Quantofrenia desmedida

O colonialismo foi feito a medir.

Como exibir materiais problemáticos de uma época problemática sem ser problemático, ou sem problematizar? Aparentemente, não há como. Porque, uma vez na posse dos materiais, passa-se a ser parte do problema. E o próprio gesto de expor, de mostrar, de revelar, de tornar visível, de exibir, é em si mesmo uma continuação do mesmo impulso que os produziu.

Exibir é medir. E, aparentemente, só é real aquilo que pode ser medido. Massa. Volume. Temperatura. Largura. Popularidade. Voto. Beleza. Quociente de inteligência. Até mesmo a intensidade do amor. Mediram-se terras. Mediram-se corpos. Com réguas e esquadros: a cabeça, a bacia, o pénis, as mamas, as nádegas. Criaram-se padrões, e tudo o que estivesse fora era desvio, exceção, portanto espetáculo. Era para ser exibido.

O colonialismo foi feito a medir. Colonialismo à medida. Cartografar, classificar, mensurar. Só se domina o que se conhece. Todavia, a medição não foi invenção do colonialismo. Sumérios, babilónios, egípcios, incas, astecas, todos mediram. Mediram o tempo, o mundo, agrimensuraram e codificaram ângulos, horas, minutos, semanas e calendários. Mediram triângulos ainda antes de Pitágoras ter começado a sonhar com eles. O projeto colonial apenas seguiu essa pulsão, colocando-a ao serviço da hierarquia. Medir para reinar. Exibir para confirmar o poder.

Hoje, a obsessão continua, mas disfarçada de neutralidade tecnológica. Máquinas medem por nós, com a nossa permissão. Damos-lhes os nossos dados biométricos através de telemóveis, relógios, câmaras e microfones. A existência continua a ser traduzida em número. Pitágoras dizia que o número é o elemento primordial das coisas. Hoje, quem lê o número vira deus, porque o número revela. Ou melhor, transforma a vida em dado, em capital, em instrumento… os códigos da Matrix.

É dentro desse mesmo impulso quantofrénico que se abrem, agora, arquivos coloniais. Exibir mais. Mostrar mais. Acumular mais. Como se a saturação visual fosse, por si só, crítica. Como se “abrir o arquivo” fosse suficiente para descolonizar.

Exposição “O Impulso Fotográfico. (Des)arrumar o arquivo colonial”

Em 2022, fui convidado a fazer parte da curadoria de uma exposição que viria a ser intitulada “O Impulso Fotográfico. (Des)arrumar o arquivo colonial” (ainda em exibição no Museu Nacional de História Natural e da Ciência… aproveitem!). Reuniram-se académicos, ativistas e artistas (alguns deles A3, pessoas que juntam as três valências). A proposta era precisamente essa: abrir arquivos coloniais e convocar o passado para falar da contemporaneidade. O resultado, previsivelmente, foi uma instalação multifacetada, heterogénea, por vezes até contraditória. Ao visitar a exposição, salta à vista essa multiplicidade de vozes: há abordagens didáticas, outras mais expositivas, outras ainda mais abstratas ou sensoriais. Mas essa falta de coesão era também o seu maior valor. Porque, quando pessoas com origens e percursos distintos começam a expressar-se todas da mesma maneira, a concordar em tudo, no mesmo tom e no mesmo lugar discursivo, é sinal de que talvez só uma delas esteja, de facto, a pensar. Ou que o espaço de partilha foi domesticado pelo silêncio.

Não se trata de negar que, num grupo, possa emergir uma ideia mais sólida, que reúna consenso. Trata-se de garantir que esse consenso nasce do confronto honesto e da escuta ativa e não de uma assimilação estética ou política que apaga diferenças em nome da harmonia.

A exposição foi um gesto coletivo que carregava a pergunta inevitável: como descolonizar sem se desfazer do material colonizado? Ou, mais radicalmente: exibir processos de colonização é, por si só, um ato de descolonização? 

