Diário de um etnólogo guineense na Europa (dia 9)

Filha da gula


Os tugas adoram comida.

A comida da Tugalândia está entre a melhor comida do mundo, dizem eles. Os meus colegas da obra costumam gozar comigo de que todos os meus pratos da Guiné se chamam: “arroz com…”, e que não sei diversificar. Mas não acho a comida tuga que eles pedem também assim tão variada, porque é sempre “pizza com…”, e pastel de Belém não é comida.

O que reconheço é que os tugas têm muita comida, tanta comida que não sabem o que fazer com ela, que até a deitam ao lixo. Eu agora vou ao lixo das suas tabernas grandes procurar comida, muita dela em boa condição, poupo imenso dinheiro. Os tugas têm tanta comida que até a expõem em montras, e as tabernas até têm cheiro falso de comida para te abrir mais o apetite. É como se te dissessem, “Olha lá, pá, nós temos muita comida, pá, se estás a passar fome é porque não tens dinheiro, pá, e se não tens dinheiro é porque não queres trabalhar, pá. Trabalha para comer, pá!”

É assim mesmo, aqui é tudo abundante, e quando não podes comprar, a culpa é tua, ou porque não quiseste largar o teu emprego de merda e procurar outro melhor ou porque foste estúpido ao escolher a barriga errada para nascer. E a comida é tanta e tão desperdiçada para também te poderem dizer: “Ah, achas que a Europa está mal?, vai então para África passar fome, caralho, seu amante de King João Um, pá”.

Como há muita comida aqui na Tugalândia, os que nadam nesse excesso ficam com muito tempo livre e por isso, alguns tugas brancos andam a fazer cosplay de pretos, como uma tal Irrita Peneira, aquela que não sabe peneirar as coisas. Ela é uma tuga cigana aficionada da feira de Carcavelos e que outros tugas ciganos muito alegres e respeitosos querem comer… casar, casar, querem casar… e que desde que ouviu kizomba e o Dino Santo Largo, descobriu que afinal provavelmente não era cigana, mas negra. Também alguns tugas pretos, de barriga farta e com muito tempo de sobra, correm de pedras nas mãos atrás da Irrita Peneira a dizer que ela é irritante e que não é uma preta autêntica, num ato tão vazio e inconsequente, que só dá para responder: “Duhhhhhhhhh!, mas não é óbvio?, ela é cigana”.

O tio Paulo Bano disse-me que quem devolve pontapé ao burro é mais burro do que o burro. Por isso eu não vejo problema em Irrita fazer cosplay, afinal ela é cigana. A coitada não sabe distinguir que blackhairing pode ser tão problemático quanto blackfacing, principalmente quando feita em homenagem a pretos e com uma música a dizer “eu sou preta para os brancos”, embora o carnaval já tenha passado.

O problema começou quando uns tugas pretos e uns pretos não tugas e uns tugas aficionados a pretos ficaram irritados com a Irrita e disseram-lhe: “Toma tento, pá, Irrita, para lá com apropriação cultural, pá!”. E toda a sociedade tuga branca levantou-se em defesa da Irrita e gritou: “Isso é racismo, pá! Estão a racismar a Irrita, pá. Ela só está a mostrar que é ‘Black’s Wife Mother’. Não se trata de ‘apropriação’, pá, mas de ‘a própria ação’. Foi a própria Irrita quem fez a própria ação, pá”. E pronto, arrebentou.

Então aquilo não era mais só sobre o cabelo da Irrita, mas da letra da Irmã, uma freira dálmata, que odeia etiquetas mas que se afirma filha da tuga, e ela é mesmo filha da tuga, o que se percebe quando fala da descoberta1, onde mostra toda a sua tugalidade e o seu orgulho descobertor.

Isso dividiu muito a malta, porque alguns começaram a dizer que a Irmã, a ser preta é uma preta premium, não uma de verdade (pois, é o que ela disse na sua música), e que ela se dizer dálmata é piada de mau gosto. Outros acharam a Irmã se dizer orgulhosamente dálmata é muito mau, pois é equivalente a confirmar que adorou as violações que aconteceram há muitos anos (como se as violações tivessem acabado ali), num registo que parece dizer que todos os mestiços que pululam por esse mundo fora, filhos de mistura, são uns coitadinhos frutos de violação. (Mas todos sabemos que o colonialismo tuga foi a maior fábrica de mulatos de todos os colonialismos2). E outros ainda falaram também que a Irmã se dizer tuga é o mesmo que ela se dizer colonialista e fascista.

