na bolsa de valores. O socialismo, por seu turno, defende que os meios de produção devem ser da sociedade, não privados, mas o Estado decide quem é a sociedade. Bora, trabalho digno, mercado domesticado, impostos redistribuídos. Escola, saúde e pão… e algum circo. Mas o que se viu foi: o grande líder, comités, chefes, burocracia e censuras brutais. O povo, todavia, nivelado por baixo… olé! O comunismo, irmão mais velho do socialismo, diz que é para entregar o poder ao povo, sem Estado, comunizar tudo, mas precisa do socialismo para lá chegar. O anarquismo diz “nada! o poder absoluto corrompe, assa, luta e mente. Bora pra lá sem chefes”. O anarquismo não quer nem patrão, nem Estado, nem polícia. Horizontalização absoluta, erradicação de hierarquias, cooperação livre. “Vocês não brinquem comigo, querem sociedades iguais e justas mas andam sempre a dizer Estado pr’aqui, Estado pr’ali e Estado pru-num-sei-onde, não vêm que a hierarquia é o problema? Olha lá a quantidade de vezes que o Estado aparece neste texto, bolas!” Estado nada, apenas comunidades em autogestão e assembleias realmente democráticas. Se é para ordenar e organizar, que venha de baixo. O anarquismo basicamente quer o mesmo que o comunismo, mas diferente forma de lá chegar.
Em modo de conclusão, o capitalismo e o liberalismo são grandes brodas, sequestraram a democracia e violam-na. O comunismo e o anarquismo rejeitam-nos a ambos, e andam em poluições noturnas com a ideia de sociedades sem classes, planificadas ou livres, mas sempre igualitárias. O fascismo enterra a democracia, nega o comunismo e o liberalismo, mas faz juras de amor ao capitalismo sempre que convém, tudo em nome do interesse nacional, disciplinado pela força do Estado… como na China, Rússia, Venezuela, Hitlerlândia, Steites, Angola, Guiné, não?
O liberalismo exalta o indivíduo, o fascismo exalta a nação, o comunismo exalta a classe, o anarquismo exalta a comunidade, o capitalismo exalta o mercado. O povo, coitado, exalta seja qual for a mão de ferro que lhe aperte o pescoço, sempre dentro da lei, saindo “à rua de cravo na mão a horas certas, né, filho?”, José Mário Branco. E o povo diz: “o Estado somos nós”… Que confusão! Quer’zer, se o Estado somos nós, então, como Estado tuga, participamos todos no holocausto que o Israel promove na Palestina, e também no negar de vistos aos meus patrícios na Embaixada Tuga na Guiné, e no deportar das pessoas da tugalândia para as “suas terras”? O triste é que a maioria dos deportados é gente pobre e sem terra na sua terra. Vão voltar para onde?
O tio Paulo Bano disse-me: “sobrinho, esquece. Nós não somos o Estado, porque o Estado recebe um salário e benesses e nós não. O Estado toma decisões sobre nós e nós não tomamos sobre ele. O Estado só gosta que digamos isso para nos sentirmos importantes e o deixarmos em paz para nos continuar a montar. Sobrinho, o Estado não vai desaparecer porque o povo não foi votar.” É verdade, Marmelo ganhou a chefia da Tugalândia com 60,7% de 23,6% de eleitores, ou seja, aritmeticamente falando, o povo não o quis…
Bem… continuando. Basicamente, todos esses sistemas acima são democráticos… e se fizerem eleições, mais democráticos ainda. Parece que a democracia é só fazer eleições… os jornalistas poderem escrever, as pessoas poderem ter blogs e escrever coisas nas redes sociais, e o povo poder juntar-se sem a polícia prender ninguém (a não ser quando são pretos ou sulaziáticos, que esses são facilmente encostados à parede), mesmo que falte pão e casas, e as barracas que dão socorro estejam a ser demolidas. De qualquer maneira, é tudo sistemas europeus de governar o mundo.
Na Tugalândia acreditam casapiamente que vivem em democracia porque regularmente vão a festivais de verão. É como nós na Guiné, só que lá a nossa democracia é ancestral, o que leva os governantes a pensarem que são régulos ou descendentes de reis e rainhas, e logo tiram os direitos ao povo, em nome da dita democracia… e do próprio povo.
A democracia parece receita de bacalhau, cada um tem a sua.
Bolas, já vai tarde, continuo isto depois.