Quando Portugal, nos seus manuais escolares, “exibe” a sua história como uma saga de “conquistas” e “descobrimentos”, e fala do uso de gado humano para encher navios e alimentar o comércio transatlântico, estará a descolonizar? Quando instituições decidem abrir os seus arquivos coloniais a artistas e investigadores, sob o pretexto de “reflexão crítica”, estarão a descolonizar? Creio que descolonizar exige mais do que expor, criticar ou revisitar. Mas o que tenho por certo é que, quando a exibição terminar, os materiais regressam ao mesmo lugar de onde vieram: aos arquivos do Museu Nacional de História Natural e da Ciência. Voltarão a ser arrumados, classificados, guardados, sob a tutela do Estado que os compilou. Não regressam às pessoas sobre as quais falam. O gesto de abertura acaba por ser apenas isso: gesto.

E aqui vai mais um rol de perguntas: quem tem autoridade sobre essas imagens? Os familiares de “Rosinha” ou “Rosita” (não foi exposta aqui), por exemplo, podem recusar a exibição da sua imagem, mesmo quando a mostra se diz crítica, artística ou decolonial? Há espaço, nestas práticas, para o direito ao silêncio? Amnésia? Recusa?

foto de Nina Amelungfoto de Nina Amelung

[workshop ‘COLONIALISMO.2 A ANCESTRALIDADE COLONIZADORA’ em junho de 2023, facilitada pelo autor do texto, parte de uma das várias ativações da exposição]

Tornar tudo visível, legível e mensurável 

A quantofrenia, essa obsessão por tornar tudo visível, legível, mensurável, raramente escuta. Raramente cede. E descolonizar pode ser exatamente isso: abdicar do impulso de medir. Desistir de catalogar. Permitir que haja zonas de sombra, espaços de não-saber, memórias que não precisam de ser expostas para serem reais. Porque a simples abertura do arquivo não é descolonização. É, quando muito, um gesto ambivalente, a balançar entre a denúncia e a perpetuação. Quantas exposições já usaram imagens coloniais para as criticar, sem nunca procurar saber mais sobre quem foi fotografado? Sem perguntar: devem estas imagens continuar a existir? Devem ser mostradas? E, se sim, em que condições? Com que dispositivos de escuta, com que mecanismos de restituição simbólica… ou material?

Abrir um arquivo pode ser só mais uma forma de o fechar, agora sob nova linguagem. Cada arquivo aberto, sobretudo por nomes reconhecidos (a fama também se mede), reforça o prestígio da instituição arquivista, legitima a sua continuidade, alimenta o seu capital simbólico e económico. Um gesto que parece reparador, mas que frequentemente serve apenas para reproduzir a mesma prática, com um vocabulário suavizado.

Que bem traz essa abertura de arquivos coloniais aos povos dos sítios de onde vieram os materiais? Nenhum. Porque esses povos nem sequer sabem que os arquivos existem. E vão continuar sem acesso, sem agência, sem poder sobre os conteúdos. Não foram informados. Nem vão ser. Não foram escutados. Nem vão ser. Muito menos envolvidos.

Andamos todos num frenesi de paparazzi históricos: quem será o primeiro a abrir um arquivo e a exibi-lo, quem leva os créditos de conseguir aquele arquivo difícil e dado como perdido. E pensamos que trazemos mais luz ao mundo só porque celebrizamos gentes mortas em arquivos defuntos.

O pensamento não precisa de documento para existir. E, às vezes, o pensamento começa precisamente no lugar onde se desiste de medir.

As perguntas que se discutiram durante a curadoria foram não apenas “como exibir”, ou “se se deve exibir”, mas também, “em que condições” e “com que critérios”. Como mostrar que não se sabe tudo, que não se mediu tudo, que não se exibiu tudo? E o resultado foi aquilo que se viu, o euróboro a devorar a própria cauda. Não se descolonizou nada, mas não faltou vontade. Afinal de boas intenções está a descolonização cheia.

por Marinho de Pina
A ler | 18 Maio 2025 | arquivo, colonialismo, exposição