Eu fiquei muito confuso, porque pensava que andava aqui a estudar os tugas, afinal só estou a estudar os colonos e os fascistas, e fiquei ainda mais confuso por causa dos tugas pretos que também estudo cá, serão esses colonizadores ou colonizados? É assim, eu cheguei aqui a pensar que todos os brancos eram tugas, e só os brancos eram tugas, depois fui descobrindo que há tugas pretos, e agora de repente dizem-me que tuga afinal é colonialista fascista. Que confusão! Acho que já foi um dia, mas já não é mais isso que significa tuga. Se filha da tuga tem de ser vista como filha de colono fascista, então filha da puta provavelmente devia ser entendido como filha de mulher jovem. Ou serão que os termos não mudam de significados? Ou serei eu que ando aqui a dizer sacalatas?

Era bom que o filme acabasse aqui, mas não, os tugas brancos foram logo chamar outros tugas brancos e levaram-nos à televisão para explicar aos tugas como os tugas pretos não sabem nada do que falam quando dizem que a Irrita faz cosplay, é só apreciação, como quando o primeiro-ministro tuga canadiano, o Justino Atordoou pintou a cara de preto, porque apreciava-os muito. Bem, confesso, claro que não é do mesmo nível. Mas quando há problemas, deixem falar o queixoso. Mas não, nada. Não levaram também para a televisão os tugas pretos para explicarem a razão de se sentirem ofendidos. E pelo falamento dos tugas brancos, também não me parece que eles achem que a Irmã seja preta, porque só falam dos avós dela.

Muitos tugas brancos começaram a chamar a tugas pretos de exagerados e de “apropriadores culturais reversos”, porque os pretos também alisam o cabelo e ouvem músicas da Amália Rodrigues dos Santos e dos Meninos d’Avó Cantigas. Então, zumba, pumba, catrapumba, a confusão instalou-se.

Como disse antes, acho tudo isto um problema de excesso de comida. O meu conterrâneo, Marinho que Pina, diz: “Quem não tem nada na barriga, não caga sequer uma lombriga e usa o seu tempo de vida para procurar comida. Mas nós, de barriga cheia, volta e meia vamos cagar, e cagamos à beça que até cagamos o que temos na cabeça. Por isso é que ficamos nessa sem merda nenhuma na cabeça!”

Os tugas têm tanta comida que não sabem o que fazer com ela, por isso agora até vendem uma coisa que eles chamam de “jejum impertinente”, que é passar fome de propósito, porque há muitas crianças na Ucrânia sem comida. O tio Paulo Bano Bajanca disse-me uma vez: “Sabes, só pessoas com muita abundância é que se podem dar ao luxo de brincar à fome. Quem, mas quem iria passar fome de propósito quando não sabe quando terá a próxima refeição?” Os tugas dizem que não comer faz bem à saúde e ajuda o corpo a curar-se, talvez seja a razão pela qual as crianças que passam fome em campos de concent… desculpa, campos de refugiados… as crianças em campo de refugiados estão tão saudáveis, que até ficam com os 24 pack à mostra (ou as costelas não contam como pack?).

Os tugas adoram comida, mas como a têm demais, todos esses filhos da gula, orientam a sua gula para outra coisa: laiks no facegram. Irrita Peneira é tanto uma filha da gula, quanto a Irmã que quer navegar na onda da série Post-Colonialism is the New Black, parecendo que ser vítima é supertrendy e não um sofrimento. E também são filhos da gula os pretos tugas que querem reclamar para si os laiks obtidos em seu nome. É tuuuuuuudo filhos da gula. Andam todos numa de rapo o tacho, vai acima e vai abaixo, como se houvesse escassez. Que raiva!

Pelo que me falaram, nunca a questão do cosplay de preto, ou da apropriação cultural, foi tão discutida na Tugalândia como nos dias de hoje. Acho até que podemos começar a falar de “PÓS-IRRITAPENEIRISMO”, a charneira sobre a questão do cosplay de pretos em Portugal. Quem sabe não se vai começar um festival. Por isso até concordo com a D. Teadoro quando falou que no futuro, vamos ler nos ânus da história que a Irrita Peneira foi uma impulsora do movimento sobre a questão de a própria ação.

Repito, achei exagerada a reação à Irrita, quando ela só procurava fazer jus ao seu nome. Contudo, achei também supersimplificado e exagerado o levantamento popular tuga em nome da Irrita, com os tugas brancos a dizer, “Eh pá, é tudo sobre cabelos, pá, comprido ou curto, é cabelo, pá, crespo ou alisado, é cabelo, pá, é nada, pá”. Não, não é assim. Não é simples assim. A Irrita a fazer cosplay de preto e a sua Irmã, que só à noite é como todos os gatos, a brincarem à gente oprimida e com coisas que fazem outras pessoas sofrer é minorar a queixa dessas pessoas minorizadas. Apropriação cultural? Sei lá.

O tio Paulo Bano contou-me uma vez: “Na Guiné, os tugas diziam que o cabelo liso é que era cabelo de qualidade e que o cabelo dos pretos era carapinha, kabelu bedju, logo não prestava. Os penteados das brancas eram penteados civilizados, mas os penteados dos pretos eram ‘tribais’”. Acho que foi isso que levou as pessoas a começarem a alisar o cabelo e a tentarem ser civilizadas pelo cabelo.

Então, para simplificar, as pretas a alisarem o cabelo não é apropriação cultural, é opressão cultural, é dizer-lhes “aquilo com que nasceste, não presta, pá, por isso vai à Babilónia, pá, vai comprar cabelo humano, pá.” É isso, uma preta a alisar o cabelo pode ser opressão cultural, a Irrita Peneira a fazer tranças é só Irrita. Se é apropriação não sei, mas concordo com os outros, é a própria ação.

O tio Paulo Bano disse que não entende muito bem sobre essa coisa de apropriação cultural, mas acha que tem a ver com o facto de os tugas na Guiné terem envergonhado e minorizado os nossos povos sobre as nossas culturas, só porque tinham poder para isso. E, de repente, agora começaram a usar coisas da nossa cultura como elementos de moda, porque também têm poder para isso. Então a coisa torna-se num abuso e não numa relação de equilíbrio

Mas também não entendo o tio Paulo Bano, porque lá na Guiné até gostamos de ver brancas a fazer penteados guineenses e a vestir afeterés como nós, porque assim elas descem daquele pedestal e se tornam como nós… nóoooooos… ah, já entendo o tio Paulo Bano. Pedestal, eles dominam o pedestal, podem escolher o que fazer subir e o que fazer descer.

Como os brancos têm mais poder de compra lá na Guiné, por isso são os nossos melhores clientes para comprar os nossos panos-de-pinte, os nossos panos legó, as nossas contas, os nossos canapés, os nossos panos africanos (mas desenhados e fabricados na Holanda e na China), os nosso bonecos de pau, os nosso tudo, eles podem comprar tudo, até os nosso filhos (vem) damos à adoção se prometerem trazê-los à Terra-Branco, e por isso adoramos lá que eles façam apropriação cultural quando deixam muito dinheiro. O único problema é quando tomam as coisas e com elas o dinheiro também. Como quando vão lá aprender a tocar korá e em vez de nos trazerem cá para tocar, vem tocar eles mesmos e contar as nossas histórias, e fazem festivais de korás onde só estão brancos… hmmm.

Bem, ouvir a coisa dos cabelos da Rita foi como ouvir a história dos chineses que depenaram o Galo de Barcelos e sujaram os tapetes de Arratolos, ou a história daquela tuga americana que copiou a camisola tuga Porreira Pá. Quando isso aconteceu os tugas ficaram todos calmos e todos tranquilos e não fizeram nenhum burburinho e nem disseram que se tratava de apropriação cultural, afinal também apropriam culturalmente das roupas americanas e até da língua, uainot, udevá, itiza fuquing maindset.

Por isso, como disse, não me interessa a história da Irrita Peneira e da sua Irmã Dálmata, não me interessa se a Irmã é o que é (preta ela não me parece ser, e ela o diz na sua música, sobre se os brancos a acham preta é a história dela, quem sou eu para dizer que ela mente?), o meu problema mesmo é com a comida. Desde que começou o problema na Ucrânia está tudo mais caro e mais difícil na Guiné. Por isso, ver pessoas aqui com comida a dar com pau a discutir sobre cabelos chateia-me, porque é só um problema do primeiro mundo. Queremos lá saber dos cabelos na Guiné. A Irrita fazer tranças ou ficar careca não vai ajudar a ninguém na Guiné, nem vai ajudar as pessoas negras que sofrem cá, com salários de merda e abusos de patrões, ou as pessoas negras que não podem acompanhar os filhos à e na escola, vendo-os condenados assim a viver na mesma merda que elas. Parece que para tanta gente indignada essas pessoas não interessam, o que interessa são se o cabelo da Irrita é a própria ação ou apropriação. Vamos usar toda a nossa energia a discutir uns cabelos que vão desfazer-se em duas semanas, isso sim, viva. Filha da tuga, filha da gula, filha da puta, nada disso vai melhorar a questão da escassez que se está a instalar na Guiné. Não sei se as tranças da Irrita são guineenses ou senegalesas, mas acho que posso dizer, se quiserem mandar o vosso excesso de comida para a Guiné, eu mesmo é que vos vou fazer tranças a todos.

Minha mãe de mim que me pariu, agora que vejo toda essa história dos cabelos da Rita e de “Jejum Impertinente”, estou com receio que alguns comecem a dizer que essa coisa de passar fome é também apropriação cultural, uma vez que há muita comida na Europa, e há muitos anos que a Europa aplica a sua engenharia de escassez na África, criando famélicos.

Pois é, estou mesmo preocupado, se nos tirarem até a fome, o que nos vai sobrar? Porque duvido mesmo que nos mandem fartura.

por Marinho de Pina
Mukanda | 27 Julho 2022 | África, apropriação cultural, cabelo, Europa, Portugal, pos-colonialismo, sociedade, ucrania